I.4.

O Estudo das Sagradas Escrituras na pedagogia vitorina.

Se as Sagradas Escrituras ocupam um lugar de especial destaque na pedagogia dos vitorinos isto não se deve a uma afinidade de caráter pessoal de Hugo de S. Vitor para com elas mas a que, segundo o mesmo Hugo, uma análise destes livros revela que eles ocupam um lugar ímpar entre todas as obras que já aparecerem na história humana. As Sagradas Escrituras não são apenas diferentes, sob muitos aspectos, de todas os demais livros que já se escreveram; elas são também, nestes mesmos aspectos, um caso único em toda a história da literatura.

O caráter ímpar das Sagradas Escrituras já se evidencia pela finalidade com que foram escritas. Segundo o prólogo do De Sacramentis Fidei Christianae,

"quem se aproxima das lições
das Sagradas Escrituras
com o desejo de aprender,
deve considerar em primeiro lugar
qual é o assunto de que tratam,
pois assim poderá alcançar mais facilmente
a verdade e a profundidade de suas sentenças.

A matéria de todas as Sagradas Escrituras
é a obra da restauração humana"
(26).

Nunca, diz Hugo de S. Vitor, foi escrita qualquer outra obra que tratasse ou tivesse como objetivo abordar semelhante tema; a matéria de todos os demais livros, diz Hugo em outro lugar,

"consiste nas obras da criação,
enquanto que a matéria das Sagradas Escrituras
consiste na obra da restauração"
(27).

E, justamente porque é assim, o estudo das Sagradas Escrituras produz frutos que nenhuma outra obra é capaz de produzir; são frutos objetivos e claramente perceptíveis pelos que se dedicam a seu estudo, e que lhes advém ainda que não se lhes tivesse avisado de antemão que viriam:

"Quem quer que se entregue
ao estudo da sabedoria divina",

diz Hugo,

"conhecerá o fruto de suas lições
mais pela própria experiência
do que pelos testemunhos alheios"
(28).

Os frutos do estudo das Sagradas Escrituras, repetirá Hugo em muitas de suas obras, são principalmente dois, um na inteligência e outra na vontade. O primeiro é o conhecimento da verdade e a aquisição da ciência, e o segundo é o amor do bem e a ornamentação da alma pelas virtudes.

Esta afirmação, que à primeira consideração poderia parecer apenas uma manifestação espontânea dos sentimentos piedosos de um homem religioso, examinada dentro do conjunto da obra de Hugo de S. Vitor revela ser, na realidade, uma conclusão necessária proveniente de uma compreensão mais profunda da natureza humana e da mensagem evangélica. Pois, segundo teremos oportunidade de examinar mais adiante, Hugo repete constantemente em suas obras que o homem havia sido criado inicialmente num estado de elevação espiritual do qual veio a decair pelo pecado; e, em sua queda, foi vulnerado principalmente em dois pontos: na inteligência, pela ignorância do bem, e na vontade, pelo desejo do mal. Se, portanto, o assunto de que tratam as Sagradas Escrituras é a obra da restauração humana, e elas próprias fazem parte desta obra, os frutos de seu estudo não poderiam ser outros senão curar estas duas feridas principais em que o homem foi vulnerado em sua queda.

Esta compreensão da natureza da indigência espiritual do homem após a queda é tal que perpassa toda a pedagogia e a espiritualidade vitorina; no acertado dizer de um conhecido autor contemporâneo,

"por volta do século XIII começam a delinear-se
distintas escolas de espiritualidade
em torno às grandes ordens religiosas.
A escola de São Vitor representa um termo médio
entre a escola beneditina, de orientação predominantemente afetiva,
e a dominicana, que nascerá em seguida,
com tendência mais intelectualista"
(29).

Conhecimento e virtude, amor e sabedoria, ou outras expressões similares, será um binômio constantemente empregado por Hugo de S. Vitor ao descrever a ascensão do homem até Deus:

"Deus habita no coração do homem de dois modos",

diz Hugo de S.Vitor,

"pelo conhecimento e pelo amor,
embora ambas estas coisas sejam uma só casa,
pois todo aquele que conhecer a Deus acabará por amá-lo,
e ninguém poderá amá-lo sem conhecê-lo.
Para isto foram feitas as Sagradas Escrituras,
para isto foi feito o próprio mundo,
para isto o Verbo se fêz carne,
Deus se humilhando para sublimar o homem.
A arca de Noé é uma figura deste edifício espiritual,
no qual deves aprender a sabedoria e a virtude
que adornarão a tua alma"
(30).

Assim, quando o homem que se dedica ao estudo das Sagradas Escrituras percebe por experiência própria que seus frutos são sabedoria e virtude, este dado experimental possui suas raízes no quadro mais vasto da história da salvação e da situação presente do homem dentro da ordem do Universo.

Não é apenas isto, porém. Pois, conforme vimos, a finalidade de toda espiritualidade é conduzir o homem à contemplação; e, embora tenhamos dado uma primeira explicação do que seja a contemplação segundo o Opúsculo sobre o Modo de Aprender de Hugo de S. Vitor, não é menos verdade que a contemplação tal como se encontra descrita na tradição cristã se produz do encontro das virtudes teologais de uma fé firme, constante e pura com uma caridade intensa. Ora, a fé, segundo Tomás de Aquino, reside na inteligência, e é um modo de conhecimento, pois, dizem as Sagradas Escrituras, que

"pela fé conhecemos que o Universo
recebeu a sua ordem de uma palavra de Deus,
de modo que as coisas visíveis
não provieram das sensíveis";

Heb. 11,3

e a caridade, uma virtude infundida por Deus na vontade pela qual cumprimos o maior mandamento do Cristianismo, é aquele amor perpétuo que nos foi prescrito pelo Evangelho de S. Marcos:

"Amarás o Senhor teu Deus
com todo o teu coração,
com toda a tua alma,
com todo o teu entendimento,
e com todas as tuas forças".

Mc. 12,28

A contemplação, pois, fim da pedagogia vitorina, resulta do encontro de uma virtude que reside na inteligência com outra virtude que reside na vontade; o estudo das Sagradas Escrituras, segundo Hugo de S. Vitor, se faz parte tão importante de uma pedagogia que conduz à vida contemplativa, deve, portanto, produzir os seus efeitos tanto em uma quanto em outra faculdade. É o que diz Hugo no prólogo das Allegoriae Utriusque Testamenti:

"Nas Sagradas Escrituras a alma do estudante
encontra primeiro uma ocupação honesta,
depois a sutilidade da meditação
e a assiduidade da oração;
finalmente, encontrará ali também
a suprema claridade da contemplação"
(31).

E, logo em seguida, acrescenta:

"Aquele que, portanto, recusar apascentar-se
no alimento da Sagrada Escritura,
já principiou a perder a vida de sua alma"
(32).



Referências

(26) Hugo de S.Vitor: De Sacramentis Fidei Christianae; Prologus, C.1-2; PL 176, 183.
(27) Idem: Praenotatiunculae de Scripturis et Scriptoribus Sacris, C. II; PL 175, 11.
(28) Idem: Allegoriae Utriusque Testamenti; Prologus; PL 175, 633-4.
(29) A.Royo Marin O.P.: Teologia de la Perfección Cristiana; Madrid, BAC, 1968; V Ed., pg.5.
(30) Hugo S.Vitor: De Arca Noe Morali, L. I, C. 2; PL 176, 621-2.
(31) Idem: Allegoriae Utriusque Testamenti, Prol.; PL 175, 633-4.
(32) Ibidem, loc cit..