IV.10.

O intelecto.

O intelecto é a faculdade pela qual são apreendidos o ser em universal e a essência das coisas, isto é, aquilo que cada coisa é, abstraídas as condições individuantes. As afirmações de Tomás quanto a isto estão profusamente espalhadas em toda a sua obra. Eis aqui algumas:

"O homem é um ser tal
que intelige as formas
de todas as coisas sensíveis"
(47);

ora, a forma é o que dá o ser à matéria.

"Pelo que diz Aristóteles,
fica manifesto
que o objeto próprio do intelecto
é a qüididade ou a essência da coisa,
que não é algo separado da própria coisa,
como afirmava Platão,
mas algo existente nas coisas sensíveis.
O intelecto, porém,
apreende estas qüididades de um modo diverso
de como existem nas coisas sensíveis,
isto é, as apreende
sem as condições individuantes que,
nas coisas sensíveis,
a elas se acrescentam"
(48).

"A operação do intelecto conhece a essência;
nesta operação, porém,
há algo que lhe é pressuposto,
que é o ser:
de fato, a mente não pode conceber nada
se não inteligir primeiro o ser"
(49).

"Nossa inteligência conhece naturalmente o ser
e tudo aquilo que pertence ao ser enquanto tal;
e neste conhecimento se fundamenta
o conhecimento dos primeiros princípios"
(50).

Há outras operações na inteligência que derivam da operação pela qual são apreendidas as essências: são o julgamento e o raciocínio.

O julgamento é a operação da inteligência pela qual ela compõe ou divide apreensões prévias da inteligência em si indivisíveis, como, por exemplo, quando julga "o livro é branco".

O raciocínio é a operação pela qual se passa de um julgamento a outro, para atingir, através de julgamentos conhecidos, o conhecimento de desconhecidos (51). Não nos vamos deter na análise do julgamento e do raciocínio; nosso interesse será agora analisar melhor a primeira das operações da inteligência, aquela que fundamenta as demais, que é a apreensão das essências.

Já vimos nas citações precedentes que o objeto da inteligência são as essências das coisas sensíveis. A inteligência apreende as essências das coisas sensíveis sem as condições individuantes que nas próprias coisas sensíveis se acrescentam a esta essência. Ela é, portanto, uma operação que resulta de uma abstração.

Não é apenas a operação da inteligência que resulta de uma abstração: a operação dos sentidos também resulta de uma abstração. Já vimos que na operação dos sentidos o sentido recebe uma forma existente no sensível sem a matéria existente no sensível; não apenas não recebe a mesma matéria que havia no sensível, como nem sequer recebe a forma do sensível em uma matéria que tenha disposições idênticas da matéria sensível; o sentido recebe a forma do sensível em uma matéria que nenhuma semelhança apresenta com a do sensível. Diz-se, portanto, que recebe a forma do sensível sem a matéria.Ora, isto já é uma abstração, porém não é uma abstração tão grande como a da operação da inteligência. Os sentidos conhecem apenas as qualidades exteriores do objeto conhecido, não a própria essência; ademais, quando conhecem estas qualidades, as conhecem ainda individualizadas no objeto conhecido, isto é, vêem esta flor amarela, aquele livro verde. Não assim a inteligência; quando a inteligência alcança o que é um ser humano, a essência do ser humano, já não considera mais se se trata deste ou daquele indivíduo.

Ora, toda abstração se faz a partir de um objeto do qual se considera uma parte abstraindo-se outra. No caso dos sentidos, este objeto é a própria coisa exterior. No caso da inteligência, o objeto sobre o qual se trabalha para abstrair a essência é o material fornecido pela fantasia:

"Os fantasmas, de fato,
se acham para com o intelecto
assim como as cores para a visão.
Ora, as cores se acham
para com a visão
como objetos;
portanto, os fantasmas se acharão
para com o intelecto
como objeto"
(52).

Assim como a cor e o som são objetos materiais, a fantasia também é um objeto material; a diferença está em que enquanto a cor e o som são externos ao animal, a fantasia é interna. A inteligência, pois, é uma faculdade cujo objeto não é externo no homem, mas interno; embora, através deste, relacione-se com os objetos externos.

A operação dos sentidos, conforme vimos, resultava de uma certa abstração sobre o sensível; a operação do intelecto, tendo por objeto este produto da operação do sentido, resultará em uma abstração ainda maior.

O sentido, conforme vimos, recebe a forma existente no sensível sem a matéria do sensível nem em uma matéria de disposição semelhante ao sensível, mas em uma matéria de disposição bastante diversa.

Na operação do intelecto, porém, conforme veremos, pode-se mostrar que recebe-se uma forma contida no material apresentado pela fantasia sem, porém, disposição material alguma. Nas próximas linhas tentaremos justificar esta afirmação; daremos uma explicação que não se encontra nos textos de Tomás de Aquino, mas que é o que se depreende das páginas onde ele trata deste assunto.



Referências

(47) Quaestiones Disputatae De Anima, a.2.
(48) In librum De Anima Commentarium, L. III, l. 8, 717.
(49) In libros Metaphysicorum Expositio, L. IV, l. 6, 605.
(50) Summa contra Gentiles, II, 83.
(51) In libros Posteriorum Analiticorum Expositio, Introductio, 4.
(52) In librum De Anima Commentarium, L. I, l. 2, 19.