QUEM DESPREZA AS RIQUEZAS É MAIS RICO DO QUE QUEM AS COBIÇA

Por onde, pois, vamos começar nosso argumento contra este homem? Comecemos pela riqueza e pelo dinheiro, pois isto é o que ele lamenta sobretudo e isto é também o que a todos parece mais duro: que jovens ricos abracem a vida monástica. Dize-me, agora: A quem nós todos teríamos por mais feliz e digno de inveja, a quem sofresse de uma sede contínua e antes de saciar-se com o primeiro copo já tivesse necessidade de outro e assim constantemente, ou a quem, livre completamente desta necessidade, não sentisse sede jamais e não tivesse que levar nenhum copo d'água à boca? Não é verdade que o primeiro se assemelha a um enfermo com febre alta, que sofre a mais dura tirania, ainda que pudesse tirar a água de fontes perenes, e o outro é livre com a verdadeira liberdade e está são com a verdadeira saúde e se levanta, enfim, acima da natureza humana? E o que diríamos de quem amasse perdidamente a uma mulher e se unisse a ela continuadamente e depois de tal união se sentisse abrasar furiosamente; outro, ao contrário, se achasse tão alheio a esta loucura amorosa que nem por sonhos o assaltasse o pensamento? A quem aqui teríamos por ditoso e digno de inveja? Sem duvida, ao que é livre da paixão. A quem teríamos por miserável e desgraçado? Não seria este que sofre com a estúpida enfermidade do amor, que não pode de maneira alguma saciar-se e que se inflama com os meios inventados para o extinguir? E se este tal, além de estar enfermo, ainda se achasse ditoso em sua enfermidade e não só não quisesse se ver livre dela, mas tivesse pena dos que estão sãos - que é o caso do homem de que tratamos agora - não seria este o motivo de o termos como mais desgraçado e miserável, não só porque está enfermo, mas porque nem sequer sabe que o está e por isso não quer se livrar da enfermidade, e além disso chora pelos que estão sãos?

Pois então, translademos este argumento para a posse das riquezas e veremos quem é o miserável e desgraçado. E notemos que a cobiça do dinheiro é mais veemente e furiosa do que aqueles outros amores dos quais falamos. De onde que há de ser mais dolorosa, não só porque sua chama é mais penetrante, mas também porque é mais resistente e dura que eles aos remédios que se aplicam para acalma-la. De fato, os que amam a bebida ou os que estão enamorados dos corpos saciaram-se mais facilmente uma vez gozado o objeto de seu amor, do que aqueles que sofrem a loucura do dinheiro. Por isso tivemos que os simular com discurso, por não ser fácil que apareçam na realidade; mas desta enfermidade que é a cobiça, poderíamos alegar muitos exemplos de experiência. Pois, dize-me, agora: Tu choras pelo teu filho justamente porque ele se vê livre desta fúria e doença desesperada, porque não ama com amor insaciável, porque está fora desta guerra e desta batalha?