TRÊS PERGUNTAS SOBRE A RELAÇÃO




1.

SE A RELAÇÃO É UM ACIDENTE QUE INERE EM DUAS SUBSTÂNCIAS, NÃO PODERIA ACONTECER EM ALGUNS CASOS QUE INERISSE EM APENAS UMA?

PRIMEIRA PERGUNTA: A relação é o único acidente que inere em duas substâncias. Mas a relação também inere na mesma substância? Como acontece com a forma e a materia que inerem em um sujeito?

RESPOSTA: Não há uma só relação que inere em duas substâncias. O que ocorre é que as relações podem vir, algumas vezes necessariamente, aos pares. Assim no pai há uma relação para com o filho. E esta relação exige uma outra relação no filho para com o pai. A primeira é a paternidade, que é a relação do pai para com o filho. A segunda é a filiação, que é uma relação do filho para com o pai. Quando ocorre a ação que gera a nova criatura, o processo exige uma formação simultânea das duas relações, que formam um só conjunto e dá a impressão que é um acidente em duas substâncias. A mente humana não consegue pensar estas relações em separado, mas há duas e não uma que inere simultaneamente em duas substâncias.

No caso do conhecimento ocorre algo diferente. Quando se conhece algo, há uma relação de quem conhece para o conhecido. Mas o conhecido, que está lá e não foi alterado, não tem relação real para o que conhece. No entanto, a mente humana não consegue pensar deste modo. Nós pensamos como se houvesse uma relação de quem conhece para o conhecido e outra do conhecido para quem conhece. A mente humana não consegue pensar em relações a não ser em duplas. Então, neste caso, a filosofia diz que a primeira relação é real e a segunda é de razão.

No caso da paternidade e filiação ambas são reais.

Existe outro caso que é o das relações de quantidade. Tudo o que tem relação de duplo para com algo, exige neste algo uma outra relação de metade para com ele. Neste caso ambas as relações são reais.

São os três tipos de relação que se reconhecem. As que seguem a uma ação, as que se seguem a um conhecimento e as que se seguem à quantidade. Duas vem em dupla, são as que se seguem à ação e à quantidade. A do conhecimento não vem em dupla; quem conhece tem relação para com o objeto conhecido, mas o conhecido não tem necessariamente nenhuma relação para quem conhece. Neste sentido, as estrelas não sabem que as estamos vendo e conhecendo, não foram alteradas por termos começado a conhecê-las. Mas o ser humano não consegue pensar, mesmo no caso destas últimas relações, senão em duplas. Neste caso dizemos que uma é dita real e a outra é apenas de razão, isto é, a primeira não exige realmente a segunda e a segunda não existe na realidade, só existe na mente do homem que pensa ou medita neste tipo de relação.

2.

MAS EM DEUS NÃO HÁ RELAÇÕES QUE INEREM EM DUAS PESSOAS, PORÉM EM UMA ÚNICA SUBSTÂNCIA?

SEGUNDA PERGUNTA: Então Deus não seria inerente em duas substâncias, mas em duas pessoas, certo?

RESPOSTA: O que é simples de se entender na relação da criatura se torna sutilíssimo na relação divina. A parte da Summa Theologiae que trata deste assunto, são as Quaestiones 27 a 44 da Primeira Parte, são muito mais difíceis do que qualquer outra coisa que S. Tomás escreveu, e foi uma conquista de muitos séculos de meditação de muitos santos.

O que acontece é que em Deus as relações são reais, mas não são acidentes. São a sua própria essência, que não é composta de matéria e forma, e nem sequer é apenas forma. Porque forma supõe determinação, portanto supõe limite. Uma coisa possui tal forma porque não é tal outra coisa, porque ela se distingue das demais pela sua forma, portanto forma significa finitude. Portanto, se Deus é infinito, não pode ser forma. Na sua essência, porém, possui a realidade da relação, e esta realidade da relação em Deus não pode diferir da sua própria essência. Sabemos isto, que em Deus existe a realidade da relação, porque isto é dado da revelação. A revelação diz que em Deus existe paternidade e filiação.

A revelação também diz que Deus é inteligente, apesar de que isso poderia ser provado, ao contrário da existência da realidade da relação em Deus, que só é conhecido pela revelação. Mas Deus possui a realidade da inteligência sem possuir o acidente da inteligência. Em Deus há inteligência mas sua inteligência não é um acidente que lhe é acrescentado. Deus possui a perfeição da inteligência sem possuir alguma coisa a mais que o faça inteligente. Se não fosse assim, e se Deus fosse inteligente porque possuisse alguma faculdade especial que o tornasse inteligente, ele já não seria Deus. O verdadeiro Deus seria aquele que lhe tivesse dado esta inteligência. Então, se Deus é inteligente, não é porque ele tenha uma inteligência anexa, mas porque Ele é a sua propria inteligência. A essência de Deus tem a perfeição da inteligência e ela é esta própria inteligência.

Por este motivo, pode-se dizer que Deus também é sua vontade, porque sua essência possui a perfeição da vontade. Por isso pode-se dizer que Deus intelige e quer, mas não tem uma faculdade da vontade nem outra faculdade da inteligência. Sua essência é o mesmo que a sua inteligência, e ambas estas coisas são o mesmo que a sua vontade. Todas estas coisas que nós conhecemos de modo finito em nós mesmos, quando levadas ao infinito, são em Deus uma só coisa e a mesma coisa.

E neste sentido deve-se dizer que se em Deus nos é revelado existir a realidade da relação, Deus também é relação. Mas se em Deus existe a realidade da relação, assim como existe a realidade da inteligência e da vontade, isto significa que Ele realmente intelige e quer, mas estes próprios atos de querer e inteligir nem sequer são atos no sentido de que emergiram de uma potência prévia. Seu ato de inteligir é sua essência, seu ato de querer é sua essência, sua essencia é seu existir e tudo isto que em nós é separado, em Deus é uma só realidade, dotada de uma perfeição levada ao infinito.

Portanto, se em Deus nos é revelado existir a realidade da relação, a relação em Deus só pode ser a mesma coisa que sua vontade, sua inteligência, sua essência e sua existência. E também, portanto, se apesar de que tudo isto em Deus é a mesma coisa, se tudo isto é também real, significa que Deus realmente intelige, Deus realmente quer, realmente existe e realmente é.

E também significa que se em Deus sua essência é também relação, em Deus deve haver duas pessoas, porque senão não haveria a realidade da relação. Portanto, em Deus é a própria realidade da relação o que constitui as pessoas. Entre o pai e o filho humanos, é a diferença das pessoas que está na base da relação. Só existe relação de paternidade e filiação entre homens porque havia antes pessoas diferentes.

Mas ao contrário do que acontece no mundo criado, onde não pode haver relação se antes não há uma diversidade de pessoas, isto é, não pode haver uma relação se antes não há duas substâncias, em Deus é a relação que exige a diversidade de pessoas. E trata-se de uma diversidade de pessoas, mas não de coisas. Isto porque em Deus a pessoa é a propria relação, mas esta relação é uma perfeição da própria essência divina, que é única. A relação constitui as pessoas sem multiplicar a sua essência. A essência em Deus é o seu único existir. Em Deus a relação não é consequência de uma diferença de existências.

Assim como Deus intelige sem ter o acidente da inteligência, o que não poderia acontecer em nós, e assim como Deus quer sem ter o acidente da vontade, o que também não poderia acontecer em nós, o seu querer não é algo diferente do seu inteligir nem do seu existir, o que também não poderia acontecer em nós.

Se isto parece dificil de entender é porque é dificil mesmo. Mas com o tempo e a oração vai se tornando claro como o meio dia, e muito belo, belissimo.

Pense para perceber isto no seguinte. O amor é uma relação entre duas pessoas. Nos animais, apesar de não serem propriamente pessoas, já se pode observar que se amam tanto mais perfeitamente quanto mais perfeitos forem. Um canário ama mais do que uma formiga, um cachorro ama mais do que um canário, e um pinguim talvez ame muito mais que um cachorro. Mas ninguém consegue amar mais divinamente do que o homem, porque o homem é o único animal dotado de espírito, que é o que o faz ser pessoa no sentido estrito. Os homens podem amar mais do que qualquer outro animal porque são pessoas, isto é, criaturas espirituais. É só quando o homem se rebaixa à animalidade, o que hoje acontece com extraordinária frequência, que não pode mais experimentar a verdadeira natureza do amor.

Mas então pense que, se em Deus a pessoa é constituida de um modo tão transcendente que é preciso quase que uma vida de estudo só para se ter a primeira pálida idéia do que constituiria a pessoa em Deus, o quanto de amor não será capaz dentro de si a Santíssima Trindade? É uma concepção de amor que abre uma porta para um cenário literalmente infinito no sentido mais pleno do termo. Estamos falando da própria felicidade divina.

3.

MAS NAS SUBSTÂNCIAS MATERIAIS, COMPOSTAS DE MATÉRIA E FORMA, NÃO EXISTEM RELAÇÕES ENTRE A MATERIA E A FORMA EM UMA SÓ E MESMA SUBSTÂNCIA?

TERCEIRA PERGUNTA: Fica ainda a questão se uma relação pode inerir em uma só substância. Vou dar um exemplo de como talvez isto pudesse acontecer. Em uma substância a matéria e a forma tem que estar relacionadas. Então deve haver uma relação entre matéria e forma porque só podemos saber que a matéria é, porque é a matéria de uma forma, e que a forma é a forma da matéria porque entre elas há uma relação. Não tem que ser assim? Mas neste caso haveria uma relação inerente não em duas substâncias, mas só em uma.

RESPOSTA: Em uma substância a matéria e a forma não subsistem por si mesmas. Não são coisas que existiam separadamente e se juntaram. Se fosse diferente poderia haver relação entre elas. Mas o que acontece é que qualquer coisa só passou a existir quando esta coisa surgiu já constituida de matéria e forma. No mundo criado só pode existir relação onde haja anteriormente duas realidades diferentes que se relacionam. Ora, matéria e forma não são duas realidades diferentes. São elas que constituem a única realidade que verdadeiramente existe por primeiro. Assim, a relação que parece existir entre materia e forma é, de ambos os lados, inteiramente de razão. E por isso mesmo não pode constituir a relação listada nas dez categorias do ente. As categorias só listam entes reais, não entes de razão. Se assim não fosse, a escuridão, a cegueira, o vazio e tantas outras coisas que a mente humana teria uma fertilidade insuspeitada para inventar teriam que constituir novas categorias que, no fundo, seriam apenas nada.