V.14.

A virtude da justiça.

É próprio da justiça, entre todas as demais virtudes, ordenar o homem nas coisas que se relacionam a outro. A justiça, como o próprio nome denota, importa numa certa equalidade, já que vulgarmente dizemos ajustar as coisas que entre si adequamos; ora, toda equalidade é dita em relação a outro (92). À justiça pertence, pois, dar a cada um o que é de seu direito (93).

Por causa disto a justiça difere das demais virtudes na medida em que outras virtudes como a fortaleza e a temperança aperfeiçoam o homem nas coisas que lhe convém segundo si mesmo; o que é reto nas obras da fortaleza e da temperança é tomado por comparação ao agente, segundo que a obra da virtude seja feita de uma certa maneira por este agente. Mas na obra da justiça o reto é constituído por comparação a outro, independentemente de sua comparação para com o agente (94).

O sujeito da virtude da justiça é a vontade, porque somos ditos justos por agirmos retamente em algo. Ora, os princípios próximos das ações são as forças apetitivas; existem, porém, dois apetites, isto é, a vontade, que está na razão, e o apetite sensível, que se segue à apreensão dos sentidos. Pertence, porém, à justiça, dar a cada um o que é de seu direito; dar a cada um o que é de seu direito, entretanto, não pode provir do apetite sensível, porque a apreensão sensível não se pode estender à consideração da proporção de uma coisa a outra, o que é próprio da razão. Daqui deve-se inferir que a justiça não pode estar no irascível ou no concupiscível como em seu sujeito, mas somente na vontade (95).

Há três diferenças entre a justiça e as demais virtudes morais como a fortaleza e a temperança. A primeira é que a fortaleza e a temperança são acerca das paixões, enquanto que a justiça é acerca das operações; na fortaleza e temperança se considera principalmente como o homem é interiormente disposto segundo as paixões, enquanto que aquilo que exteriormente opera não é considerado senão como algo conseqüente, na medida em que as operações exteriores provém das paixões interiores; na justiça, entretanto, leva-se principalmente em consideração aquilo que o homem exteriormente opera, enquanto que como ele está interiormente disposto não é considerado senão por conseqüência, na medida em que alguém é ajudado ou impedido pelas suas disposições interiores acerca das operações (96). De fato, segundo as paixões interiores, que são moderadas pela fortaleza e temperança, considera-se a retificação do homem em si mesmo; pelas ações exteriores e pelas coisas exteriores, que os homens podem comunicar entre si, é tomada a ordenação de um homem a outro. Portanto, como a justiça se ordena ao outro, não será acerca de toda a matéria da virtude moral, mas apenas acerca das ações e coisas exteriores segundo a razão especial de seu objeto, isto é, na medida em que segundo elas o homem se ordena a outro (97).

A segunda diferença entre a justiça e as demais virtudes morais como a fortaleza e a temperança é que na fortaleza e temperança o termo médio da virtude é determinado pela razão em relação a nós; já na justiça o termo médio é tomado em relação à coisa (98). De fato, as outras virtudes morais além da justiça são principalmente acerca das paixões, cuja retificação é tomada em relação ao próprio homem de quem são estas paixões, na medida em que este homem se ira ou cobiça do modo devido segundo as diversas circunstâncias; portanto, o termo médio de tais virtudes não é tomado segundo a proporção de uma coisa a outra, mas somente por comparação ao próprio virtuoso. Já a matéria da justiça é a operação exterior, segundo a qual a operação ou a coisa da qual nós fazemos uso possui uma devida proporção a uma outra pessoa; por isso o termo médio da justiça consiste em uma certa proporção da coisa exterior à pessoa exterior, de onde que a razão determinará o termo médio da justiça na coisa, e não em relação a nós (99).

A terceira diferença entre a justiça e as demais virtudes morais está em que a justiça, ao contrário das demais virtudes, que são um termo médio entre duas malícias, é um termo médio mas não entre dois vícios opostos. A justiça é um termo médio entre fazer o injusto e padecer o injusto; fazer o injusto é ter mais do que é devido enquanto que padecer o injusto é ter menos do que a si é devido por ser disto privado por alguém; o ato da justiça é fazer o igual, que é o termo médio entre o mais e o menos. Ora, fazer o injusto pertence à malícia, que é a injustiça, mas padecer o injusto não pertence a nenhuma malícia, sendo mais uma pena sofrida do que uma malícia (100).

Cabe à virtude da justiça não somente produzir as ações justas, pelas quais nos ordenamos retamente aos outros, mas também proferir julgamentos corretos.

No seu uso mais comum, a palavra julgamento significa a correta determinação de qualquer coisa, tanto no que é especulativo como no que é prático; entretanto, segundo seu primeiro significado, julgamento significa a correta determinação do justo. Tomado neste sentido, o julgamento é um ato da virtude da justiça (101), porque definir algo corretamente em qualquer obra da virtude é coisa que procede do próprio hábito da virtude; assim como o casto é quem determina corretamente aquilo que pertence à castidade, assim também o julgamento, que importa na correta determinação do que é justo, é algo que pertence propriamente à virtude da justiça (102). Na medida em que o julgamento é um ato da razão prática, é um ato da prudência; mas na medida em que para proferir este julgamento é necessário possuir a idoneidade que predispõe ao julgamento correto, o julgamento é ato da virtude da justiça (103).

O exercício da virtude da justiça, diz o Comentário à Ética, é mais difícil do que o exercício da arte da Medicina. Nem todos reconhecem isto, e algumas pessoas pensam não ser necessária grande virtude para conhecer o que é justo e injusto, bastando para isto entender as coisas que são ditas pela lei, que é o direito positivo. Mas estas pessoas, continua o Comentário, se enganam, porque a letra da lei, considerada de modo simples, não é o Direito a não ser circunstancialmente. O verdadeiro Direito consiste em operar e distribuir, isto é atribuir, de modo correto, os negócios e as pessoas. Ora, acomodar convenientemente os negócios e as pessoas é mais trabalhoso e mais difícil do que conhecer o que é sanativo, em que consiste toda a arte da Medicina, pois é maior a diversidade das coisas voluntárias nas quais consiste a justiça do que a das compleições em que consiste a saúde (104). Por isso é que os homens, quando duvidam do termo médio entre o lucro e o prejuízo, recorrem ao juiz (105): o julgamento é o ato próprio do juiz enquanto juiz; a própria palavra juiz vem do latim judex que significa jus dicens, isto é, aquele que diz o justo (106). Quando as pessoas recorrem, porém, ao juiz, procedem da mesma maneira como se estivessem se refugiando no que é justo, porque o juiz para julgar corretamente deve ser como que animado pelo que é justo de tal modo que a sua alma seja totalmente possuída pela justiça (107); os homens, na verdade, recorrem ao juiz assim como a uma justiça personificada (108). E esta função do juiz, que exige dele uma alma tão impregnada pela justiça a ponto de torná-lo como que uma personificação desta virtude, é ato da virtude da justiça e é mais difícil do que a própria arte da Medicina.

Na verdade, a justiça tem lugar de preeminência entre todas as virtudes morais, não apenas por parte do sujeito, porque está numa parte mais nobre da alma, isto é, no apetite racional, ou seja, na vontade, enquanto que as demais virtudes morais estão no apetite sensível, ao qual pertencem as paixões, matéria das demais virtudes morais; mas também por parte do objeto, porque as outras virtudes são louvadas segundo o bem próprio do virtuoso, enquanto que a justiça é louvada na medida em que o virtuoso se encontra bem para com o outro: de fato, a justiça, de certa forma, é o bem do outro (109). Apesar da fortaleza dizer respeito a coisas mais difíceis do que a justiça, isto é, acerca dos perigos de morte, a fortaleza não é mais nobre do que a justiça, porque embora ela seja acerca de coisas mais difíceis, a justiça diz respeito a coisas melhores, sendo útil na paz e na guerra, enquanto que a fortaleza é útil apenas na guerra (110).



Referências

(92) Summa Theologiae, IIa IIae, Q. 57 a.1.
(93) Idem, IIa IIae, Q. 58 a.4. (94) Idem, IIa IIae, Q. 57 a.1. (95) Idem, IIa IIae, Q. 58 a.4.
(96) In libros Ethicorum Expositio, L. V, l. 1, 886.
(97) Summa Theologiae, IIa IIae, Q. 58 a.8.
(98) In libros Ethicorum Expositio, L. V, l. 1, 886.
(99) Summa Theologiae, IIa IIae, Q. 58 a.10 ad 1.
(100) In libros Ethicorum Expositio, L. V, l. 1, 886; l. 10, 993.
(101) Summa Theologiae, IIa IIae, Q. 60 a.1 ad 1.
(102) Idem, IIa IIae, Q. 60 a.1. (103) Idem, IIa IIae, Q. 60 a.1 ad 1.