14.

Texto do Comentário de Santo Agostinho à Epístola aos Romanos.

"Quando", diz Agostinho em seu Comentário à Carta do Apóstolo, "São Paulo afirma na Epístola aos Romanos que

`pela Lei não será justificada
toda carne diante de Deus;
pela Lei, de fato,
vem o conhecimento do pecado',

e outras passagens semelhantes, que parecem dar a entender que o Apóstolo está desprezando a Lei dada por Deus, devemos interpretar estas passagens com cuidado, sem que pensemos que o Apóstolo esteja condenando a Lei divina, nem que esteja ensinando que tenha sido retirado do homem o livre arbítrio.

O que ocorre é que podemos distingüir quatro estágios ou fases na vida humana, isto é, antes da Lei, debaixo da Lei, debaixo da graça e na paz. Antes de nos ser dada a Lei de Deus, seguimos facilmente os desejos da carne. Quando nos é dado o conhecimento da Lei de Deus, estamos debaixo da Lei, mas somos forçados pelos desejos da carne. Quando estamos debaixo da graça, nem seguimos os desejos da carne, nem somos forçados por eles. Quando estivermos na paz, sequer haverá os desejos da carne.

Antes da Lei, portanto, não lutamos, porque não somente desejamos e pecamos, como também aprovamos o pecado. Quando estamos debaixo da Lei lutamos, mas somos vencidos. Confessamos ser mau aquilo que fazemos, e confessando tratar- se de coisa má, embora não a queiramos fazer, não havendo, todavia, a graça, somos vencidos. Neste estágio nos é mostrado o quanto estamos caídos, e quando nos queremos levantar e apesar disso tornamos a cair, nos afligimos mais gravemente. Por isso é que São Paulo diz na Epístola aos Romanos:

`A Lei foi dada
para que abundasse o pecado'.

Rom. 5, 20

Por isso também é que ele nos diz:

`É pela Lei que vem
o conhecimento do pecado'.

Rom. 3, 20

De fato, a Lei não pode remover o pecado; somente a graça pode removê-lo. A Lei, portanto, é boa, porque proíbe as coisas que devem ser proibidas, e ordena que se cumpram as coisas que devem ser feitas. Mas quando alguém presume que poderá cumprí-las com as suas próprias forças, e não pela graça de seu Libertador, de nada lhe valerá esta presunção; antes, ao contrário, isto até lhe causará dano, dando-lhe a oportunidade de ser dominado pelo desejo de pecados ainda maiores nos quais se verá cair.

Assim, portanto, quem quer que se reconheça caído e incapaz de se levantar por si só, implorará o auxílio do Libertador. Virá assim a graça que perdoará os pecados passados, auxiliará o esforçado, dará amor à justiça, e retirará o medo. Quando isto ocorrer, embora certos desejos da carne, enquanto estivermos nesta vida, lutem contra o nosso espírito, tentando levá-lo ao pecado, o espírito, todavia, não consentindo nestes desejos, por estar firme na graça e no amor de Deus, não permitirá o pecado. É isto o que significa o que diz o Apóstolo:

`Não reine, portanto,
o pecado em vosso corpo mortal
para que obedeçais aos seus desejos'.

Rom. 6, 12

Nesta passagem, de fato, o apóstolo afirma haver em nós desejos, aos quais, não obedecendo, não permitimos que o pecado reine em nós. Mas como estes desejos da carne nascem da mortalidade da carne, que trazemos do primeiro pecado do primeiro homem de onde que nascemos carnalmente, não cessarão eles até que não mereçamos, pela ressurreição que nos é prometida, aquela transformação do corpo em que haverá perfeita paz, nada se opondo a nós, não nos opondo nós a Deus. Isto também é o que diz o Apóstolo ao escrever:

`O corpo está morto pelo pecado,
mas o espírito vive para a justiça.
Se, portanto, o espírito daquele
que ressuscitou Jesus dos mortos
habita em vós,
aquele que ressuscitou Cristo Jesus dos mortos
vivificará os vossos corpos mortais
pela habitação do Espírito em vós'.

Rom. 8, 10-11

O livre arbítrio, portanto, foi perfeito no primeiro homem; em nós, porém, antes da graça, não há livre arbítrio para que não pequemos, mas apenas para que não queiramos pecar. A graça, porém, faz com que não apenas queiramos proceder com retidão, mas que também o possamos; não pelas nossas forças, mas pelo auxílio do Libertador, que nos dará a perfeita paz na ressurreição, a qual paz perfeita se segue à boa vontade:

`Glória', de fato,
`a Deus no mais alto do céu,
e paz na terra aos homens de boa vontade'.

Lc. 2, 14

Que quer dizer, pois, o Apóstolo quando diz:

`Destruímos, pois,
a Lei com a fé?
Longe disso;
antes, estabelecemos a Lei' ?

Rom. 3, 31

`Estabelecemos a Lei' significa: colocamos-lhe o seu fundamento. Como, porém, se pode colocar o fundamento da Lei, a não ser pela justiça? Esta justiça, porém, é a que vem pela fé, pois as coisas que não podiam ser cumpridas pela Lei, puderam sê-lo através da fé".