VIII.3.

A causa primeira de todos os seres.

Vamos pois desenvolver um raciocínio, que não será propriamente uma prova da existência da causa primeira, mas ao longo do qual esbarraremos delicadamente várias vêzes na existência deste ente inteligente e imaterial que é a causa do ser de todas as demais coisas.

Partimos da natureza imaterial da inteligência humana, sobre que discutimos mais pormenorizadamente no capítulo IV. Na inteligência humana, de fato, observamos operações cujas características são tais que não poderiam ser realizadas por um órgão corporal; elas implicam, conforme comentamos no capítulo IV, a imaterialidade do intelecto do homem. Embora a inteligência necessite em suas operações dos dados da imaginação como de seu objeto, dados estes que são um prolongamento material das operações dos cinco sentidos, ela própria, entretanto, não é um órgão material; trabalha conjuntamente com o corpo, mas não é corpo, necessita da matéria para seu trabalho, mas não é matéria. Ressaltamos também no capítulo IV que para a maioria dos homens esta afirmação não é tão evidente porque eles pouco se preocupam, ao contrário dos filósofos, em cultivar até à excelência a faculdade do intelecto; ao contrário, utilizam-se da inteligência de um modo muito elementar e na maioria das vezes apenas para alcançar através dela pequenos objetivos imediatos da atividade corrente do dia a dia, quando ela muito se confunde com o próprio trabalho da imaginação, ou então em atividades um pouco mais complexas, mas em que a inteligência ainda assim se utiliza tanto do trabalho da imaginação que nem sempre se torna fácil ter uma percepção clara de seu trabalho próprio em meio à atividade da fantasia. De qualquer modo, é na atividade da inteligência, especialmente naquela virtuosamente cultivada, que se manifesta pela primeira vez ao homem a possibilidade de existência de um ente imaterial.

Já que, portanto, através da operação da inteligência, o homem pode apreender que a imaterialidade está entre as possibilidades do ser, não parece haver motivos para que se negue a possibilidade de existência de entes imateriais totalmente desvinculados da matéria, o que não é mais o caso do intelecto do homem. É importante compreender bem o alcance desta afirmação; não está se afirmando que tais entes existem de fato, mas sim que, se a inteligência do homem é verdadeiramente imaterial isto significa que a imaterialidade é uma possibilidade do ser, e, portanto, não há razão para ser impossível a existência de um ente imaterial que não seja o intelecto humano vinculado a um corpo. Mas o fato de uma coisa ser possível não significa que ela exista. Poderia, por exemplo, existir uma ave que fosse um animal racional tal como o homem; tal ave nunca foi vista até hoje; até prova em contrário, uma ave que seja um animal racional não existe; mas nada impede que ela venha a existir; sua existência é uma possibilidade. Assim também, se a imaterialidade da inteligência humana demonstra que a imaterialidade está dentro das possibilidades do ser, a existência de outras entidades imateriais além da inteligência humana é uma possibilidade. Se a possibilidade existe, suponhamos, apenas para fins de hipótese, que um ser assim existe de fato e que seja também uma inteligência, e consideremos como é que operaria uma tal inteligência, supondo que existisse. A hipótese de que um tal ser seria também uma inteligência é aqui, porém, uma hipótese apenas por uma questão de método; uma discussão mais ampla colocaria, como de fato o faz explicitamente S. Tomás de Aquino no seu Comentário ao Livro das Sentenças, que todo ser existente por si separado da matéria tem que ser necessariamente de natureza intelectual (6).

Uma inteligência totalmente desvinculada da matéria receberia em si mesma, tal como a inteligência humana, formas desprovidas de materialidade através das quais inteligiria. Isto seria para ela uma decorrência de sua própria natureza intelectiva, e nisto ela não diferiria da inteligência humana. Ambas perceberiam em si mesmas a existência de idéias destituídas de características materiais através das quais se dariam suas operações intelectivas.

Haveria, porém, uma diferença significativa. Na inteligência humana tais formas seriam provenientes dos dados da imaginação, sobre os quais, por abstração, a inteligência extrai estas formas inteligíveis por meio das quais ela apreende a essência das coisas. Inteligir por abstração dos dados da imaginação não é, para a inteligência humana, uma opção; sua operação é inteiramente dependente do trabalho da imaginação; ela não pode apreender idéias ora a partir dos dados da imaginação, ora diretamente de uma forma inteligível que não tenha sido abstraída dos dados da imaginação; até mesmo para trabalhar com idéias já possuídas ela necessita do trabalho paralelo da imaginação. Por isso é que, se lesamos o órgão em que se processa a atividade da fantasia impossibilitamos o trabalho da inteligência. A imaginação, portanto, ao mesmo tempo em que possibilita a atividade da inteligência no homem, se constitui num fator que a limita. O homem não pode apreender imediatamente uma forma imaterial, tem que abstraí-la dos dados da imaginação; formas muito abstratas não podem ser facilmente apreendidas, porque não são aquelas que são imediatamente contempláveis nos dados da fantasia.

Quando a inteligência não apenas apreende, mas também raciocina, então, embora a imaginação lhe auxilie o trabalho, ao mesmo tempo lhe impõe outros limites; a inteligência passa de uma idéia abstrata a outra, mas o movimento da fantasia deve acompanhar o movimento da inteligência, o que impõe uma certa lentidão ao pensamento, por ser o movimento da fantasia um movimento que se processa materialmente.

Se supusermos, porém, a existência de uma inteligência separada da matéria, todas estas limitações não existiriam. Uma inteligência separada da matéria apreenderia as formas abstratas diretamente; poderia, por isso mesmo, apreender-se a si própria por uma percepção direta, algo que, conforme explicado no final do capítulo IV, é vedado à inteligência humana. Nenhuma das limitações impostas pela imaginação à capacidade abstrativa do homem existiria para uma inteligência separada da matéria.

Isto não significa, porém, que apenas por ser separada da matéria uma inteligência não teria limitações. As limitações de uma inteligência separada da matéria seriam de outra natureza. Ela teria também limitações, mas apenas aquelas que lhe seriam impostas pela sua própria natureza imaterial. Para compreender isto é necessário perceber que na imaterialidade existe uma certa graduação. Isto já é um fenômeno observável na própria inteligência humana, pois todas as idéias existentes na mente humana são entidades imateriais, mas entre elas há idéias mais e menos abstratas; a partir do momento, portanto, em que supomos a possibilidade de uma entidade independente da matéria que seja uma inteligência, é necessário admitir também a possibilidade de uma gradação entre elas; todas elas são desvinculadas da matéria e nisto são todas igualmente imateriais, sem terem entre si gradação de mais e menos; mas na medida em que uma forma inteligível mais abstrata é dita mais distante da materialidade do que uma forma inteligível menos abstrata, embora ambas nada tenham de matéria, assim também deve-se admitir que pode haver uma gradação de imaterialidade entre as inteligências separadas da matéria.

Deste modo a capacidade de abstração, se é que ainda se pode usar convenientemente este termo, de uma inteligência separada da matéria é limitada apenas pela sua própria natureza, isto é, pelo seu próprio grau de imaterialidade, e não mais pelo trabalho da imaginação, como era o caso do homem.

Conclui-se também daqui que assim como a inteligência humana é mais intensamente ser do que os seres puramente materiais, estas inteligências separadas da matéria serão umas mais intensamente seres do que outras conforme o seu grau de imaterialidade.

Ademais, quanto maior o grau de imaterialidade, poderão inteligir através de formas mais abstratas e, por isso mesmo, mais gerais e universais.

Isto significa que, à medida em que uma é mais imaterial do que outra, e por isso mesmo, é mais intensamente ser do que outra, pela maior abstração das formas inteligíveis com que apreende, inteligirá mais profundamente com um menor número de formas inteligíveis um maior número de coisas do que outra, na proporção direta de seu maior grau com que participa do ser.

Toda esta argumentação não prova que existam as entidades que estamos descrevendo; se admitimos como certa a natureza imaterial da inteligência humana decorre apenas que a existência de tais entes faz parte das possibilidades do ser; estamos admitindo então a hipótese de que elas existam apenas para examinar quais seriam as conseqüências desta hipótese. A primeira conseqüência é a menor limitação da operação intelectiva destes entes decorrente da independência da matéria; a segunda é que tais inteligências não são todas de mesma natureza mas se distribuem em uma escala de imaterialidade crescente; a terceira é que o grau de imaterialidade de cada uma impõe um limite às suas operações intelectivas. À medida em que subimos na escala da imaterialidade destes entes é possível para eles inteligir mais profundamente um maior número de objetos com um menor número de formas inteligíveis cada vez menos limitadas. Nada impediria que chegássemos a uma inteligência com um grau tão elevado de imaterialidade que conseguisse inteligir, com um só ato da inteligência, a totalidade de todas as coisas. Novamente isto não significa que uma inteligência como esta tenha que existir; nada, porém, parece impedir que ela possa existir.

Suponhamos então, por hipótese, que exista uma tal inteligência, tão abstrata e imaterial que, com um só ato da inteligência, intelija a totalidade de todas as coisas. Se existisse um ser assim, além do fato dele inteligir a todos os demais entes com um único ato da inteligência, haveria alguma outra relação entre ele para com todos os demais entes? A resposta para esta pergunta é que, se existisse um ser assim, ele não somente inteligiria a todos os demais entes, mas também seria a causa de todos estes demais entes porque, se não fosse ele próprio a causa dos entes que intelige, nada impediria que num dado momento, independentemente dele, passasse a existir outro ente que ele não conhecesse.

Ademais, se esta inteligência fosse tal que pudesse conhecer todos os seres, conheceria a todos perfeitamente; pois se ela conhecesse todos os seres, mas não os conhecesse perfeitamente, isto significaria que na verdade ela não conheceria ainda todos os seres, pois aquilo que ela não conhecesse do ser que ela conhece imperfeitamente é também um ser. Segue-se daqui, portanto, que se por um ato de sua inteligência este ser é capaz de conhecer perfeitamente todos os entes, isto significa que sua inteligência esgota em si todas as possibilidades do ser; por esgotar em si todas as possibilidades do ser este ser seria o ser mais perfeito que poderia existir; e é por causa disto mesmo que poderia causar o ser de todas as demais coisas. Ademais, entre todos os seres, se existe algum ser que possa esgotar em si todas as possibilidades do ser, que é uma condição necessária para existir uma causa para o ser de todas as coisas, este ser que esgota todas as possibilidades do ser não pode ser um ser puramente material, mas teria que ser necessariamente uma inteligência, pois as inteligências são mais intensamente seres do que os seres materiais.

Todo este argumento não possui ainda força suficiente para provar que um ser assim exista de fato; um ser assim está dentro das possibilidades do ser, e, ademais, se existir uma causa para o ser de todas as coisas, esta causa tem que ter esta natureza que acaba de ser descrita; mas, conforme dizíamos, ainda não é possível mostrar com tudo isto que de fato esta causa existe.

Entretanto, ainda admitindo a hipótese que de fato seja assim que as coisas se dão na realidade, é importante ressaltar que esta hipótese explicaria certas observações a respeito da natureza que de outra maneira seriam inexplicáveis. Estamos nos referindo de maneira especial a algo que consta ter sido reportado na história da filosofia pela primeira vez por um pré-socrático chamado Parmênides. No Livro das Tapeçarias, Clemente de Alexandria relata que Parmênides teria afirmado que

"o mesmo é o ser e o pensar" (7).

Esta afirmação tem uma notável semelhança com a dos escolásticos segundo a qual o ser e o verdadeiro se convertem, isto é, que todo ser é necessariamente inteligível e tudo o que é inteligível pode existir. Se, talvez, com sua afirmação, Parmênides não tenha querido dizer exatamente a mesma coisa que os escolásticos, pode-se pelo menos afirmar que parece ter sido ele o primeiro filósofo que se deparou, de alguma maneira, com a questão da inteligibilidade do ser. Tais afirmações significam a conveniência de todos os seres à inteligência; que todos os seres são inteligíveis não por alguma qualidade que se lhes acrescente, mas apenas porque são seres; que há alguma coisa igual na estrutura fundamental dos seres reais e na estrutura fundamental da inteligência; que há leis fundamentais comuns a todos os seres reais que são também leis fundamentais para a inteligência enquanto inteligência e vice versa; ou ainda, que o que é impossível para a inteligência enquanto inteligência é também impossível para os seres enquanto seres e vice versa.

Antes de prosseguirmos, portanto, devemos nos perguntar o que entendemos por algo ser impossível para a inteligência enquanto inteligência. Esta pergunta é fundamental porque ela esclarece todo o sentido da observação feita por Parmênides e pelos escolásticos e condensados nas fórmulas "o mesmo é o ser e o pensar" e "o ser e o verdadeiro se convertem".

Dizemos ser impossível para a inteligência enquanto inteligência aquilo que contraria uma evidência da mesma. Ora, o que a inteligência apreende como evidente são os primeiros princípios das demonstrações; todas as demais evidências da natureza intelectiva são evidências por redução à evidência dos primeiros princípios das demonstrações. Neste sentido, é dito ser impossível para a inteligência enquanto inteligência aquilo que envolve uma negação dos primeiros princípios que regem sua atividade racional. Não é impossível, neste sentido, para a inteligência, conceber um homem com mais de uma cabeça; um ser humano com várias cabeças seria uma coisa estranha e que nunca consta ter sido vista, a não ser talvez como uma anomalia congênita; não existe uma raça humana cuja característica seja a de possuir duas ou mais cabeças; tal raça não existe e nunca foi vista, mas se existisse isso não envolveria uma negação dos primeiros princípios das demonstrações. Coisas como estas não existem, mas nada impediria que existissem se a ordem natural fosse diferente; acostumados como estamos à ordem presente da natureza, fica difícil pensar como seria a vida de uma sociedade em que os homens tivessem várias cabeças, mas, apesar disso, não se tratam de coisas em si mesmas impensáveis. Coisa muito diversa ocorre quando nos defrontamos algo que envolve uma negação dos primeiros princípios do intelecto; neste caso estamos diante de algo impensável simplesmente falando. Por exemplo, algo ser e não ser uma mesma coisa ao mesmo tempo é impensável simplesmente; um fato que aconteceu passar a jamais ter acontecido é também outra coisa impensável simplesmente. A negação dos teoremas da matemática, admitida a evidência das hipóteses, é também outro exemplo de coisas simplesmente impensáveis; a geometria prova que a soma dos ângulos internos de um triângulo é sempre 180 graus; a existência de um triângulo cujos ângulos internos quando somados resultassem num total superior ou inferior a 180 graus envolveria uma contradição da evidência dos primeiros princípios em que se baseia a dedução realizada pela geometria; um triângulo assim seria uma coisa impensável simplesmente.

Porém o que a realidade mostra é que, apesar de impensáveis, estas coisas jamais também foram vistas. Nunca se viu algo ser e não ser uma mesma coisa ao mesmo tempo; nunca se viu algo que aconteceu passar a jamais ter acontecido; e nunca se viu em lugar algum um triângulo que tivesse uma soma de ângulos internos maior do que 180 graus.

Tais constatações podem à primeira vista ser consideradas como fatos tão evidentes que não necessitam de uma explicação. Quando, porém, passa-se a examinar melhor o assunto, verifica-se que não se trata de algo tão evidente. Pois que uma coisa envolva uma contradição dos primeiros princípios do intelecto e portanto seja ininteligível por causa desta razão é uma propriedade que pertence ao mundo da inteligência. Significa que há coisas que a inteligência não é capaz de apreender. A inteligência não é capaz de apreendê- las não porque isto lhe seja difícil, mas porque para o pensamento trata-se de uma coisa impossível em si mesmo. Mas se o pensamento não é capaz de conceber tais coisas, isto não deveria significar que elas não pudessem existir. É, porém, o contrário o que se verifica, porque além de tais coisas nunca terem sido vistas, ninguém também tem esperança de que algum dia venham a sê-lo.

Cabe então a pergunta: por que não pode existir alguma coisa que a mente humana seja radicalmente incapaz de apreender, se esta limitação é uma limitação que parece que deveria ser apenas da inteligência? Por que esta limitação parece ser também uma limitação da realidade, se a realidade não é uma inteligência? Por que alguém não poderia ver diante de seus olhos algo que a inteligência fosse capaz de provar que para ela se trata de uma contradição mas que, apesar disso, já que a realidade não é obrigada a ter as restrições próprias da inteligência, ela seria capaz de produzir? Uma contradição dos primeiros princípios da inteligência é, como o próprio nome indica, algo que, por sua natureza, não pode existir no mundo inteligível. Por que, porém, também não pode existir no mundo real? Existiria então uma relação mais profunda entre o mundo inteligível e o mundo real conforme apontado por Parmênides e os escolásticos?

Não foram porém apenas Parmênides e os escolásticos que afirmaram isso; quase todos nós, algum dia, também o afirmamos. Isto certamente ocorreu, por exemplo, quando alguém, refletindo sobre algum assunto, e chegando à conclusão de que o raciocínio feito envolve uma contradição, afirma simplesmente:

`Isto não existe'.

Ele não diz:

`Isto é impensável'.

Aparentemente esta última afirmação deveria ser a única coisa a que se teria direito de dizer. Mas quando nos vemos diante destas contradições, o que fazemos é pular da conclusão que afirma que "isto é impensável", diretamente para a conclusão que diz que "isto não pode, em hipótese alguma, existir".

Chegamos, assim, a uma conclusão digna de muita atenção: a realidade e a inteligência parecem estar seguindo as mesmas leis fundamentais.

É importante mostrar que este fato é um desafio insolúvel para todas as ciências modernas. Não há nenhuma ciência que possa fornecer uma explicação para este fenômeno. Ao dizermos que não há ciência que explique este fenômeno, esta afirmação tão categórica não procede de nenhum desprezo das ciências modernas em favor da filosofia antiga ou preconceitos similares. Ao contrário, dizemos que este fato não pode ser explicado por nenhuma ciência, qualquer que seja o estágio de desenvolvimento em que ela se encontre, porque este fato é algo que transcende em sua natureza o âmbito de todas as ciências; somente a Metafísica pode fornecer uma explicação satisfatória para este fenômeno.

Vejamos, senão, alguns exemplos.

O biólogo poderia tentar enquadrar o fenômeno dentro do âmbito da teoria da evolução. Segundo a teoria da evolução, diria o biólogo, todo ser vivo, animal ou vegetal, produz descendentes que podem estar sujeitos a mutações genéticas. Quando, por acaso, tais mutações são melhor ambientadas ao mundo que os cerca e os torna mais aptos para a luta pela sobrevivência, isto faz com que sobreviva o animal mais apto em detrimento do animal menos apto. Desta maneira ocorre uma seleção natural em favor dos seres superiores na escala da evolução.

Por que o homem, por exemplo, diz o biólogo, não enxerga por meio da vista os raios X, mas apenas a luz nos comprimentos de onda normalmente emitidos pelos objetos à sua volta? A razão é a seguinte: se tivesse existido alguma vez algum animal dotado de visão de raios X, ou se tivesse pelo menos começado a haver uma mutação genética neste sentido, este animal nada veria ou pelo menos veria menos do que os outros, já que os corpos na superfície da terra não emitem raios X, e, portanto, um animal com estas qualidades nada teria para ver ou veria pior do que os outros. Com isso, sua espécie seria devorada pela espécie dos outros animais que enxergassem de fato ou que enxergassem melhor. Os animais, porém, que fossem capazes de enxergar as coisas ao seu redor, isto é, aqueles que fossem capazes de enxergar no espectro dos comprimentos de onda correspondentes à luz visível, poderiam se defender com mais facilidade dos ataques dos animais que nada ou pouco enxergam e apenas se orientam pelo tato.

É por argumentos semelhantes a este que a teoria da evolução explica porque o homem está adaptado a digerir justamente os alimentos que a natureza oferece à sua volta, porque enxerga justamente nas frequências de onda de luz que os objetos à sua volta emitem, porque ouve justamente os sons nas frequências em que os principais acontecimentos à sua volta provocam ruído, porque respira justamente o ar na composição que a atmosfera oferece, etc..

Seria de se esperar, portanto, que a mesma explicação funcionasse para o caso da inteligência. Pelo mecanismo da seleção natural teria-se originado no homem uma inteligência que segue as mesmas leis do ambiente que o cerca. Se alguma vez tivesse havido algum animal cuja inteligência não estivesse em harmonia com as leis do mundo à sua volta, ou mesmo tivesse apenas começado a sofrer alguma mutação genética neste sentido, este animal teria perecido na luta pela sobrevivência.

Tal seria o argumento que surgiria espontaneamente na mente de um biólogo; ocorre, porém, que um argumento como este é convincente apenas num primeiro momento; na verdade, ele não fornece explicação para a questão da inteligibilidade do ser. Pois em todos os casos de seleção natural o modo de operar desta seleção natural é tal que produz um modo de seleção apenas entre as capacidades de sobrevivência adaptadas em relação ao meio ambiente diretamente em contato com o animal, porque é com este meio ambiente imediatamente próximo ao animal que o animal luta e perece em sua espécie se não for capaz de se adaptar, ou continua existindo se for capaz. Assim é que o homem está adaptado para viver à pressão próxima daquela encontrada na atmosfera terrestre ao nível do mar, que é o seu ambiente imediato. Conduzido apenas a alguns quilômetros acima do solo ou alguns metros abaixo da superfície da água, (e o que é isto diante das dimensões do universo?), a diferença de pressão lhe será fatal. Da mesma forma, o homem somente pode se alimentar das substâncias químicas produzidas pela natureza; se entrasse em um laboratório químico em que se produzissem substâncias artificiais e as ingerisse a esmo provavelmente morreria envenenado. Igualmente, se a temperatura ambiente passar de 25 para 70 graus centígrados, poucos graus acima da máxima temperatura observada na superfície da terra, uma pequeníssima fração diante da escala possível de temperaturas, o homem morre.

Mas não é assim no caso da inteligência. Em qualquer lugar do espaço, em qualquer lugar do Universo, em qualquer época da história ou em qualquer era geológica, em qualquer pressão e temperatura, o que é uma contradição dos primeiros princípios do intelecto não existe.Seria pedir muito que a seleção natural, obrigando o homem por um método na verdade tão primitivo e limitado a lutar pela sobrevivência junto apenas ao seu reduzidíssimo meio ambiente tivesse produzido uma qualidade tão ilimitada, em que mais parece que o homem estivesse lutando pela sobrevivência não na face da Terra, mas simultaneamente na totalidade da extensão do Universo e contra todas as possibilidades do ser.

Vimos o que o biólogo teria a dizer para explicar o problema da inteligibilidade do ser. Vejamos o que o físico teria a declarar.

Um físico tentaria enquadrar o fenômeno por um ângulo totalmente diverso. O biólogo concordaria com o princípio de Parmênides; de fato, o ser e o pensar são o mesmo, a observação de Parmênides é correta, mas, diria o biólogo, não há nada de transcendente nisto, a teoria da evolução explica. O físico, ao contrário, negaria a validade do princípio. A inteligência não está adaptada, diria o físico, de maneira alguma, a todos os seres do Universo. A Biologia desconhece, enquanto tal, este fato, diria o físico, mas não a Física. De fato, quando a Física começou, por volta de 1900, a estudar os átomos, e depois as partículas sub atômicas e posteriormente as partículas elementares, descobriu um mundo tão pequeno com que nossa inteligência no seu dia a dia não pode ter contato direto, e com o qual nunca tomou contato em momento algum durante toda a história evolutiva, a não ser algumas poucas vezes nos laboratórios de Física nos últimos 80 anos. O mundo das partículas sub atômicas e elementares, portanto, é um mundo que não faz parte do ambiente em que evoluiu a inteligência humana e, de fato, continuaria a dizer o físico, nele se observa muita coisa que afronta o bom senso intelectual. Há coisas no mundo sub atômico que são um desafio à lógica, e no entanto elas estão ali. Diante destes fatos, diz o físico, o princípio da conveniência de todo ente com a inteligência simplesmente se desvanece pela própria força dos contra exemplos.

São considerações como estas que viriam espontaneamente ao pensamento de um físico moderno se ouvisse a exposição do princípio de Parmênides. Segundo este princípio afirmamos que todo ente é necessariamente inteligível apenas por ser ente, nada mais necessitando que se lhe acrescente para ser inteligível; dissemos, ademais, que nenhuma ciência além da metafísica é capaz de dar uma explicação satisfatória para este fenômeno porque ele é de tal natureza que em sua amplitude ultrapassa o âmbito de todas as ciências particulares. Mostramos em seguida como a explicação do biólogo não é satisfatória; mas agora o físico, em vez de tentar uma explicação, afirma, ao contrário, ter elementos para mostrar com exemplos que tal princípio é falso.

Não será possível discutir neste trabalho a colocação do físico com os detalhes que seriam exigidos para bem fundamentar quanto vamos dizer; fazer isto requereria escrever um tratado de Física Moderna, e com isto extrapolaríamos as intenções do presente capítulo. Mas é tão importante mencionar a natureza do que se pode responder a uma colocação como esta que mesmo sem poder fundamentar devidamente a resposta julgamos dever fazê-lo.

Que dizer, pois, do argumento do físico? Quando os físicos trabalham, primeiramente observam um fenômeno no laboratório e depois, sobre este fenômeno, constróem uma teoria que é geralmente um modelo matemático daquele fenômeno. Por exemplo, observa o desvio de uma partícula; este é o fenômeno. Supõe depois que existem forças atuando sobre ela e elabora uma fórmula matemática que dê a expressão desta força; este é o modelo que descreve o fenômeno e do qual o físico se utiliza para explicá-lo. Ora, se fizéssemos uma análise dos contra exemplos que a Física teria a apresentar ao princípio de Parmênides, constataríamos que os desafios à lógica não aparecem nos fenômenos, mas nos modelos. Como se tornou quase uma segunda natureza para os que se dedicam à Física tomarem os modelos pelas realidades, ainda que freqüentemente se esforcem por não fazê-lo, isto faz com que se produza a impressão de que o que ocorre nos modelos seja também o que ocorre na realidade. Um excelente exemplo disto é o próprio primeiro modelo daquilo que depois veio a se tornar a Mecânica Quântica; em 1900, vendo que a Física tradicional não conseguia explicar a radiação emitida por um corpo negro aquecido a altas temperaturas, ou um forno completamente fechado com uma pequena abertura pela qual se emite radiação para o meio ambiente, Max Planck propôs um modelo segundo o qual os elétrons que vibram no corpo negro ou dentro do forno e que produzem as radiações emitidas saltavam de uma frequência vibratória a outra não só sem passarem pelas frequências intermediárias como também sem que pudessem fazê-lo, o que parecia ser um atentado à apreensão da inteligência; com isto, porém, explicava-se o espectro das radiações emitidas pelo corpo negro ou pela abertura existente no forno. Cinco anos depois, porém, A. Einstein propôs um outro modelo; segundo este as radiações não eram ondas eletromagnéticas, mas feixes de partículas às quais ele deu o nome de fótons; fazendo esta hipótese, conseguiu calcular o espectro das radiações emitidas pelo corpo negro sem o aparente atentado à razão envolvido na teoria de Planck (8). Em ambos os casos, tratava-se do mesmo fenômeno e de dois modelos diferentes. O primeiro explicava o fenômeno, mas parecia envolver um atentado à inteligência; sem mudar o fenômeno, o segundo produziu outra explicação que não violava mais o bom senso. Não era, de fato, o fenômeno que atentava à inteligência, mas o modelo. O mesmo pode ser dito de muitos outros exemplos que poderiam ser dados se isto não extrapolasse os objetivos do presente capítulo. Deve-se, ademais, mencionar que muitos exemplos apontados pelos textos de Física moderna como atentatórios ao bem senso não envolvem de fato uma contradição dos primeiros princípios mas apenas um comportamento diverso do que se observa no mundo cotidiano dos homens. Fica assim a conclusão, não suficientemente demonstrada, é verdade, por causa dos limites deste trabalho, que, ao que consta, nunca foi observado nenhum fenômeno nem nenhum ente, nem mesmo na Física das partículas sub atômicas, que em si contivesse alguma contradição dos primeiros princípios do intelecto.

Poderíamos ainda, não fossem novamente os limites do presente capítulo, levantar um maior número de possíveis explicações para o princípio de Parmênides inspirados em argumentos destas ou de outras ciências, em todos os casos para mostrar em seguida que não se tratam de explicações satisfatórias. Ver-se-ia assim como é uma questão aberta para as ciências o problema de se explicar a conversibilidade entre o ser e o verdadeiro. Todo ser, somente pelo fato de ser, é apenas por isto mesmo necessariamente inteligível; e tudo o que é inteligível, é apenas por isto mesmo, possível de existir. A mesma coisa não é verdade em relação a outras propriedades. Não são todos os seres visíveis, apenas porque existem. Não são todos os seres audíveis, apenas porque existem. Não são todos os seres mensuráveis, apenas porque existem. Mas por que todos os seres tem que ser inteligíveis, apenas porque existem, é, de fato, diante das possibilidades de explicação das ciências, um enigma. O homem pode ter-se adaptado por meio de sua inteligência ao meio ambiente. Pode ter-se inclusive adaptado ao Universo inteiro. Mas, mesmo que este tenha sido o caso, se é que o foi, por que é que não pode surgir aqui e agora, depois de acabada esta adaptação, um ser totalmente novo no Universo, um ser que jamais tenha existido antes e para o qual, portanto, a inteligência humana não tenha podido ter sido adaptada, e que fosse um atentado aos primeiros princípios do intelecto?

A única explicação satisfatória, o que não quer dizer ainda que ela seja verdadeira ou que seja mais do que um modelo, é aquela segundo a qual a realidade é um produto daquela inteligência que esgota em si todas as possibilidades do ser; sendo produto desta inteligência que é maximamente ser, a realidade está seguindo leis fundamentais que são leis daquele ser, isto é, leis do mundo inteligível; segundo esta explicação, a inteligência humana é algo intermediário entre o mundo material e aquela inteligência que esgota em si as possibilidades do ser e é por isso que diante da inteligência humana as leis fundamentais da realidade têm uma evidência que na própria realidade elas não têm. Com isto não se demonstra que esta explicação seja a verdadeira, mas o fato é que para esta explicação não há réplica, como o há para a explicação proveniente da teoria da evolução ou para a explicação proveniente da Física das partículas sub atômicas. A única objeção possível é que, com o que argumentamos até agora, não se demonstra a veracidade desta explicação, o que de fato é assim, pois até aqui apenas demos argumentos de possibilidade e plausibilidade, não de factualidade.

Supondo provisoriamente que esta explicação seja a correta, temos nela um exemplo da analogia do ser.

Segundo a teoria da analogia do ser, o ser não se predica de modo unívoco de todos os entes; há entes que são mais ser do que outros.

O ser se predica de alguns entes de um modo apenas parcial em relação a como se predica de outros que são mais ser do que os anteriores. Os entes que são mais intensamente ser do que outros em parte são e em parte não são ser no mesmo sentido que os que são ser menos intensamente.

Alguns entes são ser apenas em parte, outros são mais totalmente, outro, enfim, não é ser em parte, mas é plenissimamente ser, esgotando em si todas as possibilidades do ser.

Neste sentido, as inteligências participam mais do que os entes materiais da plenitude do ser, porque se aproximam mais da natureza do ser que ultrapassa todos os entes por esgotar em si todas as possibilidades do ser. Todos os entes recebem o ser deste primeiro ser e dele recebem uma parte das possibilidades do ser que ele contém, uns mais, outros menos.

Pelo fato das inteligências mais participarem do ser da causa primeira, a relação de todos os entes para com a causa primeira tem uma certa analogia com a relação dos entes materiais para com as inteligências; todos os entes recebem uma parte das possibilidades da causa primeira; os seres materiais recebem uma parte das possibilidades que recebem as inteligências; deste modo, assim como todos os entes têm que seguir leis fundamentais que são próprias da causa primeira, assim também os entes materiais estão seguindo algumas leis que são leis próprias do mundo inteligível, não necessariamente apenas da causa primeira, mas das inteligências em geral. De fato, os primeiros princípios das demonstrações, apesar de seguidos por todos os entes, são na verdade leis próprias do mundo inteligível. O próprio modo como se procede ao especular sobre estes princípios faz perceber que se tratam de propriedades do mundo inteligível.

É assim que, por exemplo, quando Aristóteles na Metafísica indaga se o estudo dos primeiros princípios das demonstrações são objeto da Metafísica, ele afirma que sim, porque o estudo destes princípios é próprio da ciência que estuda o ser enquanto ser, já que eles também são princípios do ser enquanto ser, e não apenas das demonstrações:

"Estes princípios abarcam a todos os seres
e não apenas a um ou outro gênero do ser,
e todas as ciências se servem deles
porque são próprios do ser enquanto ser.
Portanto, ao ser evidente
que se dão nos seres enquanto seres,
seu estudo pertence àquela ciência
cujo objeto próprio é conhecer o ser enquanto ser;
é por isso que ninguém
dos que estudam os seres em particular
tenta dizer nada sobre se estes princípios
são ou não verdadeiros"
(9).

Nesta passagem Aristóteles evidencia que tais princípios são princípios de todos os seres, e não apenas das demonstrações. No que dependesse desta passagem, portanto, não parece que poderia se inferir que fossem algo próprio do mundo inteligível, nem do mundo material, mas algo comum a todos os seres. Esta impressão, porém, passa para um segundo plano quando Aristóteles começa a procurar quais sejam estes princípios; ele faz isto elencando uma série de qualidades que estes princípios deverão ter para poderem ser primeiros princípios; nestas qualidades se evidencia que os princípios que ele está procurando são princípios próprios do mundo inteligível, pois os requisitos que os candidatos a primeiros princípios devem preencher, segundo Aristóteles, são os seguintes:

  • Que sejam os princípios mais certos do que todos;

  • Que sejam aqueles sobre os quais seja impossível enganar-se;

  • Que sejam aqueles que sejam conhecidos em grau máximo;

  • Que não sejam hipotéticos;

  • Que seja necessário conhecê-los para conhecer qualquer coisa;

  • Que seja necessário abordar qualquer assunto de estudo já possuindo o conhecimento destes princípios (10),

todas estas sendo características próprias do mundo inteligível, não do mundo material.

Os seres materiais, portanto, ao seguirem tais princípios, estão como que seguindo uma regra que não é própria deles, mas de outros, como se esta regra fosse de uma natureza anterior à deles e se lhes estivesse sendo imposta de fora.

Na verdade o que acontece é que os seres materiais estão seguindo princípios que são princípios de todos os entes enquanto tais; porém, como as inteligências são mais intensamente seres do que os entes materiais, elas participam, por isso mesmo, mais intensamente das propriedades do ser enquanto tal do que os entes materiais; nelas, portanto, brilha mais intensamente a evidência destas propriedades do que nos seres materiais; estas propriedades lhes são, neste sentido, mais próprias. Por isso é que os seres materiais, embora estejam seguindo as propriedades do ser enquanto ser, parecem estar seguindo princípios de entes de outra natureza, como se isto lhes estivesse sendo imposto de fora. Neste sentido o mundo inteligível parece algo de natureza anterior ao mundo material, pois aquilo que segue uma lei de outro, supõe que o outro lhe seja anterior.

Mas, por outro lado, a inteligência humana é evidentemente posterior no tempo ao mundo material, pois ela requer, em seu operar, o mundo material como algo que lhe seja anterior. A inteligência humana requer, de fato, em primeiro lugar, ao próprio corpo material; depois, requer órgãos dos sentidos; requer ainda a faculdade da imaginação; e tudo isto pode operar de modo perfeito sem a existência da inteligência, como se observa ser o caso dos animais. Sem corpo, sentidos e imaginação, porém, a inteligência humana não opera. Ora, tudo aquilo que para existir, ou pelo menos para operar, necessita de outros, os quais, porém, podem existir e operar por si sós, é necessariamente posterior no tempo. De argumentos como estes pode-se deduzir, independentemente da evolução, que o homem é, por natureza, o último ser que desponta no tempo.

Como é possível então que uma lei que é própria da inteligência, manifestamente posterior às demais coisas, estar sendo imposta com natureza de anterioridade a todas as demais coisas que já existiam quando ela ainda não existia?

E, mesmo que as inteligências fossem anteriores no tempo, há ainda o problema de que elas não têm força para imprimir suas propriedades nas coisas, mas apenas para perceber suas evidências.

Parece razoável, portanto, deduzir que os entes estejam recebendo estas propriedades de alguma outra causa que tenha estas mesmas propriedades num grau mais elevado do que as inteligências que nós conhecemos, tão mais elevado que possa imprimí-las nos entes. Esta causa será um ente que tenha estas propriedades que pertencem ao mundo inteligível num grau mais elevado para que possa causar a obediência das coisas a estas leis.

Estas leis, porém, já vimos que são leis inerentes ao ser, isto é, são leis do ser enquanto ser.

Portanto, a causa capaz de imprimir estas propriedades nos entes deverá ser capaz também de causar o ser de todas as coisas, pois estas propriedades são inseparáveis do ser. Se as coisas recebem o ser, recebem necessariamente estas propriedades, e não necessitam de outra causa que as imprima após terem recebido o ser. Se elas não recebem o ser, não podem ter estas propriedades sem o ser. A causa, portanto, capaz de imprimir estas propriedades nos seres é também causa capaz de causar o ser de todas as coisas.

Parece existir, portanto, uma causa primeira de todas as coisas que é ao mesmo tempo maximamente ser e maximamente inteligência. Nela ser e natureza inteligível se convertem perfeitissimamente; a conversibilidade entre o ser e o verdadeiro que se observa em todos os demais entes e a evidência dos primeiros princípios do intelecto na inteligência humana não seria nada mais do que participações, em graus diversos, da natureza da causa primeira nos diversos demais entes.

Assim, do fato de que os seres materiais possuem uma participação de propriedades que são de natureza inteligível deduzimos estarem eles seguindo uma regra que não lhes é própria; as inteligências possuem estas propriedades de uma maneira mais própria do que as coisas materiais; mas, uma vez que elas manifestamente são incapazes de causá-las nos seres materiais, parece inferir-se daí a existência de uma causa de natureza inteligível mais elevada do que as inteligências que conhecemos, que é a causa da inteligibilidade dos entes materiais e, por conseqüência, também do ser delas, pois a inteligibilidade é propriedade do ser enquanto ser. Daqui a inferência segundo a qual este ser que causa a inteligibilidade dos entes materiais não apenas é inteligência mas também ser em grau máximo.

Cumpre observar que se este argumento é válido dele não se deduz diretamente que esta inteligência que possui o ser em grau máximo seja também causa do ser das inteligências; o que se deduz é que, para causar o ser dos entes materiais ela tem que ser uma inteligência mais elevada do que as demais inteligências; mas nada impediria, pelo que dissemos até agora, que estas inteligências intermediárias tivessem um ser autônomo que não necessitasse de causa; pode- se, porém, de outro modo, mostrar que isto não é assim.

Quando se parte dos entes materiais e se sobe na escala do ser, passamos aos entes de natureza inteligível em que, além de possuírem ser, pelo seu caráter inteligível são capazes de perceber a evidência de certas propriedades do ser das coisas a que chamamos de primeiros princípios do intelecto. Entretanto, o ser e a percepção intelectiva destes princípios do ser não são atributos totalmente diferentes. Trata-se da mesma realidade que, à medida em que se intensifica, começa a participar mais abundantemente da plenitude do ser. As inteligências inteligem porque são seres mais intensamente; são entes suficientemente intensos a ponto de perceberem a evidência das propriedades do ser que são capazes de inteligir, mas não a ponto de serem a causa da evidência destas propriedades.

Não é, porém, só porque não são capazes de causar a evidência das propriedades do ser, mas apenas de percebê- las, que as inteligências que nós conhecemos ocupam um lugar inferior à causa primeira na escala do ser. Elas ocupam o lugar inferior em que estão também porque não são capazes de perceber a evidência de todas as propriedades do ser, mas apenas de uma pequena parte. Os entes materiais não percebem evidência nenhuma. A inteligência humana percebe a dos primeiros princípios, mas não percebe, por exemplo, a evidência intelectiva da existência das coisas.

De fato, a existência das coisas não é imediatamente evidente para a inteligência humana; a existência das coisas é inferida pela inteligência de modo indireto a partir dos dados dos sentidos. Não se trata de uma evidência intelectiva de natureza imediata, como a evidência dos primeiros princípios, os quais percebemos que tem que ser daquele modo necessariamente. É principalmente através da vida sensorial que nos relacionamos com a realidade concreta das coisas; para nosso intelecto a existência destas coisas com que nos relacionamos através dos sentidos é uma inferência; ao apreendermos indiretamente pela inteligência esta existência, não percebemos nela nenhuma evidência intelectiva de sua necessidade como aquela evidência da necessidade que contemplamos nos primeiros princípios.

É manifesto, porém, que em sua própria natureza as coisas se comportam diversamente. Os entes podem ser necessários ou contingentes, mas, a partir do momento em que eles existem, eles existem necessariamente. Para nosso intelecto, porém, não se nos mostra nenhuma evidência intelectiva imediata dessa necessidade, nenhum fundamento para percebermos a necessidade da existência das coisas. É por isso que a seguinte pergunta, quando bem compreendida em sua profundidade, é tão misteriosa:

Por que as coisas existem,
e simplesmente não voltam ao nada?

Ao receber o impacto de uma pergunta como esta, a inteligência humana simplesmente cai num vácuo. Ela percebe, ainda que não o saiba explicar, que a partir do momento em que as coisas existem, elas existem necessariamente, e é por isso que elas não voltaram ao nada no momento em que a pergunta foi feita. Mas, ao mesmo tempo, não lhe é possível perceber a evidência nem de uma causa externa nem de uma necessidade intrínseca para os seres existirem. Os seres aparecem à inteligência humana como contingentes, como entidades que podem ser mas para os quais não se vê por que não poderiam não ser, pois não há nenhuma evidência intelectiva de uma necessidade intrínseca para sua existência; nem a inteligência tem também qualquer evidência imediata de uma causa externa para a existência delas. Daí o impacto que causa uma pergunta como esta quando corretamente compreendida em toda a sua profundidade. Se a inteligência pudesse perceber de modo imediato uma evidência para a existência das coisas, as coisas seriam percebidas por ela como existentes por uma necessidade comparável à evidência dos primeiros princípios.

No entanto, não só os entes materiais, mas também as inteligências existem; existindo, elas estão se comportando de um modo para o qual deveriam possuir uma evidência, pois é manifesto que a partir do momento em que elas existem pelo menos naquele momento existem necessariamente. Apesar disso, porém, elas não conseguem apreender esta necessidade. Portanto, tal como os entes materiais, que seguem as regras dos primeiros princípios das demonstrações sem lhes apreenderem a evidência, as inteligências também estão seguindo as regras da existência, mas não lhes conseguem apreender nenhuma evidência. As inteligências, portanto, estão seguindo uma regra que não lhes é própria. Resta saber de quem a regra da existência é uma regra própria.

Supondo a existência daquela inteligência que é causa do ser dos entes materiais, pode-se mostrar que a existência é uma regra própria de sua natureza.

De fato, pode-se mostrar facilmente que esta inteligência, por sua própria natureza, existe necessariamente. Pois se ela é causa do ser dos entes materiais, ou seu próprio ser é causado ou não; se não for, fica demonstrado o que se pretendia; se seu ser for causado, há outra causa que é causa do ser da causa dos entes materiais; mas não se pode proceder nesta série de causas até o infinito, de modo que se acaba por alcançar uma causa primeira não causada, isto é, que existe necessariamente. Em outras partes de sua obra, com base em outros argumentos, S. Tomás de Aquino vai ainda mais longe nesta conclusão e diz que não pode haver causas intermediárias na produção do ser enquanto ser, isto é, que o ser de todas as coisas é necessariamente causado diretamente pela causa primeira (11).

Esta causa do ser dos entes materiais, ademais, por ser inteligência separada da matéria, é capaz de se apreender de modo imediato a si mesma; portanto, ao apreender-se a si própria, apreende também a necessidade de sua existência, não porque ela apreendeu primeiro que existe e, partindo desse pressuposto, infere que existe necessariamente, mas porque, apreendendo a sua natureza, percebe que existe por uma evidência imediata da apreensão de sua própria natureza. Nesta apreensão, apreende-se também como causa do ser dos entes materiais; daí que, se ela se fizesse aquela mesma pergunta:

Por que as coisas existem,
e simplesmente não voltam ao nada?

ela teria para isto uma resposta por evidência intelectiva imediata, ao contrário da inteligência humana que diante desta pergunta cai no vazio.

Com isto mostramos que, assim como os entes materiais quando seguem os primeiros princípios das demonstrações estão seguindo uma regra que é própria das inteligências, uma regra que parece lhes estar sendo imposta de fora, embora não, porém, por estas mesmas inteligências, mas por outra que lhes é superior, as inteligências também, ao existirem, estão seguindo uma regra que é própria da causa do ser dos entes materiais, como se lhes estivesse sendo imposta de fora, por esta mesma causa que seria então simplesmente a causa primeira do ser de todas as coisas.

À primeira vista tudo isto parece ser novamente apenas mais um argumento de plausibilidade. Pode-se mostrar, entretanto, que agora temos, na verdade, um autêntico argumento probativo.

Antes tinhamos mostrado que o caráter inteligível dos entes não tinha explicação plausível fora da existência de uma causa primeira do ser de todas as coisas que fosse também ela inteligível; mas agora mostramos que este caráter inteligível é possuído pelos diversos entes em graus diversos, de modo que um parece estar seguindo uma regra que é mais própria de outro, como se se tratasse de algo que lhe estivesse sendo imposto ou causado. Em outras palavras, do caráter inteligível dos entes verificamos a plausibilidade da existência de uma causa primeira; mas da existência de uma gradação de inteligibilidade dos entes deduzimos a existência de uma causa primeira.

Ora, segundo S. Tomás de Aquino esta última inferência possui verdadeiro valor probativo; de fato, quando na Summa Theologiae ele demonstra a existência de Deus por meio de cinco vias, na quarta via, partindo apenas

"dos graus que existem nas coisas",

ele afirma poder chegar-se à conclusão de que

"existe algo que é para todas as coisas
causa do ser e da bondade
e de qualquer perfeição,
a quem chamamos Deus"
(12).

Não se trata, portanto, de um argumento de plausibilidade, mas de factualidade:

"A quarta via",

diz Tomás de Aquino,

"é tomada dos graus
que se encontram nas coisas.

De fato, encontramos nas coisas
algumas que são mais ou menos boas,
mais ou menos verdadeiras,
mais ou menos nobres,
e assim quanto a outras perfeições semelhantes.

Porém o mais e o menos
se dizem de coisas diversas
segundo que se aproximem de modo diverso
a algo que o seja maximamente,
assim como é mais quente
aquilo que se aproxima
ao que é maximamente quente.

Existe, portanto,
algo que é veríssimo,
ótimo e nobilíssimo,
e, por conseqüência,
maximamente ente;
pois as coisas que são maximamente verdadeiras
são maximamente entes,
conforme diz o IIº da Metafísica.

Mas o que se diz maximamente tal em algum gênero
é causa de todos os que estão naquele gênero,
como o fogo,
que é maximamente quente,
é causa de todas as coisas quentes,
conforme se diz no mesmo livro.

Existe, portanto,
algo que é para todas as coisas
causa do ser e da bondade
e de qualquer perfeição.

E a este chamamos Deus"
(13).

O que este texto quer dizer é bastante claro; a dificuldade começa quando se quer determinar como uma coisa prova a outra. De fato o texto afirma que há gradação nos entes, e isto é suficiente para que se possa deduzir existir uma fonte que possui em grau máximo aquilo que nos diversos entes é observado existir graduadamente. Que seja isto o que o texto pretende afirmar é algo fora de qualquer dúvida; o que causa perplexidade é como daquela premissa pode-se passar com tanta certeza à conclusão indicada. O texto de Tomás de Aquino é muito conciso, e, tendo em vista os objetivos e as circunstâncias em que foi escrita a Summa Theologiae, não comportava maiores explicações. Mesmo assim, porém, Tomás tentou, com o exemplo do fogo, fornecer um auxílio à inteligência dos leitores. Na sua Exposição sobre o Credo, por ser um texto mais popular, Tomás recorre mais abertamente ao exemplo do fogo:

"Para não fazermos uso
de demonstrações repletas de sutilidades,
mostraremos através de um exemplo simples
como todas as coisas foram criadas e feitas por Deus.

É manifesto que se alguém entra em uma casa
e na entrada da casa percebe calor,
e depois,
à medida em que se dirige mais para o seu interior
sente mais calor e assim sucessivamente,
acreditará haver fogo dentro da casa,
mesmo se não puder ver o próprio fogo
que fosse a causa daqueles calores.

Ora, assim também ocorre
ao que considera as coisas deste mundo.
Pois ele encontra todas as coisas se disporem
segundo diversos graus de beleza e nobreza,
e quanto mais se aproximam de Deus,
tanto mais belas e melhores as encontra.
É assim que os corpos celestes
são mais belos e nobres
do que os corpos inferiores
e os seres invisíveis mais belos e nobres
do que os visíveis.

Deve-se, portanto, crer que todas estas coisas
procedem de um só Deus,
que dá o ser e a nobreza às coisas singulares"
(14).

O exemplo do fogo de que Tomás se utiliza é, nestes dois textos, apropriadíssimo para explicar o que ele quer dizer. O exemplo tem, ademais, para a Física moderna o mesmo valor que ele tinha para a Física do tempo de Tomás de Aquino. Ele tem também o mesmo valor probativo para o caso do fogo do que para o caso do ser, não se tratando, portanto, de apenas um meio de sensibilizar ou tornar mais facilmente compreensível uma demonstração que somente teria verdadeiro valor probatório no caso do ser, mas não no caso do fogo.

De fato, quando ele diz que o fogo é maximamente quente, não quer dizer com isto que o fogo possui a temperatura máxima que seja possível existir, pois em qualquer época foi evidente para qualquer bom observador que o fogo de uma vela possui uma temperatura menor do que o fogo que está no interior de uma fornalha, que possui uma temperatura menor do que o fogo que há no Sol. O calor de uma vela não derrete os metais, mas o mesmo não se pode dizer do calor de uma fornalha bem construída; o calor de uma fornalha é sentido apenas até a uma determinada distância, mas o calor do Sol se espalha sobre toda a terra e provém de mais longe do que o calor da fornalha. Portanto, quando Tomás de Aquino afirma que o fogo é maximamente quente ele está se referindo não à temperatura máxima que possa ser alcançada, mas a uma razão de ser diversa do calor no fogo e no Sol, por um lado, e nas demais coisas, por outro.

Nas coisas quentes o calor existe como algo que é recebido de fora; todas as coisas quentes recebem o calor de uma fonte que pode ser o fogo ou o Sol. Já no fogo e no Sol o calor se encontra segundo um modo de ser diverso do que é encontrado nas demais coisas; o fogo e o Sol possuem calor sem recebê-lo de nenhuma fonte externa; ao contrário, o fogo e o Sol são fontes próprias de calor, daí o fato de não precisarem receber calor de nenhuma fonte para serem quentes e todas as demais coisas receberem delas o calor pelo qual são quentes. Em ambas estas coisas, Sol e fogo, de um lado, e as demais coisas, de outro, há calor, porém de modos diversos; no Sol e no fogo o calor não tem causa externa, elas próprias são fonte de calor; nas demais coisas o calor é causado por causas externas.

Ademais, em uma passagem da Summa Theologiae diz Tomás de Aquino que tudo o que existe em algo pode ser ou a própria essência, ou algo causado pela própria essência, ou algo causado por uma causa externa (15).

Pode-se mostrar facilmente que o calor existe nas coisas que não são fogo nem Sol como algo causado por uma causa externa; mas no fogo e no Sol o calor existe como algo causado pela sua própria essência. De fato, o fogo é uma reação química pela qual um composto de carbono, combinando-se com oxigênio, reage quimicamente produzindo gás CO2 e vapor de água. Esta reação, porém, liberta, pela sua própria natureza, uma quantidade extraordinária de calor que faz com que os gases que ela mesmo produz sejam liberados já a uma temperatura elevadíssima e, portanto, em estado incandescente. A chama do fogo nada mais é do que a incandescência dos gases produzidos. Este calor provém da própria essência da reação química que a produziu.

A mesma coisa pode-se dizer do Sol, com a diferença que neste caso não se trata de uma reação química, mas de uma reação nuclear, que produz, por isso, temperaturas muito mais elevadas. Em ambos os casos do fogo e do Sol, porém, trata-se de um calor causado internamente pela própria essência; por isso mesmo, fogo e Sol se comportam, do ponto de vista do calor, de um modo mais nobre do que as demais coisas; fogo e Sol são fontes de calor, enquanto que as demais coisas apenas recebem e transmitem o calor que receberam, em última análise, de algum ente que é calor de modo mais nobre, que é, portanto, maximamente calor, isto é, que é por si mesmo fonte de calor.

S. Tomás de Aquino afirma que o mesmo que ocorre com o calor ocorre com o ser. Há diferentes graus no ser; portanto, estes diversos graus do ser estão sendo recebidos de uma fonte de onde brota o ser.

Como, porém, podemos ter certeza que de fato é isto o que ocorre com o ser? Do mesmo modo que o podemos saber no caso do calor. Como podemos saber se algo é fonte de calor ou se apenas recebe e transmite calor? Sabemos que o conteúdo de calor de um corpo aumenta quando aumenta a sua temperatura; sabemos que algum corpo recebe calor de fora e apenas transmite o calor recebido se, isolando termicamente este corpo, isto é, impedindo sua interação com qualquer possível fonte ou sorvedouro, sua temperatura não aumenta nem diminui. Se, apesar de estar termicamente isolado, a temperatura do corpo aumenta, isto é indício certo de que ali há uma fonte de calor.

Vemos assim que para estabelecermos se algum ente é fonte de calor ou se apenas recebe o calor de fora é necessária uma análise em que se leve em conta o movimento; é preciso observar os corpos ao longo do tempo e ver se quando isolados suas temperaturas aumentam ou permanecem estacionárias, ou se quando não estão isolados suas temperaturas aumentam ou permanecem estacionárias. Não é possível saber se algo apenas recebe calor de uma causa externa ou é fonte de calor somente com uma medida estática de temperaturas. Mas de uma medida dinâmica de temperaturas é possível fazer inferências deste tipo.

Estas inferências, por sua vez, se fundamentam em última análise na teoria da causalidade. A relação casual não é algo que possa ser observada pelos sentidos; quando se aproxima o fogo de um objeto e este aumenta de temperatura, o que se observa é apenas uma seqüência de fatos: o fogo se aproxima é um fato; a temperatura que aumenta é outro fato; que o fogo seja a causa do aumento da temperatura é uma inferência puramente intelectiva. Por mais que se repita a experiência centenas de vezes, não há nada que possa provar experimentalmente de que não se trata de uma coincidência, mas de uma verdadeira relação causal. A necessidade de uma relação causal somente pode ser provada metafisicamente, com base no fato de que o ser não pode passar da potência ao ato sem uma causa em ato, conforme discutido no Apêndice ao capítulo II sobre teoria da causalidade. De qualquer modo, porém, com base neste princípio, para inferir a existência de uma causa é necessário observar uma passagem da potência ao ato; se não se observa este movimento, não se pode inferir causalidade, não pelo menos com base neste princípio.

É assim que se faz em ciência no caso do calor. Se um corpo é termicamente isolado e não passa da potência ao ato, isto é, não aumenta de temperatura, mas quando deixa de estar termicamente isolado aumenta de temperatura, daqui se infere que há uma causa exterior que provoca o aumento da temperatura. Se o corpo aumenta ele próprio de temperatura mesmo estando termicamente isolado, é porque a causa é interna; o corpo ele próprio possui calor sob uma razão diversa de outros corpos; o corpo é uma fonte de calor.

Quando transpomos este exemplo para o caso do ser verificamos que é impossível fazer a mesma análise que fizemos no caso do calor, pois, de fato, não se observam mudanças no ser das coisas no Universo. Até o momento não se observou a criação de matéria no Universo; não consta ninguém ter observado ente algum ter vindo do nada ao ser e do ser ter passado ao nada. Pelo que diz a Metafísica tal passagem é possível, mas o fato é que ela não tem sido observada. O ser é, portanto, aparentemente estático. Quando uma coisa menos quente se torna mais quente, muda de cor, muda de forma, o que ocorre são alterações nos acidentes das coisas; mas uma verdadeira passagem do nada ao ser ou do ser ao nada não tem sido observada em lugar algum. Ao contrário, existe até uma lei da Química, a Lei de Lavoisier, estendida atualmente pela Física sob forma de diversos princípios de conservação, segundo a qual nada se cria e nada se destrói, tudo apenas se transforma. Ninguém até o momento possui qualquer prova de que isto é uma lei necessária. Trata-se apenas de uma generalização do que se tem visto, não de uma afirmação categórica de que nada pode ser criado nem destruído absolutamente falando. Mas o fato é que tais fenômenos não têm sido observados na natureza.

Parece, portanto, que com isto chegamos a um ponto morto. Embora seja possível que o ser das coisas seja algo causado externamente, tal causalidade parece não poder ser demonstrada porque para inferir causalidade, em princípio, é necessário partir do movimento, isto é, da passagem da potência ao ato.

Não obstante isso, há indícios notáveis desta causalidade. Se fizéssemos uma fotografia do sistema solar com uma chapa sensível ao infra vermelho, uma radiação emitida pelos corpos que varia em frequência e intensidade de acordo com a temperatura em que eles estão, observaríamos uma variação de colorido de acordo com a gradação de temperaturas de cada região do sistema solar. Observaríamos toda uma graduação de temperaturas que apontaria em todos os locais para a mesma direção em que haveria um máximo de temperatura; este máximo estaria na posição em que está situado o Sol. De uma fotografia como esta poderia-se inferir que o Sol é a causa de todas as temperaturas que existem no sistema solar. Mesmo que se fotografasse apenas uma região do sistema solar sem o Sol, observaríamos um gradiente de temperaturas que apontaria sempre na mesma direção, isto é, na direção do Sol que não teria aparecido na fotografia; daí também poderia-se inferir a existência, naquela direção, de uma fonte de calor causa do calor existente em todo o restante do sistema solar. Isto só não seria uma verdadeira demonstração de que o Sol é a causa do gradiente de temperatura observado porque está implícito na interpretação desta chapa fotográfica que o calor já é um fenômeno conhecido e que, quando analisado em seu movimento, demonstra-se manifestamente tratar-se de um fenômeno causado por uma fonte, isto é, o calor quando analisado não em uma única chapa fotográfica, mas em seu movimento, é um fenômeno tal que manifestamente implica a existência de seres que são fontes e seres que são quentes por causalidade externa; esta informação, quando transposta para a fotografia, é que causa a certeza de que o gradiente de temperatura implica necessariamente na existência de uma fonte de calor no ponto de temperatura máxima. De fato, podem-se dar muitos outros exemplos de gradientes em que da simples presença do gradiente não se infere a presença de uma fonte.

Vejamos o seguinte exemplo.

Há um deserto onde não chove, mas no qual passa um rio; nas margens do rio os camponeses plantam trigo; quanto mais próximo à margem mais alto e de melhor qualidade é o trigo. Há um gradiente de altura e de qualidade do trigo. Disto não se pode inferir que existe, para além do trigo mais alto, uma outra espécie de trigo, que seja um trigo supereminente e do qual brota a trigalidade que é transmitida para o trigal. Por que? Porque o trigo não é trigo por participação; ser trigo é algo que provém da própria essência de cada trigo; cada espiga de trigo é trigo plenamente, não em parte.

Porém, neste mesmo exemplo, pode-se perceber que o teor de umidade do trigo próximo à margem do rio é mais elevado do que o teor de umidade do trigo longe da margem; esta umidade é uma participação do trigo no caráter da água; pode-se provar que o trigo é tal que esta qualidade é causada e recebida de fora; portanto, a presença de um gradiente de umidade aqui prova que, para além do trigo mais úmido, deve existir uma fonte de água que seja úmida de uma maneira mais eminente do que o próprio trigo, e que esta é a fonte e a causa da umidade que existe no trigo. Tal fonte existe e é o próprio rio.

Portanto, quando olhamos uma fotografia do gradiente de temperatura no sistema solar e inferimos que no ponto de temperatura máxima está um Sol que é a causa do calor em todo o sistema solar, esta dedução só é correta porque antes já tinhamos demonstrado o caráter participativo e externamente causável do calor. Entretanto, mesmo sem este conhecimento prévio da natureza do calor, uma fotografia como esta é um indício fortíssimo de que provavelmente no ponto para onde converge o gradiente há alguma coisa que é causa do gradiente. É o exemplo de Tomás de Aquino que já citamos:

"É manifesto que se alguém entra em uma casa
e na entrada da casa percebe calor,
e depois,
à medida em que se dirige
mais para o seu interior
sente mais calor e assim sucessivamente,
acreditará haver fogo dentro da casa,
mesmo se não puder ver o próprio fogo
que fosse a causa daqueles calores".

Temos neste exemplo um gradiente de temperaturas; por qualquer lugar da casa por que se entre, o gradiente aponta sempre na mesma direção; há, portanto, uma região da casa em que deve haver uma fonte de calor que seja mais quente do que todos as temperaturas observadas.

A mesma coisa ocorre nas coisas. Entre os entes puramente materiais e as inteligências há um gradiente no ser; tal gradiente aponta em uma determinada direção, para uma fonte de ser que seja mais intensamente ser e mais intensamente inteligente do que os demais seres que observamos. Sem, porém, uma demonstração prévia da natureza participativa do ser, sem que se demonstre antes que o ser é algo que pode ser recebido e causado externamente, tal observação não passa de um forte indício, de um argumento provável, mas do qual não se pode dizer que seja uma demonstração certa.

Para ter, porém, esta demonstração do caráter externamente causado do ser, teríamos que observar o movimento no ser enquanto ser, o que não parece algo que nos seja concedido pela natureza. Com isto caímos novamente no mesmo impasse.

Se considerarmos, porém, mais atentamente os argumentos precedentes, poderemos observar que a teoria da causalidade neles infere a existência da causa porque a potência não pode passar ao ato sem a intervenção de uma causa em ato. Por sua vez, que a potência passe ao ato, em cada caso em particular, é algo que é inferido a partir do movimento, pois no movimento se dá uma passagem da potência ao ato. Na verdade, até a própria divisão do ser em potência e ato é inferida nos livros de Metafísica de Aristóteles a partir da constatação do movimento. Disto se segue que a teoria da causalidade, mais do que no movimento, tem seu fundamento último na divisão do ser em potência e ato. A constatação do movimento é apenas uma via de acesso para se inferir esta estrutura bipartida do ser em potência e ato. Se fosse possível, portanto, demonstrar esta estrutura bipartida em potência e ato do ser das coisas sem necessitar tomar o movimento como ponto de partida, poderíamos disto deduzir o caráter participativo e externamente causado do ser das coisas. Esta inferência, transposta para a constatação da existência de graus no ser das coisas, nos levaria à conclusão da existência de uma fonte do ser de todos os entes que fosse uma causa primeira inteligente e imaterial.

Não tentaremos, porém, esta via no presente trabalho; se o fizéssemos, transformaríamos este texto de pedagogia numa obra de metafísica. Em seu lugar tentaremos demonstrar o caráter participativo e recebido por causalidade externa do ser das coisas de um outro modo mais limitado mas mais acessível para as finalidades que temos em vista.

De fato, considerada mais atentamente, verifica-se existir na natureza uma movimentação no ser passível de observação.

Trata-se do ato da reprodução humana, em que a matéria inanimada se converte em ser humano dotado de inteligência.

A inteligência assim produzida não é fruto do rearranjo na estrutura da matéria como conseqüência do ato da fecundação. Se a inteligência fosse apenas a própria matéria dotada de uma disposição mais complexa, seria possível esperar que daqui a não muitos anos se construísse um computador que se tornasse um filósofo dotado de todas as qualidades descritas neste trabalho; um computador capaz de uma vida contemplativa no mais alto grau e até mais, que superasse em muito, pela ilimitada perfectibilidade de seus circuitos, o maior grau de contemplação possível ao homem. Entretanto, tal coisa não será possível, pois o computador é um ente puramente material, e mostramos que a inteligência humana, para possuir as qualidades que discutimos neste trabalho não pode sê-lo.

Corre na sociedade contemporânea como coisa certa que a inteligência é apenas um fenômeno resultante de reações químicas processadas em circuitos neuroniais, formalmente análogo ao funcionamento dos circuitos internos de um computador eletrônico, mas com um maior nível de complexidade. Ouve-se falar disto tantas vêzes que esta concepção se torna, parafraseando S. Tomás de Aquino, um costume que adquire força de natureza. Mas a verdade é que até hoje não se produziu nenhuma evidência de que esta afirmação tenha fundamento; todas as evidências apresentadas neste sentido apenas apontam no sentido de que a imaginação é um produto de reações químicas ocorridas em circuitos neuroniais, não a inteligência. Se assim fosse, que se projete então, mesmo que seja a nível apenas teórico, um programa de computador que seja capaz de ter consciência de sua própria existência, que seja capaz de possuir uma percepção total de sua própria atividade cognitiva, que seja capaz de apreender a evidência dos primeiros princípios das demonstrações, e, mais ainda, que seja capaz de apreender a idéia do ser, que é aquilo sobre o qual se baseiam as operações anteriores. Qualquer pessoa que conheça computação, ouvindo uma coisa destas, não saberia sequer por onde começar um programa com estes objetivos, nem teria idéia sobre que princípios teria que se basear para um dia poder vir a faze- lo. Segundo a filosofia, trata-se de uma tarefa impossível, porque operações como estas pressupõem a imaterialidade que nenhum circuito eletrônico ou neuronal é capaz de possuir.

Há, portanto, no ato da reprodução humana, uma verdadeira passagem da potência ao ato que envolve o ser enquanto tal; há uma verdadeira elevação da temperatura e da intensidade do ser. Esta elevação não pode ser causada internamente, pois o que é material não pode produzir o que é imaterial; e se todo movimento da potência ao ato pressupõe uma causa, e neste caso a causa não pode ser interna, resulta que a causa é externa. Tal como nos exemplos de gradiente de calor, portanto, deve existir uma fonte externa de ser que possua aquilo que dela é causado de um modo mais eminente do que os efeitos que ela causa. Esta fonte tem que possuir qualidades intelectivas mais intensas do que as da inteligência humana, assim como o calor do fogo é mais quente do que o calor do corpo que foi esquentado.

Esta causa externa não poderia ser um reservatório de inteligências que fossem acrescentadas à matéria, de tal maneira que a inteligência fosse algo apenas externamente justaposto à matéria quando da reprodução humana. Se fosse assim, o ser humano seria apenas uma inteligência aprisionada na matéria, o que porém não é o que se observa acontecer no caso do homem. O corpo do homem é tal que exige por natureza a presença da inteligência. Dado um corpo humano, a presença do elemento intelectivo é uma exigência interna de sua própria natureza. Se assim não fosse, se a inteligência humana fosse algo pré existente ao corpo e que fosse simplesmente anexado ao corpo, nada impediria que pudesse haver alguma falha fortuita deste processo de justaposição da inteligência ao corpo e com isto se produzisse um corpo perfeito sem inteligência alguma. Um corpo assim, perfeito, mas inteiramente destituído de inteligência, poderia viver perfeitamente, pois o corpo do homem possui todos os órgãos corporais que os demais animais possuem e os possui ainda mais perfeitos. Portanto, se a inteligência fosse algo externamente anexado a um corpo, se a um determinado corpo não se houvesse anexado nenhuma inteligência, ainda assim este corpo poderia continuar vivendo uma vida biológica tão perfeita quanto a de qualquer animal, embora este corpo diferisse dos demais homens por estar inteiramente desprovido de capacidades intelectivas. Um em cada determinado número de indivíduos perfeitamente sadios do ponto de vista biológico, não obstante sua sanidade biológica, seria inteiramente incapaz por toda a sua vida de qualquer atividade intelectiva, por maiores que fossem os esforços e mais intensas e prolongadas que fossem as terapias a que ele fosse submetido. Nunca, porém, consta ter-se visto semelhante fenômeno na história humana. A privação de capacidades intelectivas está sempre associada a algum problema orgânico ou genético; jamais se viu um corpo humano perfeitamente são e íntegro do ponto de vista biológico ser incapaz de inteligir, nem se saberia como provocar um tal fenômeno. De onde que deve-se concluir que a inteligência humana não pode ser algo externamente justaposto ao corpo; é, antes, uma exigência interna de sua própria essência.

Na reprodução humana, portanto, não há uma simples anexação da inteligência à matéria; ao contrário, há um fenômeno de verdadeira elevação na escala do ser; diversamente das demais transformações da natureza, a reprodução humana não pode ser explicada sem a introdução de um elemento que transcende a natureza da matéria e da própria inteligência humana. Assim como quando uma chapa de ferro é aquecida e passa de uma temperatura a outra a análise mostra que o calor desta chapa é uma participação externamente causada, tanto antes como depois do aquecimento, e há em jogo uma chama que possui o calor como fonte de calor, assim também a reprodução humana evidencia o caráter participativo e externamente causado do ser da matéria e do ser da inteligência.

Evidencia-se com isto também que o ato da reprodução humana está mais diretamente ligado à causa primeira do ser de todas as coisas, e de um modo mais eminente, do que a própria ordem do restante do universo. Pois a ordem do universo é conseqüência das inclinações que se seguem às formas próprias de cada coisa; segundo afirma Tomás de Aquino na quinta via, pode-se demonstrar daqui a existência de uma causa primeira, mas isto não exclui o fato de que esta ordem seja mediada pelas formas que constituem a essência das coisas. Mas na reprodução do homem não existe forma intermediária alguma à qual se possa seguir a geração do homem como se fosse uma operação produzida por uma inclinação própria daquela forma; a geração do homem pressupõe uma ação imediata da própria causa primeira.

Do ato da reprodução humana pode-se inferir o caráter participativo e externamente causado do ser de todas as coisas, e daí a existência de uma fonte primeira do ser que está diretamente envolvido neste ato. Desta fonte nós e todas as coisas recebemos o ser. Juntamente com o ser, recebemos as inclinações próprias do ser, que produzem a ordem do universo. Nesta ordem, todas as coisas procuram assemelhar-se à causa primeira; o ser inteligente, em particular, faz isto pelo movimento da inteligência, na medida em que intelige ao ser primeiro; a própria ordem do universo lhe é meio para tanto, fazendo com isto que o universo tenha, para com a inteligência humana, natureza de espetáculo; o ser inteligente é tal que tende por natureza a admirar este espetáculo e, mediante isso, alcançar a sua fonte; tal é o seu fim último, ao qual tendem todas as suas potências, razão pela qual este fim lhe é deleitabilíssimo; este fim é a sua própria felicidade, não porque lhe é deleitabilíssimo, mas é-lhe deleitabilíssimo por ser a sua felicidade; e nesta estrutura do universo assim descrita repousam os fundamentos últimos da educação humana.



Referências

(7) Clemente de Alexandria: Stromata, L. VI, l. 2; PG , 237-8.
(8) Eisberg, R. e Resnick, R.: Quantum Physics of Atoms, Molecules, Solids, Nuclei and Particles;New York, John Wiley, 1974; C. 1-2.
(9) Aristóteles: Metafísica, IV, 3.
(10) Ibidem, IV, 4.
(11) Summa Theologiae, Ia, Q. 44 a.1; Quaestiones Disputatae De Potentia, Q. 3 a.4.
(12) Summa Theologiae, Ia, Q. 2 a.3.
(13) Idem, loc. cit..
(14) Expositio super Symbolum Apostolorum, C. 1.
(15) Summa Theologiae, Ia, Q. 3 a. 4.