I.2.

Notas biográficas sobre Hugo de São Vitor.

Muito pouco se sabe sobre a vida de Hugo de São Vitor. O principal testemunho sobre sua pessoa é a sua própria obra, cuja luminosidade tão evidente muito nos revela sobre sua pessoa muito do que seus dados biográficos nos calam.

Hugo de S. Vitor nasceu provavelmente em 1096 em Hartingam, na Saxônia, no Sacro Império Romano Germânico, filho de Conrado, Conde de Blackemburg.

Hugo tinha um tio, chamado Reinardo, que em sua mocidade havia demonstrado inclinação para o estudo e vocação para a vida religiosa. Ainda jovem, Reinardo transferiu-se para Paris onde poderia encontrar melhores condições de formação. Paris era, naquela época, um dos principais centros do renascimento cultural que então se verificava na Europa.

Em Paris Reinardo fêz amizade com Guilherme de Champeaux, um sacerdote que durante muitos anos havia-se dedicado ao magistério mas que, por esse tempo, abandonando a escola, havia dado início, em um local onde havia uma capelinha dedicada a São Vitor, a uma comunidade religiosa que acabaria se transformando mais tarde no mosteiro de São Vitor e posteriormente em uma uma organização religiosa que se espalharia pela Europa. Após conviver algum tempo com os primeiros vitorinos, Reinardo retornou à Saxônia e foi sagrado bispo de Halberstadt.

Com a intenção de reavivar sua diocese, D. Reinardo convidou os Cônegos Regulares de São Vitor a se instalarem na Saxônia, e exortou seu sobrinho Hugo a que estudasse com eles. Foi desta maneira, através de seu tio bispo, que Hugo veio a conhecer os Cônegos de São Vitor.

A verdadeira vocação de Hugo não tardou a aparecer; renunciou à herança do título e do condado de Blackemburg e resolveu abraçar a observância da regra de Santo Agostinho junto com os vitorinos.

"Tivesse se tornado o Conde de Blackemburg",

diz M. Hugonin,

"teria se tornado ilustre pelo seu valor em algum campo de batalha, ou por sua sabedoria no governo de seu condado, mas seu nome jamais teria chegado até nós. Agora, porém, seu nome está inseparavelmente ligado às coisas que não perecerão jamais, à ciência teológica da qual ele foi um dos restauradores, aos nomes de Pedro Lombardo e de S. Tomás de Aquino, que sempre o viram como ao seu mestre" (11).

Enquanto Hugo resolvia-se a abraçar o estado religioso entre os cônegos de S. Vitor, irrompeu uma guerra em sua terra natal. D. Reinardo então aconselhou o sobrinho a abandonar a Saxônia e pedir admissão entre os vitorinos diretamente no mosteiro de São Vitor em Paris onde outrora ele já havia sido hóspede. Dificilmente outra decisão poderia ter sido tão providencial como esta. No mosteiro de São Vitor de Paris estava- se formando aquela que viria a ser, sob a direção de Hugo, uma das mais importantes escolas de Teologia da época; esta escola, juntamente com algumas outras da cidade, iria dentro em breve dar origem à primeira universidade da civilização ocidental; a regra do mosteiro de São Vitor, ademais, conferia importância excepcional ao trabalho dos religiosos que se dedicavam à cópia de manuscritos, com o que estava-se formando uma importantíssima biblioteca que daria a Hugo possibilidade de acesso a uma riqueza de conhecimentos que só com muita dificuldade poderiam ser obtidos em outros lugares.

Assim, com a idade de dezoito anos, Hugo e seu avô, também chamado Hugo, atravessaram a Europa e, depois de terem passado por Marselha, dirigiram-se para Paris onde ambos fizeram profissão religiosa no mosteiro de S. Vitor provavelmente em 17 de junho de 1115. Dez anos mais tarde Hugo de S. Vitor tornou-se professor da escola anexa ao mosteiro; mais oito anos e era o diretor desta mesma escola. Ao cargo de diretor acumulou algum tempo depois o de prior do mosteiro, o primeiro na hierarquia depois do abade. Faleceu, finalmente, no mosteiro de S. Vitor em 11 de fevereiro de 1141 em fama de santidade.

Além de suas obras, Hugo nos deixou um discípulo, Ricardo de S. Vitor, outro jovem que, como ele, tinha se dirigido a S. Vitor vindo de longe. Ricardo era natural da Escócia e, sob a orientação de Hugo, tornou-se teólogo não inferior ao mestre; a reverência e a admiração que Hugo soube conquistar de seu aluno fizeram com que, após a sua morte, Ricardo desse prosseguimento à obra de Hugo com uma continuidade tão evidente que as obras de ambos constituem na verdade um só e mesmo conjunto, num dos exemplos mais admiráveis que há, neste sentido, em toda a história da Pedagogia.

Por estas circunstâncias providenciais, às quais se acrescentaram suas inclinações naturais e o favor da graça divina, Hugo de S. Vitor veio a ser um dos iniciadores da escolástica, uma manifestação da Teologia que floresceu de um modo todo especial durante os séculos dos anos 1100 e 1200, e cuja expressão máxima são as obras de Santo Tomás de Aquino.

Várias são as características que distinguem de modo especial a Teologia Escolástica. Além da exatidão da terminologia, da busca da fundamentação filosófica sempre que possível, e outras mais, há três características que nos parecem fundamentais. A primeira é o método dialético, no qual cada questão é tratada mediante análise prévia de vários argumentos e contra argumentos, todos os quais, após encontrar-se a solução da questão, devem ser respondidos um a um. A segunda é a profundidade da argumentação, em que se procura remontar até às causas mais remotas e fundamentais e prosseguir daí desde os princípios encontrados até às suas conseqüências últimas. A terceira é uma extraordinária capacidade de síntese, pela qual, através da busca de princípios básicos, harmoniza-se numa só arquitetura o conjunto da totalidade do conhecimento.

Todas estas três características estão presentes quase por igual nos escritos de Santo Tomás de Aquino, que, vivendo no fim dos anos 1200, incorporou em suas obras, além de um profundo conhecimento dos santos padres, a herança de dois séculos de trabalho de uma multidão de eminentes teólogos. Mas no início dos anos 1100 estas mesmas características se encontravam espalhadas de um modo desigual entre os fundadores da Escolástica.

O método dialético, ao que parece, foi introduzido pela primeira vez por Pedro Abelardo, que numa obra conhecida por Sic et Non organizou, para uma série de questões, uma compilação de argumentos e contra argumentos tirados das Escrituras e das obras dos Santos Padres.

O raciocínio que, fundamentado nos dados da revelação, parte para a busca das causas e das conseqüências últimas, tal como é característico da Escolástica, encontra-se entre os seus fundadores de um modo particularmente eminente nos escritos de Santo Anselmo de Cantuária.

A capacidade de síntese, porém, talvez a mais importante delas, é previlégio indiscutível de Hugo de S. Vitor. Sua obra De Sacramentis Fidei Christianae, título que na terminologia usada por Hugo pode ser aproximadamente traduzido como Os Mistérios da Fé Cristã, é um trabalho de síntese como até então não se havia visto nada de semelhante na história do Cristianismo; foi dali que surgiriam posteriormente toda a seqüência das Summae Theologiae que viriam culminar na de Santo Tomás. Conforme veremos mais adiante, o próprio Hugo de S. Vitor nos diz que o segredo das grandes sínteses está na vida contemplativa, pois, conforme suas palavras, compete à contemplação,

"já possuindo todas as coisas,
abarcá-las em uma visão plenamente manifesta,
estendendo-se à compreensão de muitas
ou também de todas elas"
(12).

Uma lição que foi posteriormente seguida à risca por S. Tomás.



Referências

(11) M.Hugonin: Essai sur la fondation de l'Ecole de Saint Victor de Paris; Migne, PL 175, XLVI-B.
(12) Hugo S. Vitor: De Modo Discendi et Meditandi, PL 175, 879.