Notas de FHE

IV

PARMÊNIDES

- Primeira Parte -



01.

Quem compreendeu o espírito das escolas pitagóricas e a distância que vai destas para os primeiros pré- socráticos, poderá compreender melhor como se moldou a doutrina que divisamos nos fragmentos que nos restaram das obras de Parmênides. Segundo um testemunho de Diógenes Laércio, um escritor da Antigüidade que escreveu a biografia de vários filósofos gregos, Parmênides recebeu sua educação de um filósofo pitagórico chamado Ameinias e levou uma "vida pitagórica".

02.

Os primeiros pré socráticos perceberam claramente como a natureza parece participar do caráter racional da mente humana a ponto de, fazendo-a objeto de contemplação intelectual, utilizarem-se desta contemplação da natureza como uma forma de educação da inteligência humana.

03.

Os pitagóricos foram mais longe. Pois, conforme vimos, deram-se tão mais profundamente conta deste caráter aparentemente inteligente do mundo que nos cerca que chegaram ao ponto de afirmar que nenhum princípio material, nenhuma molécula, nenhum átomo ou nenhum tipo de partícula sub atômica poderia jamais ser a essência da natureza, mas sim esta sua aparente participação de uma natureza racional.

04.

Mas Parmênides, observando a natureza, foi mais longe do que todos os seus antecessores. Nos fragmentos de sua doutrina encontramos uma passagem de Clemente de Alexandria que reporta Parmênides ter dito que

"o mesmo é o ser e o pensar".

Esta afirmação, interpretada à luz do conjunto de sua doutrina e do conjunto dos filósofos posteriores, é na verdade uma das intuições mais profundas da história do pensamento.

05.

Parmênides apresenta esta e outras colocações semelhantes depois de uma introdução poética em que descreve ser transportado por uma carruagem de éguas capazes de levá- lo para onde o coração pedisse até a morada dos deuses que passaram a instruí-lo neste princípio e em suas conseqüências.

06.

Esta introdução do poema de Parmênides pode ser um simples recurso poético para mais artisticamente chamar a atenção do leitor que iria ler o restante de seu texto.

07.

É possível, porém, interpretá-lo como significando algo mais do que uma formalidade poética. Neste sentido, a carruagem seria a própria inteligência de Parmênides, que se prepara para a reflexão e a atividade intelectual. As éguas capazes de levá-lo para onde o coração pedisse são os desejos do filósofo de alcançar compreensão a respeito do assunto ao qual sua inteligência se aplica. Quando este desejo ou interesse é intenso, ele arrasta consigo a atividade intelectual na direção desejada tal como uma carruagem puxada por muitas éguas. A morada dos deuses, isto é, o ponto de chegada da carruagem, é a clareza da mente obtida quando ela compreende os princípios que governam o assunto examinado. Pode ser que Parmênides chamasse esta compreensão dos princípios como a morada dos deuses porque costuma-se associar aos deuses, ou a Deus, ser o princípio de todas as coisas. Seja como for, o fato é que chegando à morada dos deuses, Parmênides declara em seguida, nos fragmentos restantes, ter sido instruído por eles nos primeiros princípios da investigação filosófica.

08.

Este modo de se expressar de Parmênides mostra uma pessoa habituada não só ao trabalho da inteligência em geral, mas àquilo a que já chamamos de contemplação intelectual.

O que permite interpretar esta introdução deste modo é, dentre outras coisas, a alusão das éguas que levam a carruagem

"onde o coração pedisse".

É uma experiência natural que quando ao trabalho intelectual se une um componente afetivo, a atividade da inteligência pode passar natural e espontaneamente do raciocínio para a contemplação. Este fato foi sempre bem familiar entre os filósofos clássicos; ele é, entretanto, menos familiar nos tempos atuais porque hoje em dia a educação da inteligência não é um empreendimento cuja última finalidade é ela mesma, isto é, a própria inteligência. A educação da inteligência atualmente é, em geral, apenas um instrumento utilizado pela sociedade para a produção de bens. Estes bens podem ser bens de consumo, podem ser o próprio trabalho útil, podem ser também livros ou mesmo apenas uma nova teoria ou uma nova idéia que será registrada em um livro, em um arquivo ou na memória de um computador, mas será sempre alguma outra coisa além do simples enobrecimento da inteligência. No sistema educacional atualmente vigente o enobrecimento da inteligência, quando se dá, não se dá senão em função do outro objetivo realmente pretendido. Como tais objetivos, porém, são geralmente muito limitados, o resultado é que normalmente os educandos não terão familiaridade senão com atividades da inteligência igualmente muito limitadas.

09.

Mas, voltando aos princípios de Parmênides, este dizia que o mesmo é o ser e o pensar. Ao que tudo indica, com isto ele quis dizer que a estrutura dos seres reais e a estrutura do pensamento são exatamente a mesma.

10.

Dizer que a estrutura dos seres reais e a estrutura do pensamento são exatamente a mesma, significa dizer que as leis fundamentais que regem os seres reais e as leis fundamentais que regem o pensamento são exatamente as mesmas.

Ou seja, que o que é impossível para o pensamento enquanto pensamento é impossível para os seres enquanto seres e vice-versa.

11.

Mas devemos aqui, antes de prosseguirmos, perguntar o que queremos dizer com algo ser impossível para o pensamento.

É impossível para o pensamento aquilo que envolve uma íntima contradição de lógica. Neste sentido, não é impossível para o pensamento, por exemplo, conceber um ser humano com várias cabeças. Um ser humano com várias cabeças seria uma coisa estranha e que nunca foi vista, mas um homem com várias cabeças, ou uma galinha com quatro patas, ou outras coisas deste tipo não envolvem uma contradição de lógica. Estas coisas não existem, mas nada impediria que elas existissem se a ordem natural fosse diferente e, além disso, esta mesma outra ordem natural não é também impensável.

12.

Uma contradição de lógica é alguma coisa que é impensável simplesmente. Por exemplo, dois mais dois serem cinco é algo que envolve uma contradição de lógica.

Como um outro exemplo, a matemática prova que a soma dos ângulos internos de um triângulo é sempre igual a 180 graus. A existência de um triângulo cujos ângulos internos somados tivessem como resultado um valor diferente de 180 graus envolveria uma contradição de lógica. Além disso, deve-se acrescentar também que jamais foi visto um triângulos destes em lugar algum.

Uma coisa ser e não ser uma mesma coisa ao mesmo tempo é uma outra contradição de lógica que jamais foi vista em lugar algum.

Um fato que aconteceu passar a jamais ter acontecido é também outra contradição de lógica que nunca consta ter sido vista.

13.

Todas estas constatações, isto é, todas estas constatações de que cada uma destas contradições de lógica nunca foram observadas no mundo real, podem em um primeiro exame ser consideradas como fatos tão evidentes que não necessitariam de maiores explicações. Mas, quando se consideram melhor estas mesmas coisas, vemos que não estamos diante de algo tão simples como nos parecia.

Sim, porque se alguma coisa envolve uma contradição de lógica e, portanto, se é inintelegível por causa deste motivo, isto é uma propriedade que pertence ao mundo do pensamento. Significa que há certas coisas as quais o mundo do pensamento é radicalmente incapaz de apreendê- las. O mundo do pensamento não é incapaz de apreendê-las porque isto lhe seja difícil, é incapaz de apreendê-las porque para o pensamento trata-se de uma coisa impossível em si mesma. É impossível para ele agora e será impossível para ele sempre. É uma limitação do mundo do pensamento, pela qual ele não é capaz de conceber tais coisas. Nele tais pensamentos não fazem sentido e simplesmente não podem ser consistentemente concebidos.

14.

Mas se o mundo do pensamento não é capaz de concebê-las, isto não deveria significar que elas não possam existir.

No entanto, parece que é exatamente o contrário o que acontece, porque nunca tais coisas foram vistas em lugar algum e, ademais, ninguém tem esperança de que um dia venham a sê-lo. Com isto somos conduzidos à seguinte pergunta:

"Por que não pode existir alguma coisa
que a mente humana seja
radicalmente incapaz de compreender,
se esta é uma limitação
do mundo da inteligência
e apenas do mundo da inteligência?"

Por que esta limitação parece ser também uma limitação do mundo da natureza, se a natureza não é uma mente?

Por que não poderia existir dentro da realidade uma coisa que envolvesse uma contradição de lógica?

Por que eu não poderia ver diante dos meus olhos uma coisa que a mente fosse capaz de provar que para a inteligência ela é contraditória mas que, apesar disso, já que a natureza não é obrigada a ter as restrições que são próprias do mundo da inteligência, ela seria capaz de produzir?

Uma contradição de lógica, como o próprio nome sugere, é algo que por sua natureza não pode existir no mundo mental. Mas por que esta lei do mundo mental parece ser também uma lei do mundo real?

Existiria, então, uma relação entre o mundo do pensamento e o mundo da natureza mais profunda do que os filósofos pré-socráticos anteriores haviam imaginado?

É isto o que Parmênides quis dizer quando afirmou que

"o ser é o mesmo que o pensar".

15.

E isto não é só o que ele disse, mas o que todos nós podemos ver por nossa própria experiência.

Quando nós chegamos à conclusão de que um raciocínio envolve uma contradição, nós freqüentemente dizemos simplesmente: "Isto não existe".

Nós não dizemos: "Isto é impensável". Esta última afirmação deveria ser aparentemente a única coisa que teríamos direito de dizer.

Quando nos vemos diante destas contradições, na maior parte das ocasiões nós pulamos a conclusão "Isto é impensável" e saltamos direto para a outra: "Isto não pode, em hipótese alguma, existir".

16.

Chegamos assim a uma conclusão digna de atenção. A natureza e o mundo do pensamento parecem seguir as mesmas leis.

Certas leis fundamentais da atividade intelectiva, que não parecem que devam ter relação com a natureza, são leis igualmente rigorosas para com a existência dos seres em geral.

17.

Devemos notar que esta constatação sobre a natureza é mais profunda do que aquelas que os primeiros pré socráticos nos deixaram.

Com os dados dos pré socráticos anteriores a Parmênides somente podíamos chegar à conclusão de que a natureza tinha uma aparência de participação da natureza racional. Mas com Parmênides vamos além. A natureza parece se mostrar como verdadeiramente participante dos mesmos fundamentos da natureza racional.

Com os pré socráticos anteriores a natureza parecia inteligente, comportava-se como se fosse inteligente, podia ser utilizada como objeto da nossa atividade inteligente, mas era sempre tratada "como se fosse" dotada de uma participação da natureza inteligente. Mas agora, com Parmênides, ele consegue perceber que, em um certo sentido, o ser é o mesmo que o pensar, e com isto parece que esta interdependência entre natureza e pensamento é mais séria do que pensávamos.

18.

É importante mostrar como a constatação deste fato é um desafio mesmo para a ciência moderna.

Um cientista moderno que estivesse ouvindo Parmênides e que não tivesse tido tempo para refletir sobre o assunto diria, num primeiro momento, que sua primeira impressão sobre a constatação de Parmênides seria a de não se tratar de algo tão extraordinário assim. Antes, ao contrário, este fenômeno teria uma explicação até elementar. Esta explicação, diria o cientista, vem da teoria da evolução.

19.

Segundo a teoria da evolução, todo ser vivo, animal ou vegetal, tem continuamente descendentes que podem estar sujeitos a mutações ocasionais. Quando, por acaso, estas mutações são melhor ambientadas ao mundo que os cerca e os torna mais aptos para a luta pela sobrevivência, isto faz com que sobreviva o animal mais apto em detrimento do animal menos apto. Desta maneira, a natureza selecionaria, automaticamente, os seres mais evoluídos dos menos evoluídos.

Assim, por exemplo, em época de escassez de alimentos, as espécies que podem se alimentar de um número maior e mais diversificado de alimentos sobrevivem, enquanto que as que são obrigadas a uma alimentação mais restrita parecem e se extinguem.

20.

Assim é que se explica, diriam os biólogos, a admirável adaptação do ser humano ao meio ambiente. É a seleção natural que favorece os seres vivos que, por acaso, estavam mais adaptados ao meio que os circunda.

21.

Por exemplo, o homem não enxerga, por meio da sua vista, os raios X, mas apenas a luz nos comprimentos de onda normalmente emitidos pelos objetos à sua volta. Como a teoria da evolução explica isto?

Isto aconteceu porque se tivesse existido alguma vez algum animal dotado de visão de raios X este animal nada veria, já que os corpos na superfície da Terra não costumam emitir raios X e, portanto, um animal com visão sensível aos raios X teria sido facilmente devorado pelos outros animais que enxergassem de fato. Os que, porém, como nós, eram capazes de ver as coisas ao seu redor, podendo se defender mais facilmente dos ataques dos animais que não enxergando nada se defendem apenas pelo tato, acabariam sobrevivendo e sobrevivendo talvez justamente às custas dos que estavam em desvantagem em relação a eles.

22.

É assim que esta teoria explica também porque o homem está adaptado a digerir justamente os alimentos que a natureza lhe oferece à sua volta e não outros; porque está adaptado a enxergar justamente nas freqüências de onda que os objetos emitem à sua volta; porque está adaptado a ouvir justamente os sons na freqüência em que os principais acontecimentos à sua volta provocam ruído; porque está adaptado a respirar justamente o ar que está à sua volta, e assim por diante.

Seria de se esperar, portanto, que a mesma explicação funcionasse para o caso da inteligência. Por este mesmo mecanismo teria se originado no homem uma inteligência que segue as mesmas leis do ambiente que o cerca. Seria apenas uma questão de seleção natural. Se alguma vez houve algum animal cuja inteligência não estivesse em harmonia com o mundo à sua volta, ou mesmo que apenas tivesse começado a sofrer uma mutação biológica neste sentido, teria ele perecido na luta pela sobrevivência.

23.

Este é o primeiro argumento que instintivamente despontaria na mente de qualquer cientista moderno que ouvisse Parmênides falar.

Examinado, porém, este argumento mais atentamente, encontraremos que ele não serve como explicação para o problema levantado por Parmênides, e vamos tentar explicar por qual motivo.

Este argumento não vale para a questão levantada por Parmênides porque, em todos os casos de seleção natural, o modo de operar desta seleção natural é tal que produz um meio de escolher apenas entre capacidades de sobrevivência adaptadas em relação ao meio ambiente diretamente em contato com o animal, mas apenas em relação ao meio ambiente diretamente em contato com o animal, porque é com este meio ambiente imediatamente próximo ao animal que o animal luta e perece em sua espécie se não for capaz de se adaptar, ou continua existindo se for capaz. Todos os casos de seleção natural se referem apenas à adaptação em relação ao meio ambiente próximo à espécie.

Assim é que o homem está adaptado para viver à pressão próxima daquela encontrada na atmosfera terrestre ao nível do mar, que é o seu meio ambiente imediato. Colocado em qualquer outra atmosfera de outro planeta, provavelmente morreria. Mesmo na nossa própria, se conduzido apenas a alguns quilômetros acima do solo ou a alguns poucos metros abaixo da superfície da água, a pressão do ar ou da água lhe será fatal.

Assim também ele é capaz de se alimentar do que é produzido na Terra, mas se ingerisse plantas naturais de outro planeta, supondo que elas existam, a grande probabilidade é que morreria. De fato, se o homem entrar em um laboratório químico que produz substâncias artificiais, inexistentes na natureza, substâncias que a natureza nunca produziu, a grande probabilidade é que se envenenaria ao ingerir qualquer uma delas.

Mas não é assim no caso da inteligência.

Há como que uma intuição quase que inata no homem segundo a qual percebemos, como que intuitivamente, que em qualquer lugar do espaço, em qualquer lugar do universo, não apenas na superfície da Terra, sempre aquilo que é intrinsecamente ilógico não existe. Jamais encontraremos em lugar algum do universo um triângulo cuja soma dos ângulos internos não seja igual a 180 graus. Jamais estaremos em alguma galáxia onde deixaremos de ter nascido, apesar de termos nascido. Jamais algo lá será e deixará de ser a mesma coisa ao mesmo tempo. Jamais os teoremas da matemática, puramente racionais, deixarão de ser válidos quando transpostos para a realidade circundante.

Ora, seria pedir muito que a seleção natural, obrigando o homem por um método na verdade tão primitivo e limitado a lutar pela sobrevivência junto apenas ao seu meio ambiente, tivesse conseguido produzir uma qualidade tão ilimitada, em que mais pareceria que o homem estivesse lutando pela sobrevivência não na Terra, mas simultaneamente na totalidade da extensão do universo e contra todos os seres nele contidos.

24.

O argumento da teoria da evolução, que expusemos acima, vem da Biologia. Vimos o que Parmênides provavelmente lhe teria respondido se estivesse vivo entre nós. Mas diante desta resposta de Parmênides a ciência moderna teria uma segunda objeção a fazer. Esta proviria não mais dos biólogos, mas dos físicos. Infelizmente não poderemos mais acompanhar este outro argumento com os detalhes que o tornariam claro, porque a formação dos alunos do curso magistral nesta matéria não lhes seria suficiente. Mas trata-se de algo tão importante que devemos deixar dito aqui alguma coisa, nem que seja para constar e ser aproveitado bem mais tarde quando, tendo os alunos melhores conhecimentos de Física e possivelmente lembrando-se desta aula, lhes viesse espontaneamente à inteligência este possível raciocínio que exporemos a seguir.

Conforme vimos, os biólogos concordariam com a constatação de Parmênides, embora não com a explicação para a qual ele parece se dirigir. Diriam que realmente é verdade o que Parmênides constata. Parmênides tem razão quando diz que o ser e o pensar são o mesmo. Isto, porém, nada tem de misterioso ou de extraordinário e se explicaria de um modo muito simples pela teoria da evolução.

Os físicos, porém, ao contrário, diriam que Parmênides não tem razão sequer em sua constatação mais elementar. Ao contrário do que diriam os biólogos num primeiro momento, para os físicos pareceria imediatamente claro que a mente humana não está adaptada, de maneira nenhuma, a todos os seres do universo. A justificativa desta afirmação depende do conhecimento de algo que, segundo os físicos, os biólogos não conhecem, ou pelo menos que não o conhecem enquanto biólogos, embora possam conhecê-lo circunstancialmente se conhecerem também alguma coisa de Física. Este algo surgiu quando os físicos analisaram o comportamento das partículas sub atômicas, um mundo tão pequeno que a nossa inteligência no nosso dia a dia não pode tomar contato direto, e com o qual nunca tomou contato a não ser nos últimos oitenta anos de pesquisa, um intervalo de tempo muito curto, principalmente se comparado com o da duração da história humana. Quando, conforme dizíamos, os físicos analisaram os fenômenos do mundo sub atômico, um mundo ao qual a inteligência humana nunca teve acesso senão nos últimos anos, um mundo que, portanto, não faz parte do meio ambiente em que se desenvolve a inteligência, os físicos afirmariam terem observado, ao contrário do que dizia Parmênides, muito coisa que é uma afronta ao bom senso intelectual. E, no entanto, estas coisas existem. Existiriam ali, dizem os físicos, coisas que são uma afronta à Lógica e que, no entanto, estão ali. E, se é assim, diriam os físicos, pode-se perguntar como é que ficaria a teoria de Parmênides diante destes fatos. Pois, se os físicos têm razão, então não se poderia dizer mais que o mesmo é o ser e o pensar. Não, pelo menos, no mundo sub atômico, mas bastaria esta exceção para invalidar o princípio de Parmênides.

25.

Não podemos demonstrar aqui o que Parmênides responderia aos físicos. Não teríamos conhecimentos suficientes para acompanhar todo o raciocínio. Mas é tão importante a resposta que não podemos deixar de citá-la, ainda que seja para ser entendida em uma outra época, quando e se tivermos melhores conhecimentos nesta área. Parmênides responderia que todos sabem que quando um físico trabalha, ele primeiro observa um fenômeno qualquer em seu laboratório e sobre este fenômeno constrói uma teoria que é costumeiramente chamada de modelo matemático daquele fenômeno. Ele vê uma partícula desviando-se, imagina que existam forças atuando sobre esta partícula e imagina também uma fórmula matemática que descreva o comportamento destas forças. O fenômeno é apenas a partícula que se desvia. O modelo, isto é, as coisas que o físico não via, mas que supôs que existissem para poder explicar os fatos, são tanto as forças como as fórmulas matemáticas que as descrevem.

Ora, analisando os exemplos que os físicos teriam a apresentar para sustentarem a explicação que eles deram sobre a teoria de Parmênides constataríamos que as contradições a que os físicos estariam se referindo, supondo que elas realmente existam, nunca aparecem nos fenômenos, mas apenas nos modelos. Ora, é muito comum no mundo da ciência tomar os modelos pelas realidades. No seu trabalho cotidiano os cientistas freqüentemente trocam com espantosa facilidade uma pela outra e deixam de se lembrar quando estão trabalhando com a realidade e quando estão trabalhando com o modelo. Quantos de nós, por exemplo, não nos referimos à força da gravidade como se ela fosse uma realidade? No entanto, um pouco de reflexão nos mostrará que ela é apenas um modelo, e não uma realidade; a realidade sobre a qual ela foi construída é somente a queda dos corpos. Não há nenhum indício direto de que exista uma realidade tal como a força da gravidade, ela não passa de uma hipótese inteligente para explicar a queda dos corpos. Feitas estas distinções, ocorre agora observar que recentemente na história da Física moderna muitas vezes um modelo aparentemente ilógico, mas que explicava corretamente algum fenômeno, foi substituído posteriormente por outro modelo mais engenhoso, que explicava o mesmo fenômeno de maneira igualmente correta, mas que era menos atentatório à lógica. Nunca, porém, foi visto, nem mesmo na Física das partículas sub atômicas, nenhum fenômeno que em si contivesse uma contradição de lógica. De modo que, portanto, a objeção dos físicos, segundo Parmênides, na realidade não existiria.

26.

Finalizamos estas notas constatando que Parmênides foi, portanto, ao que parece, o primeiro que descobriu o fato de que a natureza se comporta segundo as mesmas leis fundamentais que regem o mundo da inteligência.

Este fato veio, depois, a ser conhecido posteriormente na Filosofia como uma das propriedades transcendentais do ser, e esta propriedade chamou-se, em Latim, de "vero", verdadeiro.

Segundo esta terminologia posterior, não dizemos que o ser e o pensar são o mesmo, como o disse Parmênides, mas dizemos, o que é a mesma coisa, que

"o ser e o vero se convertem".

Ou, em outras palavras, todo ser, somente pelo fato de ser, é apenas por isto necessariamente intelegível; e tudo o que é intelegível é, apenas por este fato, possível de existir.

27.

A mesma coisa não é verdade em relação a outras propriedades. Não são todos os seres visíveis, apenas porque existem. Não são todos os seres audíveis, apenas porque existem. Não são todos os seres mensuráveis, apenas porque existem.

E assim por diante.

28.

Mas por que todos os seres têm que ser intelegíveis, apenas porque existem, é, de fato, mesmo perante os dados da ciência moderna, um enigma.

O homem pode ter-se adaptado por sua inteligência ao meio ambiente. Pode ter-se inclusive adaptado ao Universo inteiro. Mas mesmo que este tenha sido o caso, se é que o foi, por que motivo não pode surgir aqui e agora, depois de ter acabado esta adaptação, um ser totalmente novo no Universo, um ser que jamais existiu antes e para o qual, portanto, a inteligência humana não tenha podido ter sido adaptada, um ser que desta vez fosse um absurdo do ponto de vista lógico?

Não vamos responder a isto agora. Fica apenas registrado o fato de que foi Parmênides o primeiro a descobrir que é assim que ocorre e que, com isso, confirmou e levou adiante as intuições dos primeiros pré socráticos sobre a natureza, pois segundo ele o mundo participa de fato, e não apenas na aparência, das mesmas propriedades fundamentais da natureza racional.

29.

Mas a história de Parmênides não acaba aqui. É o que veremos em seguida.

São Paulo, junho de 1989