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Uma segunda diferença entre as Sagradas Escrituras e
os demais livros, segundo Hugo de S. Vitor, é que há nas Sagradas
Escrituras canais de significação mais profundos inexistentes nos
outros livros. Consideremos as próprias palavras de Hugo:
"No discurso sagrado não apenas as palavras,
mas também as coisas significadas pelas palavras
têm por sua vez outras significações.
Trata-se de algo que só muito raramente
se observa em outros escritos.
Os filósofos apenas conheceram
as significações das palavras,
embora as significações das coisas
sejam mais excelentes
do que as significações das palavras.
As significações das palavras
foram instituídas pelo uso,
as significações das coisas
foram impostas pela natureza" (33).
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É importante entender corretamente o que Hugo de S. Vitor quer
dizer com estas palavras. Segundo ele, as Sagradas Escrituras
podem ser lidas segundo diversos significados que se superpõem.
Se as lermos e as entendermos segundo o significado que as
palavras têm, este entendimento corresponderá ao sentido literal
ou histórico. Mas se as lermos e as entendermos segundo o
significado que as coisas significadas pelas palavras também têm,
podemos obter daí uma série de leituras diversas, pois, ao
contrário das palavras, que raramente significam
"mais do que duas ou três coisas,
as coisas significadas pelas palavras
podem ter significados tão variados
quantas forem as propriedades visíveis ou invisíveis
que tiverem em comum com as demais coisas"(34).
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Deve-se insistir que quando se afirma que nas Sagradas
Escrituras as coisas significadas pelas palavras significam, por
sua vez, outras coisas, isto não ocorre pela vontade dos autores
sagrados ou por alguma convenção estabelecida pelas Sagradas
Escrituras, mas tão somente pelas próprias coisas em si mesmas,
isto é, pela própria natureza das coisas, independentemente de
que algum dia tenham existido ou não escrituras sagradas. Sempre
que alguma coisa possua, por sua natureza, alguma semelhança com
outra, ela passa a representar, por instituição da natureza, e
não por convenção das Sagradas Escrituras, aquela outra coisa.
Para entendermos corretamente isto, tomemos o exemplo
de uma árvore. Consideremos o que poderia significar uma árvore
enquanto árvore. Enquanto palavra, árvore significa uma forma de
vida vegetal; ela própria, porém, enquanto planta, significa,
dentre outras coisas, a vida espiritual do homem.
De fato, assim como as diversas virtudes da alma
humana surgem nascidas de uma virtude maior do que todas, que é a
caridade, assim também em uma árvore os mais diversos ramos
nascem de um só tronco. Sem a seiva conduzida pelo tronco até os
ramos a árvore não cresce, nem produz ramos; assim também, não há
crescimento espiritual nem pode haver verdadeiras virtudes sem
existir primeiramente a virtude da caridade.
Não existe, porém, caridade sem existir a fé, pois sem
a fé, dizem as Sagradas Escrituras, "é impossível agradar a
Deus" (Heb. 11,6). A caridade se sustenta pela estabilidade
da fé, assim como o tronco de uma árvore tem sua estabilidade e
seu alimento pela profundidade das raízes. As raízes, por sua
vez, tiram sua força da própria consistência da terra, que,
conforme veremos, Hugo de S. Vitor afirma várias vezes ser
símbolo da Igreja, pela estabilidade da fé de quem ela é o
sustentáculo.
As folhas das árvores, pelas quais a planta respira,
nascem dos ramos; assim também na vida espiritual o homem respira
pela contemplação. A vida contemplativa, que nasce dos ramos das
virtudes, é, deste modo, a respiração da alma virtuosa, isto é,
da alma frondosa pela quantidade e pela robustez de seus ramos.
Assim como as folhas respiram retirando energia do Sol, o qual,
pela sua luz, significa o próprio Deus, assim também Deus é a luz
dos homens e o objeto da vida contemplativa.
Já os frutos das árvores representam as boas obras,
impossível de existirem sem os ramos das virtudes e sem a
respiração da contemplação. Os frutos não nascem das folhas; ao
contrário, encontram-se pendurados diretamente nos ramos; assim
também as boas obras não nascem da contemplação, mas são frutos
das diversas virtudes; entretanto, consta que nunca se encontram
frutos abundantes em uma árvore desfolhada.
Uma árvore, ademais, pode não apresentar frutos em
algumas épocas do ano, assim como os homens, por não se
apresentar ocasião necessária, podem em certas épocas não
exercitar algumas das virtudes. Mas, qualquer que seja a estação,
uma árvore desfolhada perde toda a sua beleza, enquanto que uma
árvore frondosa, rica em folhagem, sempre servirá de pouso para
as aves do céu e de sombra para os homens e os animais que se
deliciam em repousar ao seu abrigo.
As aves do céu que repousam e fazem seus ninhos por
entre as folhagem de uma árvore frondosa são os homens
espirituais, que voam pelo céu, isto é, pelas alturas da
contemplação, pois o céu, de cuja altura se vê a tudo, significa
também a contemplação, a qual, segundo Hugo de S. Vitor, é algo
que "se estende à compreensão de muitas ou também de todas as
coisas, abarcando-as em uma visão plenamente manifesta". As aves
do céu que fazem o seu ninho entre os ramos e em meio à folhagem
da árvore significam as amizades que só existem entre homens
santos.
Os animais ou os demais homens que descansam à sombra
da árvore significam os pecadores ou os principiantes na vida
religiosa, cuja mente, constantemente presa às coisas da terra,
não consegue se elevar às coisas do céu. Mesmo estas pessoas,
entretanto, quando casualmente se deparam com um homem santo,
eminente pelos ramos das virtudes e pela folhagem da
contemplação, percebem que a presença de sua sombra tem um
atrativo particularmente agradável que é inútil procurar sob o
calor que fustiga a terra árida. A companhia destes homens é como
aquela sombra refrescante que só uma árvore bem folheada é capaz
de proporcionar e sua sombra é aquela amizade que se dá entre os
homens que já vivem na terra a vida do céu e aqueles que ainda
não a conhecem ou a conhecem imperfeitamente. É uma amizade,
porém, imperfeita em comparação com a anterior, pois só as aves
do céu estabelecem seu ninho nas árvores, enquanto que os homens
que repousam às suas sombras estão ali apenas de passagem; depois
se levantam e vão embora, para cuidarem de sua vida sob o calor
fustigante do sol. Estes são aqueles aos quais se referia o
Eclesiastes quando dizia:
"Que proveito tirará o homem
de todo o seu trabalho
e da aflição de espírito,
com que é atormentado debaixo do sol?
Vi tudo o que se faz debaixo do sol,
e achei que era vaidade e aflição de espírito.
Os perversos dificultosamente se corrigem,
e o número dos insensatos é infinito". |
Uma árvore, assim, significa tudo isto. Mas, deve-se reparar,
todo este seu significado não depende em nada da existência das
Sagradas Escrituras, e sim apenas de sua própria natureza. Ainda
que nunca tivessem existido as Sagradas Escrituras, uma árvore
continuaria a significar para sempre a mesma coisa. No exemplo
acima não era preciso citar nenhuma passagem da Escritura para
descobrir o significado da árvore. Isto quer dizer que não são
apenas as coisas significadas pelas palavras das Sagradas
Escrituras que significam outras; também as coisas significadas
pelas palavras de qualquer outro livro significam por sua vez as
mesmas coisas que as mesmas palavras das Sagradas Escrituras. A
diferença é que, enquanto nos demais livros os significados das
coisas significadas pelas palavras, quando colocados um ao lado
do outro, formam um discurso inteiramente desconexo e sem
sentido, Hugo de S. Vitor faz notar que nas Sagradas Escrituras
os significados destas mesmas coisas produzem um discurso de
raríssima beleza e de significação ainda mais profunda do que o
sentido literal das palavras do mesmo discurso. Até hoje, ao que
se saiba, só Deus escreveu uma obra com características como
esta.
S. Tomás de Aquino também afirma quase a mesma coisa
na seguinte passagem da Summa Theologiae:
"O autor das Sagradas Escrituras é Deus,
que tem o poder de não apenas
acomodar as palavras à sua significação,
o que também o homem pode fazer,
mas também as próprias coisas.
E por isso,
embora em todas as ciências
as palavras signifiquem alguma coisa,
a Ciência Sagrada tem como próprio
que as próprias coisas significadas pelas palavras
também signifiquem, por sua vez,
alguma outra coisa.
A primeira significação,
pela qual as palavras significam as coisas,
pertence ao sentido histórico ou literal.
A significação, porém,
pela qual as coisas significadas pelas palavras
por sua vez significam outras coisas,
é chamada de sentido espiritual,
que se fundamenta sobre o sentido literal
e o supõe" (35).
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Esta propriedade ímpar das Sagradas Escrituras foi reconhecida
não apenas por S. Tomás de Aquino e Hugo de S. Vitor, mas por
quase todos os santos padres que viveram antes deles, como Santo
Agostinho, S. Jerônimo, S. Gregório Magno, S. Beda o Venerável,
para mencionar apenas alguns nomes onde caberia praticamente toda
a lista dos escritores cristãos do primeiro milênio da Igreja.
Todos estes autores concordam unanimemente com o que
acabamos de expor; eles diferem apenas, e ainda assim muito
pouco, na nomenclatura que dão aos diversos sentidos espirituais
que as Escrituras podem ter, o próprio Hugo de S. Vitor se
valendo de nomenclaturas diversas de acordo com a obra que
escreve. A mais freqüentemente usada por Hugo de S. Vitor
consiste em chamar de sentido histórico ou literal às coisas
significadas pelas palavras; sentido alegórico ao que é
significado pelas coisas significadas pelas palavras quando, por
meio delas, por um fato visível se significa outro fato visível,
como quando por um fato do Velho Testamento se significa um fato
do Novo; e sentido tropológico ou moral quando por uma
determinada coisa ou determinado fato se significa alguma outra
coisa que devemos fazer. De qualquer maneira, se de autor para
autor as diferenças de nomenclatura são pequenas, a realidade que
nos é descrita através delas é sempre a mesma.
O termo alegoria ou sentido alegórico é o mais
constantemente utilizado por todos os autores; tal palavra,
porém, é um termo infeliz para os dias de hoje. Segundo Hugo de
S. Vitor, o sentido alegórico diz respeito a um significado real,
mais profundo e verdadeiramente intencionado por Deus ao inspirar
os autores sagrados; aos ouvidos do homem moderno, entretanto, a
palavra alegoria soa como uma referência a uma forma de fantasia,
a um simples produto da imaginação do leitor, desvinculado da
realidade a que verdadeiramente o texto tem por objeto.
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