IV.12.

Aparente não evidência da natureza do ato intelectivo.

Uma grande dificuldade, talvez a maior dificuldade para a compreensão deste argumento reside no fato de que não é claro para a maioria das pessoas que a apreensão da inteligência possui de fato todas as características que mencionamos. Muitas pessoas não cultivaram a vida da inteligência de modo a alcançarem uma capacidade de abstração suficiente para perceberem claramente a existência destas idéias abstratas em sua inteligência. Ainda que não o digam, supõem que uma idéia seja no máximo um sinal, -o som da palavra casa, por exemplo, ou o desenho imaginado de uma casa-, sinal que dizemos ter tal ou qual significado por convenção, por atribuir este sinal a muitos objetos externos semelhantes, de tal modo que quando dizemos que queremos construir a casa, queremos dizer com isto não que queremos construir aquele sinal, mas que queremos construir um prédio em determinado terreno. Pessoas assim se elevaram tão pouco acima da atividade da fantasia que para elas a distinção entre a fantasia e a inteligência fica muito pouco nítida.

Para complicar ainda mais a situação destas pessoas, se bem que a inteligência seja algo totalmente diverso da fantasia, diz porém S. Tomás que nunca a inteligência pode trabalhar no homem de tal modo que esteja totalmente ausente da fantasia, não só ao abstrair as idéias dos dados da fantasia, como também ao recordar idéias já abstraídas. Estas são suas palavras a este respeito:

"É necessário",

diz Tomás,

"que para que alguém esteja especulando em ato,
simultaneamente se forme algum fantasma.
Por causa disso sem o sentido
não pode nenhum homem apreender
ou adquirir nova ciência,
nem sequer inteligir
utilizando-se de uma ciência já adquirida.
É falsa a opinião de Avicenna, portanto,
de que o intelecto não necessita dos sentidos
depois que já adquiriu a ciência;
ao contrário, mesmo depois
de alguém já ter adquirido a ciência,
necessita usar os fantasmas para que especule.
É por causa disso que
por uma lesão dos órgãos corporais
pode-se impedir o uso
das ciências já adquiridas"
(53).

Isto ocorre porque a fantasia está para a inteligência assim como o seu objeto, da mesma maneira como as coisas visíveis são objetos para a vista. Ora, retirando-se os objetos visíveis, a vista, ainda que sã, nada mais será capaz de ver. Mas a inteligência funciona, segundo Tomás, unida à fantasia de um modo semelhante, tal que sem o funcionamento paralelo da fantasia a inteligência nada apreende. Esta foi a explicação que já tinha sido dada por Aristóteles para o fato de que a inteligência, ainda que imaterial, possa ter o seu funcionamento alterado ou até definitivamente impedido por uma lesão corporal, ou pela ingestão de alguma droga. Pois ela não funciona sem o concurso da fantasia, assim como a vista não veria na ausência de objetos visíveis.

Portanto, apesar de ser algo bastante distinto da fantasia, a inteligência não pode funcionar sem o funcionamento paralelo da fantasia; a partir dos dados da fantasia, ela pode inteligir segundo diversos graus de abstração. Pode abstrair tão pouco que mal se perceba a diferença entre a inteligência e a fantasia. Neste caso, como sempre que inteligimos deverá estar presente algum sinal da fantasia, confundiremos aquele sinal com a própria inteligência.

Mas também a inteligência pode gradativamente ir se elevando a graus de abstração tão elevados e tão intensos que de suas alturas mal se percebe mais o movimento paralelo da fantasia. A dificuldade da questão da imaterialidade da alma é, portanto, a dificuldade dos principiantes na vida filosófica: para os principiantes fica muito difícil distinguir

"se o intelecto é a própria fantasia
ou é algo distinto
que se dá conjuntamente à fantasia"
(54).

É isto o que acontece quando, por exemplo, um neurologista quer demonstrar a materialidade da mente. Ele injeta na circulação sanguínea do homem uma solução de glicose marcada com um carbono radioativo; o cérebro se alimenta exclusivamente de glicose, e a glicose marcada com isótopos radioativos de carbono pode ser rastreada em seu caminho pelo cérebro através de aparelhos. Então o neurologista diz ao paciente que pense em um quadrado. O paciente, em vez de pensar em um conceito totalmente abstrato do quadrado, imaginará verdadeiramente um quadrado. Nisto a glicose radioativa será vista concentrando-se em uma determinada parte do cérebro; não é a atividade da inteligência, porém, o que está sendo rastreado, mas a da fantasia. É verdade que há uma forma inteligível também, porque o paciente sabe que aquele não é o único quadrado; entretanto, sua atenção está muito mais concentrada na imagem do que na idéia. O neurologista então lhe diz que gire o quadrado em que pensou. A esta nova ordem o paciente imaginará o quadrado girando, e a glicose radioativa se deslocará para outra região do cérebro. Se, entretanto, sua atenção estivesse voltada para a abstração do quadrado e fosse isto o que ele estivesse contemplando claramente, sua resposta seria:

"Não posso!
Posso girar este ou aquele quadrado,
esta ou aquela imagem do quadrado,
mas se estou realmente vendo a essência do quadrado,
esta essência eu não posso girar".

No fim da experiência o cientista e o paciente supõem terem demonstrado a materialidade do pensamento. O que aconteceu, na verdade, é que a experiência que ambos tinham da vida do pensamento era muito pequena para diferenciar-se da fantasia. Quando pensamos no quadrado vemos uma imagem do quadrado e concomitantemente também a essência do quadrado; mas existe toda uma gradação de intensidades com que vemos desde fortemente a imagem e palidamente a essência até palidamente a imagem e fortissimamente a essência.

Este problema de confundir fantasia com inteligência tinha contornos bastante diversos nos filósofos gregos. Pudemos mostrar no capítulo anterior como eles se submetiam a uma educação que tendia a favorecer a atividade da abstração intelectual em um grau muito elevado. Basta, para perceber isto, refletir um pouco novamente sobre o programa educacional de Platão e seus objetivos:

"O verdadeiro filósofo
é aquele que gosta
de contemplar a verdade.

Os amadores de espetáculos e das artes
não merecem o nome de filósofos,
porque gostam de belas vozes,
das cores, das formas e de todas as coisas
elaboradas por estes elementos,
mas as suas mentes são incapazes
de apreciarem o belo em si.

Aqueles que apenas possuem
o sentimento das coisas belas,
mas não o da própria beleza,
estão confundindo a cópia com o objeto real.

Aqueles que vêem muitas coisas belas,
mas não vêem o belo em si,
aqueles que vêem muitas coisas justas
mas não vêem a justiça em si,
aqueles que vêem muitas verdades,
mas não conseguem ver a verdade em si,
nem são capazes de seguir um guia
que os conduza a este ponto,
estes não são os filósofos.

Só os que são capazes de contemplar
cada coisa como ela é em si mesmo
é que devem ser chamados de filósofos
ou amantes do saber".

Para estes que assim viviam, era evidente o caráter imaterial da inteligência humana; mais do que a força interna do argumento que eles usaram para explicar a imaterialidade da inteligência, foi a experiência pessoal deles que os levou a desenvolver o próprio argumento.



Referências

(53) In librum De Anima Commentarium, L. III, l. 13, 791-792.
(54) Idem, L. I, l. 2, 18.