3.

Chegada de S. Domingos a França. A sua primeira viagem a Roma. Entrevista em Montpellier.

Por esse tempo, o rei de Castela Afonso VIII, teve idéia de casar seu filho com uma princesa da Dinamarca. Escolheu como negociador o bispo de Osma, o qual, levando consigo Domingos, partiu nos fins do ano de 1203 para o norte da Alemanha. Ambos, ao atravessarem o Languedoc, puderam constatar os progressos assustadores dos Albigenses, e os seus corações sentiram-se profundamente contristados.

Chegados a Toulouse, onde só tencionavam ficar uma noite, S. Domingos descobriu que o dono da hospedaria, onde pernoitaram, era herege. Posto que a demora devesse ser curta, não quis que a sua passagem por ali fosse sem proveito para aquele homem pervertido que os alojara. Jesus Cristo dissera a seus apóstolos:

Quando entrardes em uma casa,
saudai-a dizendo:
A paz seja com esta casa.
E se essa casa for digna,
a paz descerá sobre ela;
e se não for digna,
a vossa paz recairá sobre vós.

Mat. 10, 12-13

Os santos que têm sempre presentes todas as palavras de Jesus Cristo e que conhecem o poder de uma bênção, embora dada a quem a ignora, consideram-se como enviados de Deus junto de qualquer pessoa que casualmente encontrem, e esforçam-se por não a abandonar, sem ter depositado na sua alma um gérmen de misericórdia.

Domingos não se contentou com orar secretamente pelo seu hospedeiro herético, passou a noite conversando com ele e a inesperada eloqüência desse estrangeiro de tal modo tocou o coração do herege que ele, antes do romper do dia, voltou à antiga fé.

Operou-se então novo prodígio: Domingos movido pela conquista que acabara de fazer em favor da verdade, e pelo triste espetáculo dos estragos feitos pelo erro, teve, pela primeira vez, a idéia de criar uma ordem consagrada a defender a Igreja por meio da pregação. Esse plano repentino apossou-se dele e nunca mais o deixou.

Ao sair de França levava já elucidado o segredo da sua futura carreira, como se a França, ciosa de não haver produzido esse grande homem, tivesse conseguido de Deus que ele não pisasse debalde o seu solo, e que ao menos fosse ela quem desse o impulso definitivo à sua vida.

Chegados D. Diogo e Domingos, depois de muitas fadigas, ao termo da sua viagem, encontraram a corte de Dinamarca bem disposta a favor da aliança desejada por Castela. Voltaram incontinente a participar a noticia ao rei Afonso, partindo depois de novo, com grande aparato, afim de trazer a princesa para Espanha. Neste comenos, porém, morreu ela. Desligado D. Diogo da sua missão, mandou um mensageiro a El-Rei e dirigiu-se para Roma.

Não havia nesse tempo cristão algum que quisesse morrer sem primeiro ir colar seus lábios sobre o túmulo dos bem-aventurados apóstolos S. Pedro e S. Paulo. Até o pobre punha-se a caminho e ia a pé visitar essas longínquas relíquias e receber, ao menos uma vez, sobre sua fronte radiante, a benção do Vigário de Jesus Cristo. D. Diogo e Domingos ajoelharam-se juntos diante desse túmulo que governa o mundo, e ao erguer a fronte do chão foi-lhes dado ter um novo gozo, o maior que um cristão pôde sentir neste mundo, isto é, o de ver sobre o trono pontifical um homem digno de o ocupar: era Inocêncio III. Quais de resto os sentimentos que lhes inundaram. a alma ao contemplarem o espetáculo da cidade universal, não nos diz a historia. Quem pela primeira vez visita Roma, penetrado da unção do cristianismo, e na flor da mocidade, conhece a emoção produzida por ela; os outros compreende-la-ão dificilmente, e eu aprecio sobremaneira a sobriedade desses antigos historiadores, que se ca- lavam quando cessava o poder da palavra.

O bispo de Osma havia-se proposto implorar uma mercê do soberano pontífice. Resolvera abdicar o episcopado e consagrar o resto da sua vida a pregar a fé aos Cumanos, povos bárbaros estabelecidos nos confins da Hungria, e que se haviam tornado célebres pela ferocidade dos seus costumes. Inocêncio III recusou aceder a esse heróico desejo. D. Diogo insistiu para que lhe fosse ao menos permitido, conservando o seu bispado, ir evangelizar os infiéis; o Papa porém, persistiu na sua recusa e ordenou-lhe que regressasse à sua diocese.

Os dois peregrinos atravessaram pois de novo os Alpes, na primavera do ano de 1205, com a intenção de voltar imediatamente para Espanha. Cederam todavia ao devoto desejo de visitar de passagem um dos mais celebres mosteiros da cristandade e, fazendo uma volta, vieram bater à porta da abadia de Cister. A sombra de S. Bernardo pairava ainda sobre ela. Se ali já não existia a mesma pobreza, existiam contudo ainda uns restos de virtude assaz belos para que o bispo de Osma se sentisse perfeitamente encantado.

Significou aos religiosos o prazer que teria em revestir o seu hábito ilustre. Concederam-lho, sem dificuldade, consolando-se ele um pouco, sob aquelas vestes monásticas, do desgosto que tinha tido de se não poder fazer missionário e ir para o meio dos selvagens. Domingos absteve-se de imitar nisto o seu amigo; voltou porém de Cister cheio de estima e afeição pelos religiosos daquela ordem.

Depois de uma breve demora no mosteiro puseram-se ambos de novo a caminho, sendo provável que descessem pelas margens do Saône e Ródano e assim chegassem aos subúrbios de Montpellier.

Achavam-se então reunidos dentro dos muros de Montpellier três homens que nessa época desempenharam um papel importante nos negócios da Igreja: eram Arnaldo, abade de Cister, Raul e Pedro de Castelnau, monges da mesma ordem. Tinha-os o Papa Inocêncio III nomeado delegados apostólicos nas províncias de Aix, Arles e Narbonne, com plenos poderes de procederem como julgassem proveitoso para a repressão da heresia. Porém a sua mis são, que já durava havia um ano, não tinha tido resultado algum. O conde de Toulouse, senhor dessas províncias, protegia aberta mente os hereges; os bispos negavam-se a auxiliar os delegados, uns por covardia, outros por indiferença e outros por serem eles próprios hereges. O clero incorrera no desprezo do povo, ao ponto de, observa Guilherme de Puy Laurens,

“o nome de eclesiástico
se tornar proverbial como o de judeu,
de forma que em lugar de se dizer:

‘Preferia ser judeu a fazer isso’,

muitos diziam:

‘Preferia ser eclesiástico’.
Quando os clérigos apareciam em público,
tinham o cuidado de puxar o cabelo
de traz para a testa,
para esconderem a tonsura,
que faziam a mais pequena possível.
Raro era serem os filhos dos cavaleiros
destinados por estes à carreira eclesiástica,
apresentando porém os filhos de seus dependentes
para as igrejas cujos dízimos lhes pertenciam,
e conferindo os bispos as ordens em quem podiam”.

Crônica, Prólogo

Inocêncio III não dissimulara aos seus legados a grandeza do mal. Em carta de 31 de maio de 1204, dizia-lhes:

“Aqueles que S. Pedro chamou
a partilhar com ele a solicitude
com que guarda o povo de Israel,
não velam de noite sobre o rebanho:
pelo contrário, dormem e retiram-se do combate,
enquanto Israel luta com Madian.
O pastor degenerou em mercenário;
já não apascenta o seu rebanho,
apascenta-se a si próprio;
aproveita-se da lã e do leite das suas ovelhas;
não se inquieta com os lobos que entram no redil,
e não confronta como uma muralha
os inimigos da casa do Senhor.
Como mercenário que é,
foge diante da perversidade que podia aniquilar
e pela traição torna-se o protector dela.
Todos quase desertaram a causa de Deus
e dentre os que ficam muitos lhe são inúteis”.

Inocêncio III,
Carta LXXV, L. VII

Os três legados eram homens de uma grande fé, e de um grande caráter. Abandonados, porém, por todos, não tinham podido proceder, nem empregando a autoridade, nem por meio da persuasão. Nenhum de todos os bispos dessas províncias quisera juntar-se a eles para irem exortar o conde Raymundo VII a lembrar-se do glorioso papel que seus antepassados haviam representado. Não tinham tido melhor resultado as suas conferências com os hereges, opondo-lhes estes sempre como argumento o deplorável modo de vida do clero e recordando-lhes a palavra do Senhor:

“Pelos seus frutos os reconhecereis”.

Mt. 7, 16

Estavam portanto bem desanimados, apesar da rija têmpera de sua alma, e sentiam amargamente que há encargos demasiado pesados para um homem quando os erros acumulados dão às paixões um poder demasiado grande contra a verdade. Era debaixo do peso desta impressão que estavam deliberando em Montpellier. A sua opinião unânime era que se enviasse ao soberano pontífice uma relação exata do estado das coisas e que ao mesmo tempo resignassem nas suas mãos um cargo que lhes era impossível desempenhar com honra e proveito. O que aos homens parece porém desesperado não o é aos olhos de Deus. A Providência preparava havia mais de trinta anos uma resposta aos gemidos dos seus servos e aos insultos de seus inimigos e chegara a hora dessa resposta. Na própria ocasião em que os legados tomavam uma tão triste resolução souberam que D. Diogo de Azevedo, bispo de Osma, acabara de chegar a Montpellier. Imediatamente lhe mandaram rogar que viesse ter com elles. D. Diogo acedeu ao convite.

Cedo aqui a palavra ao bem-aventurado Jordão de Saxe:

“Os legados recebem-no com todas as honras
e imploram o seu conselho,
pois o tinham por um homem santo,
prudente e cheio de zelo pela fé.
Dotado como era de grande circunspecção
e conhecedor dos decretos de Deus,
começou por inquirir sobre os costumes
e usos dos hereges.
Fez-lhes notar que eles procuravam atrair gente
para a sua seita pelos meios persuasivos,
pela pregação e pelas aparências de santidade,
enquanto que os legados se haviam rodeado
de um grande e pomposo aparato,
de servos, cavalos e ricos trajes.
Disse-lhes então:

‘Não é desse modo, meus irmãos,
que deveis proceder. Parece-me impossível
converter esses homens pela palavra,
quando eles se firmam sobre o exemplo.
Pelo simulacro da pobreza
e da austeridade evangélicas
é que eles seduzem os espíritos simples.
Apresentando-lhe vós um espectaculo contrário,
sois pouco edificantes,
perdereis muitos e nunca conseguireis
falar-lhes ao coração.
Combatei o exemplo com o exemplo;
oponde a uma fingida santidade,
a verdadeira religião.
Não se triunfa da impostura dos falsos apóstolos
senão por uma humildade extraordinária.
Foi esse o motivo que obrigou S. Paulo
a patentear a sua virtude,
as suas austeridades
e os continuas perigos da sua vida,
àqueles que diante dele se envaideciam
do merecimento dos seus trabalhos’.

Disseram-lhe então os legados:

‘Qual é pois o conselho que nos dais,
excelso Padre?’

E ele respondeu-lhes:

‘Fazei o mesmo que eu vou fazer’.

E logo, apoderando-se dele o espírito de Deus,
chamou a gente do seu séquito e ordenou-lhes
que voltassem para Osma com as suas equipagens
e toda a pompa de que viera acompanhado.

Conservou apenas junto de si
um pequeno numero de eclesiásticos,
declarando que era a sua intenção
fixar-se naquele país
e trabalhar a favor da fé.
Também reteve junto de si o sub prior Domingos,
por quem tinha grande estima e igual afeição.
Era esse Frei Domingos,
primeiro fundador da Ordem dos Pregadores,
que desde então deixou de se chamar sub-prior,
para se ficar chamando Frei Domingos;
verdadeiro homem de Deus
pela inocência da sua vida
e pelo seu zelo em cumprir os mandamentos.

Os legados, movidos pelo conselho
e exemplo assim dados,
a tudo anuíram imediatamente.
Despediram seus servos e bagagens,
e guardando unicamente os livros
de que careciam para a controvérsia,
puseram-se a caminho, a pé,
reduzidos a uma pobreza voluntária para,
sob a direcção do bispo de Osma,
começaram a pregar a verdadeira fé”.

Vida S. Domingos I, 16

Com que arte e paciência trabalhara Deus para chegar a este resultado. Nas margens de um rio espanhol recebem dois homens de idades diferentes a plenitude do espirito de Deus. Um dia encontram-se, atraídos um para o outro, pelo perfume das suas virtudes, quais duas preciosas árvores plantadas na mesma floresta inclinando-se uma para a outra, procuram entrelaçar-se. Quando já seus dias e pensamentos se confundiam, por efeito de uma longa amizade, uma determinação imprevista arranca-os do seu país, fá-los vaguear pela Europa, dos Pirineus ao Mar Báltico, do Tibre às colinas da Borgonha, chegando, sem o saberem, exatamente no momento de ser preciso dar a uns homens faltos de ânimo, apesar do seu grande coração, um conselho que muda a face das coisas, salva a honra da Igreja e lhe prepara, em um futuro próximo, uma legião de apóstolos! Por certo nunca os inimigos da Igreja leram a sua historia com atenção; se o tivessem feito, teriam nela observado a invisível fecundidade de seus recursos, e a oportunidade assombrosa dessa fecundidade.

A Igreja é semelhante a esse gigante, filho da terra, que das próprias quedas colhe novas forças; o infortúnio fá-la voltar às suas virtudes primitivas, recuperando o seu poder natural ao perder o poder artificial que o mundo lhe dera. O mundo não lhe pôde tirar senão o que ela recebeu dele, isto é, a riqueza, a nobreza do sangue, participação no governo temporal, privilégios de honra e protecção: vestes tecidas por mãos impuras, túnica de Déjanire que a Igreja nunca deve trazer junto ao seu corpo sagrado, mas vestir unicamente sobre o hábito da sua pobreza nativa. Se o ouro, em lugar de ser o instrumento da caridade e o adorno da verdade, alterar uma ou outra, forçoso é que deixe de existir; portanto o mundo, despojando a Igreja, não faz mais do que restituir-lhe a veste nupcial que lhe deu seu divino esposo e que ninguém lhe pôde tirar. Porque, como é possível roubar a nudez a quem a deseja? Como se pode tirar o nada a alguém que faz consistir nele o seu tesouro? É na renúncia voluntária que Deus põe a força da sua Igreja, e não há mão nenhuma humana que possa penetrar nesse abismo para lhe roubar o que quer que seja. Por esse motivo os mais hábeis perseguidores procuraram sempre antes corromper a Igreja do que espoliá-la. É esse o último grau de profundeza no mal e com uma astúcia de tal ordem tudo se perderia, se Deus alguma vez permitisse que a corrupção fosse universal. A corrupção, porém, gera a vida e a consciência renasce das suas próprias ruínas, circulo vicioso de que Deus tem o segredo e pelo qual Ele tudo governa...

Que situação mais desesperada se poderia conceber do que a situação religiosa do Languedoc em 1205? O seu príncipe era um herege fanático; a maior parte dos barões favoreciam a heresia; os bispos não curavam dos seus deveres e alguns, tais como o bispo de Toulouse e o arcebispo de Auch, estavam manchados de crimes públicos; perdera-se todo o respeito pelo clero; dos católicos que haviam permanecido fiéis apenas existia um pequeno número; o erro zombava das desordens da Igreja, dando o espetáculo de uma virtude fictícia, e o desânimo apoderara- se daqueles mesmos que ainda conservavam uma fé inabalável num coração casto e forte. Basta, porém, ali chegarem dois cristãos para tudo se transformar. Conseguem reanimar a coragem dos legados da Santa Sé, desmascarar os hereges por meio de um apostolado pobre e austero, fortalecer as almas hesitantes, consolar as almas fortes e arrancar o episcopado à sua apatia.

Um bispo eminente toma posse da sede de Toulouse e ainda que a vitória não seja decisiva, é contudo considerável o bastante para manifestar de que lado se acha a razão, a retidão, o zelo, a dedicação e a realidade da causa divina que servem.