I.3.

Caráter Pedagógico da obra de Hugo de S. Vitor.

Vimos assim como uma série de acontecimentos circunstanciais deram rumo à vida de Hugo de S. Vitor. Seu próprio tio bispo havia trazido para a Saxônia os primeiros cônegos vitorinos, de quem ele recebeu sua primeira formação. As circunstâncias de uma guerra obrigaram-no a transferir-se ainda jovem para a França, onde professou no mosteiro que havia dado origem, poucos anos antes, aos Cônegos de S. Vitor. Neste mosteiro organizava-se uma grande biblioteca que daria acesso a Hugo ao que de melhor havia sido escrito pela tradição cristã. Mais importante do que tudo isso, porém, foi o fato de que, anexo ao mosteiro, estava-se organizando uma escola de Teologia em uma cidade que era um dos pólos do renascimento cultural da época. A organização e a direção desta escola nascente seria dentro em breve confiada ao próprio Hugo, e isto acabaria por dar à sua obra escrita contornos inexistentes nas de outros teólogos. Raramente, senão mesmo nunca em toda a história, um teólogo da envergadura de Hugo de S. Vitor, homem de inteligência brilhante, santidade manifesta e nítida vocação docente, tendo diante de si tantos estudantes de tão notável talento que lhe chegavam a São Vitor provenientes de todas as partes do mundo, como o foram, por exemplo, Ricardo de S. Vitor e Pedro Lombardo, se viu obrigado não apenas a ensinar, mas também a explicar aos alunos como e por que se deveria aprender, orientar os professores sobre como e por que se deveria ensinar, e à escola como e por que se deveria organizar.

O resultado deste conjunto de fatores foi uma obra teológica em que não apenas a Pedagogia ocupa um lugar de altíssimo relevo, mas principalmente em que os elementos pedagógicos não podem ser expostos dissociados da profundidade com que são tratados os mistérios da fé e do contínuo conduzir à perfeição da vida cristã. Sua pedagogia é uma forma de ascese cujo lugar próprio é uma escola, em que não é possível separar a vida intelectual da vida espiritual como atividades independentes uma da outra, e em que se cria uma situação em que ambas estas coisas interagem entre si no sentido de se amplificarem mutuamente. Que isto seja possível é algo que, fora da escola de S. Vitor, temos dois exemplos muito conhecidos em S. Antônio de Pádua e em S. Tomás de Aquino.

A finalidade da Pedagogia, segundo Hugo de S. Vitor, é a mesma de qualquer espiritualidade, e é conduzir à contemplação. A diferença entre a espiritualidade vitorina e outras correntes de espiritualidade é que, para alcançar este objetivo, Hugo se utiliza justamente da escola, entendida precisamente no sentido tradicional do termo, mas evidentemente organizada para este fim, enquanto que para as demais correntes a escola pode ser um elemento estranho, um complemento ou, se parte integrante da vida espiritual, sempre um elemento secundário. Seja como for, de modo geral, fora dos moldes vitorinos, não é cursando uma escola, nem mesmo uma escola de Teologia, que se chega à vida contemplativa; as escolas não são organizadas para conduzir à contemplação, mas para transmitir certos conhecimentos ou conferir determinadas habilidades práticas.

Segundo Hugo de S. Vitor, porém, não é necessário subverter a essência do que sempre se entendeu por ser uma escola para através dela conduzir-se o aluno à contemplação; ao contrário, esta finalidade é a própria essência da Pedagogia e, se já existiu alguma vez algo que subvertesse a Pedagogia, esta subversão foi exatamente aquela pela qual uma escola, e principalmente uma escola de Teologia, deixou de significar o mesmo que um modo de conduzir à sabedoria e à vida espiritual.

O que Hugo de S. Vitor entende por contemplação? Uma primeira e simples, mas profunda explicação a respeito encontra- se num opúsculo intitulado "Sobre o modo de Aprender e de Meditar". Nele Hugo afirma que há três operações básicas da alma racional, as quais constituem entre si uma hierarquia, e que devem, portanto, ser desenvolvidas uma em seqüência à outra.

Hugo denomina a primeira de pensamento. A segunda, de meditação. A terceira, de contemplação.

O pensamento ocorre, diz Hugo,

"quando a mente é tocada transitoriamente
pela noção das coisas,
ao se apresentar a própria coisa,
pela sua imagem,
subitamente à alma,
seja entrando pelo sentido,
seja surgindo da memória"
(13).

Entre os ensinamentos de Hugo de S. Vitor entra aqui o do papel que a leitura, ou o estudo, adquire na Pedagogia. A importância da leitura reside em que ela pode ser utilizada para estimular a primeira operação da inteligência que é o pensamento. Mas ao mesmo tempo a limitação da leitura está em que ela não pode estimular as operações seguintes da inteligência, a meditação e a contemplação, a não ser indiretamente, na medida em que a leitura estimula o primeiro estágio do pensamento que é pressuposto dos demais. Daqui se segue a conclusão de que uma escola que se limita a fazer o aluno estudar é uma escola que está confinando as potencialidades da inteligência humana apenas ao seu estágio mais elementar.

A segunda operação da inteligência, continua Hugo, é a meditação. A meditação baseia-se no pensamento, e é

"um assíduo e sagaz reconduzir do pensamento,
esforçando-se para explicar algo obscuro,
ou procurando penetrar no que ainda nos é oculto"
(14).

Segundo as palavras de Hugo,

"na leitura,
mediante regras e preceitos,
somos instruídos a partir das coisas
que estão escritas.
A meditação toma depois,
por sua vez,
seu princípio da leitura,
embora não se realizando
por nenhuma das regras
ou dos preceitos da leitura.

A meditação é uma cogitação freqüente com conselho,
que investiga prudentemente a causa e a origem,
o modo e a utilidade de cada coisa"
(15).

Mas acima da meditação e baseando-se nela, existe ainda o que Hugo chama de contemplação. Ele explica o que ela é e no que difere da meditação do seguinte modo:

"A contemplação é uma visão livre e perspicaz da alma
de coisas que existem em si de modo amplamente disperso.

Entre a meditação e a contemplação
o que parece ser relevante
é que a meditação é sempre de coisas ocultas
à nossa inteligência;
a contemplação, porém, é de coisas que,
segundo a sua natureza,
ou segundo a nossa capacidade,
são manifestas;
e que a meditação sempre se ocupa em buscar
alguma coisa única,
enquanto que a contemplação se estende
à compreensão de muitas,
ou também de todas as coisas.

A meditação é, portanto,
um certo vagar curioso da mente,
um investigar sagaz do obscuro,
um desatar o que é intrincado.

A contemplação é aquela vivacidade da inteligência,
a qual, já possuindo todas as coisas,
as abarca em uma visão plenamente manifesta,
e isto de tal modo que aquilo que a meditação busca,
a contemplação possui"
(16).

Isto é, pois, o que é contemplação para Hugo de S. Vitor. Naturalmente não é só isto. Trata-se de uma explicação inicial, mas atrás da qual se esconde um universo que o leitor de primeira viagem sequer pode suspeitar. Não se trata, porém, senão de uma forma muito distante, daquilo que ocorre de modo espontâneo com todo aluno quando ele terminou de estudar algum assunto mais vasto e reflete sobre o conjunto dos conhecimentos adquiridos. Esta forma tão rudimentar de contemplação não é aquilo a que Hugo queria propriamente referir-se quando fala desta operação da inteligência; ao contrário, a contemplação de que Hugo trata é a mais elevada e profunda das operações que a inteligência pode alcançar, algo pelo qual esta faculdade pode ser levada até os limites de sua perfectibilidade, e que, ao contrário desta que acabamos de considerar e que ocorre quase que espontaneamente com todos os estudantes, a contemplação a que Hugo se refere é algo que exige uma dedicação muito maior do que a exigida pelo estudo que lhe deu início. E, tanto é assim, que no V Livro do Didascalicon Hugo afirma que o estudo é para os principiantes, a contemplação para os perfeitos (17).

Seja como for, porém, na pedagogia vitorina a contemplação principia na leitura ou no estudo. Isto significa que requer-se uma teoria da leitura em que o mestre ou o aluno saiba como utilizar-se dela para produzir o pensamento e ao mesmo tempo compreenda que há outros processos mais elevados que devem ser desenvolvidos mas que podem ser impedidos por uma concepção errônea do que seja estudar.

O assunto é tão importante que Hugo dedicou quase inteiramente uma de suas principais obras pedagógicas, isto é, os seis primeiros dos sete livros do Didascalicon, ao problema do estudo e da leitura.

Um rápido exame destes seis primeiros livros do Didascalicon nos mostra que neles uma das primeiras preocupações de Hugo foi responder à pergunta sobre o que, segundo este modo de entender a Pedagogia, se deve ou não se deve estudar. A resposta que ele dá a esta pergunta é que se deve estudar tudo. Pode parecer um despropósito, mas Hugo, neste ponto foi bastante claro. Segundo ele nos explica no início do Opúsculo sobre o Modo de Aprender, o aluno que despreza de antemão qualquer forma de conhecimento, o aluno "que tem como vil alguma ciência ou alguma escritura", mostra não possuir com isto a virtude da humildade, e a humildade, segundo Hugo, "é o princípio de todo aprendizado" (18). E no sexto do Didascalicon ele vai ainda mais longe; em uma das raríssimas páginas em que ele fala de si mesmo, Hugo nos diz o seguinte:

"Eu ouso afirmar que nunca desprezei nada que pertencesse ao estudo; ao contrário, freqüentemente aprendi muitas coisas que outros as tomariam por frívolas ou mesmo ridículas. Algumas destas coisas foram pueris, é verdade; todavia não foram inúteis. Não digo isto para jactar-me de minha ciência, mas para mostrar que o homem que prossegue melhor é o que prossegue com ordem, não o homem que, querendo dar um grande salto, se atira no precipício. Assim como as virtudes, assim também as ciências têm os seus degraus. É certo, tu poderias replicar:

`Mas há coisas que não me parecem ser de utilidade. Por que eu deveria manter-me ocupado com elas?'

Bem o disseste. Há muitas coisas que, consideradas em si mesmas, parecem não ter valor para que se as procurem, mas, se consideradas à luz das outras que as acompanham, e pesadas em todo o seu contexto, verifica-se que sem elas as outras não poderão ser compreendidas em um só todo, e, portanto, de forma alguma devem ser desprezadas. Aprende a todas, verás que depois nada te será supérfluo. Uma ciência resumida não é uma coisa agradável" (19).

Se este texto mostra que o Didascalicon é claro ao afirmar que o estudante não deve excluir de seu interesse nenhuma forma de conhecimento, ele também não é menos claro ao explicar as razões pelas quais se recomenda tal preceito. O estudante que, no afã de aprender de tudo, muda constantemente seu objeto de interesse, não entendeu o que Hugo lhe quer ensinar:

"A troca dos bens",

diz Hugo,

"pertence à leviandade;
o exercício, porém, à virtude"
(20).

Hugo quer que o aluno nada exclua de seu interesse para com isto aprender a buscar metodicamente a integridade do conhecimento que é um todo ordenado cujas partes principais não podem ser compreendidas em um só conjunto sem o concurso das partes secundárias. Por isto é que o texto acima adverte que "as ciências têm os seus degraus" e que é preciso nelas "prosseguir com ordem":

"Aqueles que estão sempre desprezando
o velho pelo novo
e aqueles que sobem pelos inferiores aos superiores",

diz Hugo de S. Vitor em outro lugar,

"correm por caminhos muito diversos;
aquele que busca a mudança é tão fastidioso
como é aplicado
aquele que apetece o aperfeiçoamento"
(21).

Outro aspecto desta questão que também deve ser considerado é que, se o estudante não deve desprezar nenhuma forma de conhecimento, isso não significa que deva aplicar-se a todas por igual. "Tudo aquilo que tende a algum fim a ele se dirige segundo algum caminho próprio", diz Hugo (22), e, em vista disso, há para o aluno, entre os diversos conhecimentos, uma hierarquia de importância. O aluno, portanto, deve aprender

"a julgar não só entre o dia e a noite,
mas também entre o dia e o dia.

Julgar entre o dia e a noite é dividir
as coisas más das boas;
julgar entre o dia e o dia é ter
o discernimento entre o bom e o melhor.
Muitos, não possuindo este discernimento,
trabalharam muito e progrediram pouco,
já que há alguns bens nos quais
há muito para se mover
e pouco para se promover,
enquanto que há outros que,
com pequeno trabalho,
produzem grande fruto"
(23).

Os que não são capazes de julgar entre o dia e o dia, diz Hugo, "perdem-se do reto caminho" (24):

"É de pessoas assim que a Sagrada Escritura
diz que estão sempre aprendendo,
mas nunca chegam ao conhecimento da verdade"
(25).

A própria organização geral do Didascalicon nos fornece um outro exemplo de como, segundo Hugo, há uma hierarquia de importância entre os diversos conhecimentos. Dos sete livros do Didascalicon, tal como se encontram no vol. 175 da Patrologia Latina de Migne, os seis primeiros se dedicam ao tema do estudo e da leitura; e destes seis, os três primeiros versam sobre o modo de estudar o conjunto dos diversos conhecimentos e os três últimos sobre o modo de estudar apenas as Sagradas Escrituras.

Numa obra anterior, os Princípios Fundamentais de Pedagogia, procuramos tratar da Pedagogia, à luz das obras de Hugo de S. Vitor, de um modo geral e, de um modo mais especial, da contemplação, fim da mesma. Na Educação segundo a Filosofia Perene tivemos idêntico objetivo, abordando o mesmo tema enquadrado dentro da tradição mais vasta da qual Hugo de S. Vitor é apenas uma parte. Neste presente livro nossa intenção será tratar a respeito dos princípios relacionados com o estudo das Sagradas Escrituras, tais como podem ser encontrados nas obras de Hugo de S. Vitor.



Referências

(13) Hugo S. Vitor: De Modo Discendi et Meditandi, PL 175, 879.
(14) Ibidem, loc. cit.. (15) Ibidem, PL 175, 878-879. (16) Ibidem, PL 175, 879.
(17) Hugo S. Vitor: Didascalicon, L. V, C. 8-9; PL 175, 797.
(18) Idem: De Modo Discendi et Meditandi; PL 175, 877.
(19) Idem: Didascalicon; L. VI, C. 6; PL 175, 799C-801A.
(20) Idem: De modo meditandi; PL 175, 997-8
(21) Ibidem: PL 175, 998. (22) Ibidem: PL 175, 996. (23) Ibidem: loc. cit..
(24) Idem: Didascalicon; L.V, C.5; PL 175, 794.
(25) Ibidem, loc. cit..