CAPÍTULO NONO

1.

Falta-nos ainda contemplar a última hierarquia dos anjos, os deiformes principados, arcanjos e anjos (Ef. 1, 21; 3, 10; Col. 1, 16; 2, 10; I Cor. 15, 24; Ef. 6, 12; Col. 2, 15; I Tess 4, 16; Jud.1, 9). Creio que antes de tudo o mais devo explicar o significado destes nomes sagrados o melhor que me seja possível. O termo "principados celestes" refere-se ao mando principesco que aqueles anjos exercem à imitação de Deus. Trata-se de uma referência à ordem sagrada mais própria para exercer poderes de príncipes; à capacidade de orientar-se plenamente ao princípio que está acima de todo princípio e, como príncipes, guiar os outros até Ele. Poder de receber plenamente a marca do Princípio de princípios e, mediante o exercício eqüitativo de seus poderes de governo, dar a conhecer este supraessencial princípio de toda ordem.

2.

Os santos arcanjos têm a mesma ordem que os principados celestes e, como foi dito, juntamente com os anjos formam uma só hierarquia e ordem. Não obstante, como em cada hierarquia há três poderes, o primeiro, o intermediário e o último, a santa ordem dos arcanjos possui algo das outras duas por encontrar-se entre as extremidades. Comunica-se com os santíssimos principados e com os santos anjos; sua relação com os primeiros fundamenta-se no fato de que, como os principados, orienta-se ao Princípio supraessencial e, finalmente, em que recebe sobre si a marca do que é Princípio. A ordem dos arcanjos comunica a união aos anjos graças aos invisíveis poderes de ordenar e dispor o que recebeu do próprio Princípio.

A ordem dos arcanjos relaciona-se com os anjos por servir de intermediária para comunicar a estes as iluminações que recebem de Deus por meio das primeiras hierarquias. Os arcanjos as comunicam aos anjos e por meio destes a nós, na medida em que somos capazes de ser santamente iluminados.

Conforme já disse, os anjos completam o conjunto hierárquico das sagradas inteligências. Constituem eles o grau inferior. Dá-se o nome de anjos a este grupo, de preferência a outros, porque sua hierarquia é a mais próxima de nós, a que nos torna manifesta a revelação e a que está mais próxima do mundo. Já disse que a ordem superior, assim chamada por estar mais próxima aos mistérios divinos, influi hierarquicamente no segundo grupo, que se compõe das santas dominações, virtudes e potestades. A segunda influi sobre a hierarquia dos principados, arcanjos e anjos; é ela que faz as revelações e, segundo seus graus distintos, preside as hierarquias humanas para que a elevação e retorno a Deus, comunhão e união com Ele, ocorra como é devido. Mesmo assim, todas as hierarquias participam eqüitativamente das graças que bondosamente Deus lhes dá. Portanto, os anjos velam por nossa hierarquia humana como o refere a Escritura. Elas chamam a Miguel de príncipe do povo judeu, e designam diversos anjos para governar outras nações, porque

"o Altíssimo estabeleceu os termos dos povos segundo o número dos anjos".

Dt. 32, 8;
Dn. 10, 13-21; 12, 1

3.

Talvez alguém pergunte por que somente o povo judeu alcançou a luz da Deidade. A isto responde-se dizendo que os anjos cumpriram perfeitamente seu ofício de guardiões e que não é falta sua se outras nações se desviaram adorando a falsos deuses. Na realidade, foram elas, por sua própria iniciativa, as que se afastaram do caminho que leva a Deus. A adoração absurda com que elas imaginavam agradar a Deus mostra seu egoísmo e sua presunção, como se prova pelo que sucedeu ao povo judeu:

"Rejeitaste a ciência" [de Deus],

está escrito,

"e seguiste o chamado de teu coração".

Os. 4, 6;
Jer. 7, 24; Os. 5, 11

Nem está necessariamente predeterminada a nossa vida, nem a liberdade é obstáculo que impeça a divina Providência de ser fonte de iluminação sobre aqueles que estão sob o seu cuidado. De fato, o que ocorre é isto. A desproporção dos olhos da inteligência faz com que, sendo copiosíssima a iluminação da bondade do Pai, ou se perca inteiramente, ou se torne inútil por rejeitá-la, ou que participem dela com desigual medida, em grande ou pequena quantidade, obscuramente ou com claridade. Enquanto isso, o refulgente manancial de luz continua sendo único e simples, sempre igual, sempre transbordante.

O mesmo pode dizer-se de outras nações, povos de onde nós somos provenientes, de maneira que podemos também levantar o olhar ao pélago infinito e generoso desta Luz divina, que derrama e difunde seus dons sobre todos os seres. Não foram deuses estranhos que assim o dispuseram. Único é o princípio universal e os anjos os quais, colocados à frente das nações, orientaram a Ele todos os que quiseram seguí-los. Pensa em Melquisedec. Estava pleno de amor de Deus e era sacerdote, não de falsos deuses, mas do verdadeiro Deus altíssimo (Gen. 14, 18-22; Sl. 110, 4; Heb. 7, 1). Os sábios das ciências sagradas não se contentaram em chamar Melquisedec de amigo de Deus. Descreveram-no como sacerdote para fazer ver aos homens sensatos que o seu ofício não era simplesmente converter-se ao verdadeiro Deus mas, ainda mais, como grão sacerdote, guiar a outros em seu caminho de ascensão ao único Deus verdadeiro.

4.

Aqui tens outro motivo para entender a hierarquia. O anjo tutelar dos egípcios fêz ver ao Faraó que existe uma Providência solícita e com senhorio poderoso sobre todas as coisas. O mesmo fêz o anjo dos babilônios com o chefe de sua nação. Puseram à frente daquelas nações a servos do verdadeiro Deus, intérpretes das visões que Ele enviou por meio de seus anjos, os quais as revelaram a José e a Daniel (Gen. 41, 1; Dn. 2, 1; 4, 1-27). Um só é o Senhor de todos, e única a sua providência. Não imaginemos, por conseguinte, que Deus vela tão somente pelo povo judeu e que outros deuses ou anjos, em condições de igualdade ou parecendo-se com Ele, estão à frente de outros povos. As passagens que poderiam sugerir tal idéia devem interpretar-se em sentido sagrado (Dt. 32, 8; Dn. 10, 13-21), pois não podem significar que Deus compartilhe o governo da humanidade com anjos estranhos, nem que governa ao povo de Israel como se fosse o seu Príncipe ou Chefe nacional.

A Providência do Altíssimo, que é única para todos, mandou anjos que guiassem os povos à sua salvação, porém só Israel foi o que se converteu à Luz e confessou o verdadeiro Senhor. Por isso a Escritura mostra com as seguintes palavras que Israel escolheu por si mesmo adorar ao verdadeiro Deus:

"Veio a ser a porção do Senhor".

Gen. 32, 9

A teologia diz também que Miguel está à frente do povo judeu (Dan. 10, 21), com o que significa claramente que foi assinalado um anjo a Israel, como às demais nações, para que por seu meio reconheça a aquele que é princípio de governo único e universal. Pois única é a Providência para todo o mundo, supraessência que transcende todo poder visível e invisível. Há anjos à frente de cada nação, com a missão de guiar até a Providência, como sua própria fonte, a todos os que queiram segui-los de boa vontade.