INTRODUÇÃO HISTÓRICA
À PÁGINA
SOBRE O CRISTIANISMO

- Segunda Parte -



01.

Explicamos, na primeira parte desta introdução, o que é um Concílio Ecumênico e como o Concílio Vaticano II em particular se insere dentro de uma série de vinte e um Concílios Ecumênicos que houve na História da Igreja.

02.

Agrupamos então os vinte e um Concílios Ecumênicos em quatro épocas, cada época possuindo uma problemática fundamental comum para a Igreja que motivou a convocação destes Concílios se bem que, na primeira destas épocas, não houve a realização efetiva de nenhum destes vinte e um Concílios.

A primeira época, de fato, correspondente aos três primeiros séculos do Cristianismo, foi a época da perseguição aos cristãos por parte do Império Romano. Nesta época não houve Concílio algum, se descontarmos de seu número o primeiro realizado em Jerusalém ainda entre os Apóstolos.

A segunda época, que vai aproximadamente do ano 300 DC ao ano 800 DC, corresponde à época das grandes controvérsias de doutrina que surgiram no Oriente, o que motivou a convocação dos Concílios do primeiro ao oitavo.

03.

A terceira época vai aproximadamente do ano 900 DC até quase o ano 1600 DC. É a época em que, iniciando-se o Feudalismo, a estrutura da Igreja no Ocidente sofreu uma verdadeira devastação a qual deu origem por sua vez a abusos que obrigada os onze Concílios compreendidos desde o nono até o décimo nono a se ocuparem de modo principal com o problema da reforma da Igreja ou quase uma reconstrução se sua estrutura.

O tema principal abordado na primeira parte desta introdução foi justamente a época destes onze Concílios, do Primeiro de Latrão até o de Trento.

04.

Restou tratarmos da época atual, época certamente não sem problemas de grande importância, visto que não se convocam Concílios sem motivos de grande relevância e transcendência, e temos nesta última época mais dois Concílios Ecumênicos realizados, o Concílio Vaticano I no fim do século dezenove e o Concílio Vaticano II entre 1962 e 1965.

O Concílio Vaticano II não durou 18 anos como o Concílio de Trento, mas em compensação os documentos contendo suas decisões possuem uma extensão quase tão grande quanto todos os dos vinte Concílios Ecumênicos que o precederam reunidos. Ademais, se considerarmos que, ao ser encerrado, ainda deixou muita coisa em aberto para ser resolvido em nome do Concílio e sob a supervisão do Sumo Pontífice por Comissões Pós Conciliares que só terminaram seus trabalhos em 1983, veremos que na verdade havia como pano de fundo deste Concílio uma problemática tão ou mais complexa e delicada do que a das épocas anteriores.

É desta problemática que temos a intenção de falar nesta e nas próximas partes desta introdução.

05.

Ocorre porém que o mundo em que vivemos hoje, em cuja história se realiza também a história da Igreja, é muito mais complexo do que o mundo do Império Romano, do que o mundo do Império Bizantino, ou mesmo do que o da Idade Média.

Os homens de hoje, muito embora tenham um acesso muito maior a todo tipo de informação do que os das épocas passadas, geralmente têm a sensação de viverem em um mundo em que as pessoas partilham de uma viva impressão de terem sido metidos em um barco do qual ninguém sabe exatamente para onde se dirige.

Esta sensação não é coisa que pertença unicamente ao mundo contemporâneo, porque é da natureza do futuro ser incerto para todos os homens, mas em nossa época esta impressão é mais acentuada porque não é apenas o futuro, mas uma compreensão exata do significado do que está acontecendo com a civilização contemporânea que está faltando.

Que este problema se revista de uma especial gravidade no mundo de hoje pode ser considerado também pelo fato de que no início da Constituição Gaudium et Spes do Concílio Vaticano II se encontram as seguintes palavras:

"A Igreja sente-se real e intimamente
ligada ao gênero humano
e à sua história.
As alegrias e as esperanças,
as tristezas e as angústias
dos homens de hoje são também as alegrias e as esperanças,
as tristezas e as angústias
dos discípulos de Cristo".

Quando nós hoje, no final do século XX, ouvimos o Concílio dizer estas coisas, parece-nos estar ouvindo alguma coisa óbvia. Mas, vistas em sua perspectiva histórica, não se trata de nada óbvio. Nunca, em nenhuma época da história, Concílio algum apontou um problema como este como sendo alguma coisa de particular gravidade, exceto o próprio Concílio Vaticano II. Quanto a este, dois parágrafos depois desta citação que acabamos de fazer, na mesma Constituição Gaudium et Spes acrescenta-se o seguinte:

"Nos nossos dias a humanidade,
cheia de admiração
ante as próprias descobertas e poder,
debate, porém,
muitas vezes com angústia,
às questões relativas
à evolução atual do mundo
e ao significado de seu esforço
individual e coletivo".

Trata-se na realidade de questões comuns a todas as épocas, pois é sempre muito difícil compreender o significado do que está acontecendo na história humana, exatamente pelo fato de estar acontecendo. Mas em nossa época este problema se reveste de uma excepcional gravidade não só porque o número de fatores envolvidos na confecção dos problemas do homem moderno é elevado e de muito difícil compreensão simultânea, como também, paradoxalmente, eles se orientaram de um tal modo que tendem a minar no homem a própria base pela qual seria possível compreendê-los mais facilmente.

06.

Dissemos então que a raiz dos problemas de doutrina que houve durante os oito primeiros Concílios remontava a Alexandre o Grande. Foi a conquista do Oriente pelos gregos, com a sua conseqüente helenização, que acabou gerando uma cultura que no momento em que o Evangelho lhe foi anunciado suscitou uma ebulição doutrinária tão violenta que, embora fossem questões em princípio puramente teológicas, chegaram a se transformar no Oriente em um barril de pólvora inclusive para os próprio Imperadores Romanos.

Já a raiz dos problemas dos onze Concílios seguintes estava no advento do sistema feudal na Europa, com a quase destruição da estrutura da Igreja e o conseqüente surgimento de vários abusos. É desta situação que surgiu a necessidade da reforma da Igreja que só se conseguiu realizar de uma forma definitiva com o Concílio de Trento. Ao dizermos definitiva, não queremos dizer com isto que a organização da Igreja não mais poderia sofrer alterações, ficando intacto o que pertence à sua essência. De fato, posteriormente ao Concílio de Trento houve muitas destas alterações, como ocorreu com a entrada em vigor do Novo Código de Direito Canônico promulgado em 1983 pelo Papa João Paulo II, elaborado como resultado dos trabalhos do Concílio Vaticano II. O termo definitivo para o Concílio de Trento significa que foi então que os padres conciliares conseguiram finalmente fazer o que desde a época do feudalismo a Igreja estava tentando fazer e não o conseguia senão em parte.

07.

Ora, sucede que os problemas da Igreja de hoje, os que deram origem aos Concílios Vaticano I e Vaticano II têm sua origem, de uma maneira muito complexa, justamente neste período que vai do feudalismo até o Concílio de Trento. Enquanto a Igreja se ocupava com a sua reforma, estava-se incubando uma outra série de problemas que viriam a desencadear seus mais evidentes efeitos em nossa Idade.

É por isso que temos que voltar novamente a este época entre o feudalismo e o Concílio de Trento e recontá-la segundo um outro ponto de vista.

08.

Já falamos como o feudalismo quase destruíu a Igreja em sua estrutura e os abusos que nela introduziu. Falta fazer referência, porém, ao outro lado da questão, e dizer como o feudalismo na mesma época destruíu a estrutura do poder civil.

09.

Já descrevemos como o processo havia começado.

Nos anos 300 DC o Imperador Constantino transferiu a capital do Império Romano para Constantinopla. Logo em seguida vieram as invasões bárbaras que tomaram conta de toda a região ocidental do Império Romano. A parte oriental do Império Romano, que depois viria a ser conhecida como Império Bizantino, perdeu completamente o controle sobre toda a região ocidental do Império Romano. Não podendo fazer nada, o Imperador em Constantinopla concedeu aos bárbaros o título de "auxiliares perpétuos" do Imperador, título que, porém, para os reis bárbaros invasores nada significava. Oficialmente, para Constantinopla, só havia um único Império Romano, cujo governo da parte ocidental estava temporariamente comissionado aos reis bárbaros. Mas de fato a situação era bem outra. Do ponto de vista dos fatos o Império Romano agora só existia no Oriente.

Cerca de 400 anos depois do início das invasões bárbaras, o rei dos Francos, a tribo bárbara que havia se estabelecido nas Gálias, tornou-se senhor de praticamente toda a Europa Ocidental. Seu nome era Carlos Magno. Reconhecendo o fato consumado, na noite de Natal do ano 800 DC o Papa Leão III coroou Carlos Magno Imperador dos Romanos. A partir daí o Império Romano passou a estar oficialmente dividido em dois Impérios, o Carolíngeo e o Bizantino.

Após a morte de Carlos Magno seus domínios se dividiram em três, dos quais apenas dois prosperaram, a França a oeste e a Germânia a leste, esta última pouco depois tendo vindo a se transformar no Sacro Império Romano Germânico.

Foi então que se iniciou o feudalismo.

10.

Os novos reis da Europa, os da França, do Sacro Império e outros ainda que havia, não tinham mais a força militar de Carlos Magno. Eram reis fracos e débeis.

Para piorar a situação, chegou então à Europa uma nova leva de bárbaros, muito mais selvagem do que as anteriores, que assolou o continente durante muitas décadas.

Vendo que os reis não estavam em condições militares de defenderem os súditos, estes se associaram aos senhores das terras em que viviam para poderem defender-se das incursões bárbaras. Passaram em conseqüência a prestar obediência e vassalagem ao senhor feudal que passou a dar proteção aos habitantes do feudo em troca de seus serviços. Assim, aconteceu que aos poucos os súditos passaram a não mais se considerarem súditos do rei, de quem nada esperavam, mas do senhor do feudo em que viviam.

Embora o senhor feudal prestasse vassalagem ao rei, como o rei não tinha senão pouquíssima autoridade, na prática a Europa inteira tornou-se uma multidão de feudos vivendo independentemente um do outro, sem quase comunicação alguma entre eles e de um modo em que em cada feudo a ordem era a vontade do senhor feudal.

No leste, naquela que era a maior nação da época, o Sacro Império Romano Germânico, para piorar esta situação o cargo de Imperador não era hereditário, mas cada sucessor do Imperador era eleito por uma votação não do povo, mas dos próprios senhores feudais, coisa que apenas servia, nas circunstâncias daquele momento, para diminuir ainda mais a autoridade que o Imperador poderia ter.

11.

Em uma situação destas, não havia leis nos feudos. Melhor dizendo, mesmo que o feudo pertencesse ao Sacro Império, em cada feudo a lei era a vontade do senhor feudal. Não havia juízes de Direito nos feudos. O juiz era o senhor feudal. Os impostos em cada feudo eram aqueles que o senhor feudal julgava que deveriam ser cobrados. Não havia polícia para evitar os crimes, nem exército para defender a nação; havia apenas os súditos armados do senhor feudal. Além do problema das invasões bárbaras, cada feudo vivia constantemente em guerra com outros feudos; mas se a nação inteira estivesse em perigo, seria muito difícil agrupar um bom exército para defendê-la. Em suma, tratava-se de algo como um amontoado de fazendas em que cada dono de fazenda fazia o que bem entendia e, como transportes, comunicações e segurança eram bastante precários, cada feudo ademais vivia semi isolado, sem comércio ou comunicações com o mundo exterior.

12.

Ora, aconteceu que assim como a partir da época do Papa Gregório VII a Igreja tentou se libertar gradualmente da estrutura e dos abusos que o sistema feudal lhe havia imposto, assim também por esta mesma época começaram a fazê-lo reis e imperadores, os quais eram reconhecidos de direito, embora pouca autoridade tivessem de fato.

13.

Durante a época que vai do Primeiro Concílio de Latrão até o Segundo Concílio de Lião, isto é, até o final dos anos 1200, tanto a Igreja como os reis tentaram se libertar da estrutura feudal em que se viam aprisionados.

Mas gradualmente, e de modo especial a partir do final dos anos 1200, quando os reis da Europa começaram a se tornar fortes militar e politicamente, estes começaram a dificultar gravemente a tarefa da reforma da Igreja, colocando entraves e obstáculos a esta reforma além dos que já tinham sido impostos à Igreja pela própria estrutura feudal.

Foi esta a época em que começaram a aparecer os primeiros sinais daquelas que viriam a ser mais tarde as monarquias absolutistas da Europa.

14.

Já analisamos anteriormente alguns dos meios pelos quais a Igreja procurou se desvencilhar da estrutura do mundo feudal.

Será importante analisar agora também alguns dos meios pelos quais os reis se serviram para conseguirem estes mesmos objetivos.

15.

Os reis procuraram estabelecer tribunais especiais de apelação contra as sentenças dos tribunais locais dos senhores feudais. Se o réu não concordasse com a justiça do senhor feudal, poderia apelar para o tribunal do rei. Excelente era este expediente, porque o réu não satisfeito com a justiça do senhor feudal invocava e com isto defendia a autoridade do rei como superior à do senhor feudal.

Um segundo passo, quando a autoridade dos tribunais de apelação já se consolidava, consistia em decretar que certos tipos de causas especiais somente poderiam ser julgadas nos tribunais do rei.

Assim, aos poucos, começou a funcionar um sistema judiciário nacional.

16.

A partir dos anos 1100 começou a haver um certo renascimento econômico e cultural na Europa.

Como conseqüência deste renascimento começaram a aparecer um certo número de cidades novas dentro dos feudos, muitas vezes em pontos estratégicos para o comércio.

Em princípio, tais cidades pertenciam aos feudos em que estavam situados mas, à medida em que cresciam e prosperavam, seus interesses econômicos e políticos se sofisticavam e entravam em choque com os do senhor feudal de que eram súditos e a quem deviam impostos e vassalagem.

Os reis passaram a tirar partido desta situação, reconhecendo ou declarando a independência de tais cidades dos antigos senhores feudais, dando-lhes maiores liberdades que os senhores feudais estariam dispostos a conceder em troca de se submeterem à autoridade do rei.

Tratava-se de excelente acordo para as cidades, que queriam maiores liberdades para comerciar e pagar menos impostos do que os senhores feudais estavam dispostos a conceder, assim como também era excelente para o rei, que passava a contar com o estratégico apoio político de uma importante classe social emergente.

17.

À medida em que este processo de crescimento das cidades foi se realizando, os reis passaram a introduzir gradativamente uma moeda única em circulação em todo o país cunhada, é claro, por eles. Tal coisa não existia no sistema feudal propriamente dito.

18.

A pólvora também, curiosamente, surgiu nesta época para favorecer os reis contra os senhores feudais.

Ela havia sido usada muito tempo antes na China, apenas porém para utilização em fogos de artifício. Os mongóis foram os primeiros que deduziram que aquela pólvora pudesse servir como uma arma de guerra. Dos mongóis a pólvora passou para os árabes e daí, durante a Idade Média, passou também para a Europa.

Dificilmente um senhor feudal faria um cerco à residência do rei; muito mais provável seria o evento em que um rei cercasse o feudo de um seu vassalo. Nestas circunstâncias, depois do surgimento da pólvora, graças aos novos canhões que dela se utilizavam, os senhores feudais já não podiam sentir-se seguros dentro dos seus castelos outrora inexpugnáveis.

19.

Surgiram também, entre os anos 1100 e 1200, pela primeira vez na história, as instituições que posteriormente vieram a ser conhecidas como as Universidades. Elas surgiram nesta época em duas cidades da Europa, em Paris na França e em Bolonha na Itália, não predeterminadas pelos decretos de alguma autoridades, mas de um modo inteiramente espontâneo.

Em Paris foi a fama de certas escolas, como a do Mosteiro de São Vitor, fundada por Guilherme de Champeaux e organizada por Hugo de São Vitor, e a da escola da Catedral de Notre Dame, onde lecionou Pedro Lombardo, juntamente com a fama de muitos outros professores eminentes, que começou a atrair alunos de todas as partes da Europa. Estes alunos e professores começaram a se organizar sob a forma de corporações, um tipo de associação da época comum entre os artesãos, mas que passou a ser adotada por professores e alunos que se dedicavam ao ofício do estudo. Foram tais corporações que constituíram as primeiras Universidades.

Devido à própria história de sua formação, a Universidade de Paris voltou-se principalmente para os estudos de Teologia; entre seus professores, contou com São Boaventura e Santo Tomás de Aquino.

Já a Universidade de Bolonha voltou-se principalmente para os estudos de Direito.

20.

Ora, na época feudal não havia um sistema jurídico que dominasse na Europa. Cada senhor feudal era o seu próprio Direito.

Havia, porém, em teoria, duas grandes fontes do Direito, cujo estudo se desenvolveu nesta época na Universidade de Bolonha a partir dos anos 1100.

Um deles era o Direito Canônico, as leis da própria Igreja enquanto sociedade perfeita instituída por Cristo.

Originalmente o Direito Canônico era constituído pelos decretos dos Papas e pelas decisões dos primeiros Concílios Ecumênicos, os quais, embora tivessem sido convocados principalmente para resolverem problemas de doutrina, sempre se aproveitaram da oportunidade que se lhes oferecia para emanarem cânones disciplinares. Mas com o impulso da obra de reforma levada a efeito por Gregório VII e os primeiros Concílios Ecumênicos de Latrão, começou-se nesta época a compilar o Direito Canônico e a estudá-lo sistematicamente, para o que muito contribuíu a obra do monge Graciano, professor em Bolonha. Graciano produziu uma primeira compilação do Direito Canônico em uma obra que, embora não fosse ela própria uma lei e sim um trabalho acadêmico, passou a ser conhecido daí em diante simplesmente como o Decreto de Graciano e se tornou para a época o principal ponto de referência para o estudo do Direito Canônico.

21.

O outro Direito que havia na época era o Direito Romano.

O que se chamava então de Direito Romano era um Código, uma compilação, tal como o Decreto de Graciano, que havia sido feita sob as ordens do Imperador Justiniano em Constantinopla por volta do ano 500 DC.

Nesta época, no Oriente e em um tempo bastante anterior ao feudalismo, o Imperador Justiniano havia pedido a um grupo de jurisconsultos que sistematizassem todas as leis anteriores do Império Romano em uma só obra a qual, depois de pronta, viria a ter força de lei. O trabalho, que demorou anos, resultou em um volume monumental denominado Codex Juris Civilis, que até hoje é a principal fonte para o estudo do Direito Romano.

O Codex se baseava não só nas leis do antigo Império Romano como também nos comentários às leis romanas escritos pelos grandes jurisconsultos da época em que o Império Romano estava em plena florescência, como Gaio, Ulpiano, Papiniano e outros. Com base na obra destes comentadores e nas próprias leis o Imperador Justiniano ordenou que fosse feita uma síntese de toda a legislação romana, que foi justamente este Codex Juris Civilis.

Por volta dos anos 1100-1200 DC este Código de Justiniano e o Decreto de Graciano passaram a se constituírem nos principais textos de estudo e comentário para os professores e alunos da Universidade de Bolonha.

22.

Ocorreu então que neste mesmo período dos anos 1100-1200 DC os Papas começaram a favorecer a Universidade de Paris percebendo que ela, voltada como estava para os temas teológicos, poderia oferecer grande apoio à obra de reforma que a Igreja estava tentando promover, o que de fato sucedeu.

Por outro lado, porém, os reis começaram a fazer o mesmo com a Universidade de Bolonha. De fato, embora ali se estudasse o Direito Canônico, estudava-se também a fundo o Direito Romano. Os reis consideravam-se como sucessores dos Imperadores Romanos. Não tardou que eles percebessem que no Direito Romano, no Código de Justiniano, estavam contidas todas as justificativas teóricas de que eles precisavam para legitimarem suas pretensões. No Código de Justiniano não havia referências aos senhores feudais. No Código de Justiniano estava escrito que toda a autoridade era do Imperador, que a vontade do Imperador é soberana e é fonte de lei. No antigo Império Romano o Imperador não necessitava fazer um decreto formal para que fosse instituída uma lei. A simples manifestação da vontade do Imperador já tinha força de lei.

Em uma época em que reis estavam querendo se libertar e se impor sobre os senhores feudais, que coisa mais providencial não seria o incentivo dado a estes estudiosos que dedicavam suas vidas para trazer novamente à luz princípios tão importantes com que poderiam os reis justificarem sua soberania não só sobre os senhores feudais, mas sobre todo e qualquer outro poder? Porque pela teoria do Direito Romano os Imperadores eram soberanos absolutos e não devia dar satisfação a mais ninguém de seus atos. Assim, não só os romanistas de Bolonha gozaram do apoio dos reis europeus, como também em breve todas as principais cortes da Europa começaram a abrigar numerosos jurisconsultos que desenvolviam e propagavam tais idéias.

É fácil ver nestas idéias o gérmen das monarquias absolutistas que vieram mais tarde e se espalharam pela Europa.

Antes, porém, que isso acontecesse, os futuros monarcas absolutistas tiveram que lidar com um outro problema.

23.

Entre a teoria e a prática do poder absoluto, do poder absolutamente irrestrito a que os reis começaram a aspirar, interpunha-se exatamente a Igreja.

Nesta época a Igreja exigia de todos os reis cristãos o direito de exercer um poder judiciário supremo. Se um rei ou senhor feudal praticassem uma injustiça ou decretassem uma lei flagrantemente abusiva, na falta de outro poder que pudesse moderá-los, a Igreja se considerava no direito de julgar os reis e declarar injustas aquelas leis. Ou, em outras palavras, perante a Igreja os reis não poderiam ser absolutamente soberanos; se eles ultrapassassem os limites da justiça e do direito natural, eles então deveriam prestar contas de seus atos. Não era isto, porém, o que os reis viam no Direito Romano, nem o que eles começavam a ambicionar.

Era evidente, pois, que dentro em breve algum choque seria inevitável.

24.

Este choque seria mais forte ainda porque, ao contrário do que poderia parecer o óbvio para os homens do século vinte, uma parte importante da população da Idade Média do fim dos anos 1200 DC em diante apoiava entusiasticamente o poder absoluto dos reis. Eram os comerciantes e os habitantes das cidades em geral, que viam que o poder absoluto dos reis significava o desmantelamento do sistema feudal, com a instituição de uma ordem e uma disciplina mais importante do que a própria liberdade, porque favorecia o comércio e aumentava os lucros.

25.

O primeiro grande choque entre os monarcas e a Igreja começou no início dos anos 1300 DC na França, protagonizado pela pessoa do Rei Felipe IVº, também conhecido como `O Belo'.

Felipe o Belo era neto de Luiz IX, um rei francês que pela sua piedade foi canonizado menos de 30 anos após a sua morte, tornando-se São Luiz IX.

Em seu reinado São Luiz IX fêz pela monarquia francesa o equivalente ao que os Papas vinham tentando fazer na Igreja. Respeitou os direitos feudais, mas reprimiu os abusos; fortaleceu o exército nacional; aboliu as guerras privadas entre os feudos; estabeleceu em Paris um Supremo Tribunal de Apelação; promulgou uma lista de delitos que somente poderiam ser julgados pela Justiça Real; instituíu uma moeda nacional que deveria ser obrigatoriamente aceita em todo o Reino; graças aos impostos provenientes das cidades, foi paulatinamente comprando os feudos em nome da Coroa Francesa; exigiu o direito de decretar leis para toda a França independentemente do consentimento dos senhores feudais.

Felipe o Belo herdou assim de seu avô um reino já em avançada fase de consolidação, mas ele pessoalmente estava longe de possuir a tolerância e a piedade de São Luiz.

26.

Por causa de uma guerra prolongada contra a Inglaterra, necessitando de dinheiro, Felipe o Belo valeu-se de todos os meios de que dispunha para consegui-lo. Os atos de que se utilizou para tanto fizeram-no passar para a história como um monarca inescrupuloso e de má reputação. Instituíu impostos extraordinários sobre comerciantes, banqueiros e sobre o clero, sendo que este último estava isento por lei do pagamento de taxas. Alterou também a moeda francesa várias vezes, diminuindo ademais o peso dos matais preciosos de que era composta.

O Papa protestou ao saber que ele estava cobrando impostos do clero, alegando que isto era uma violação das imunidades eclesiásticas, e proibindo ao clero pagar qualquer imposto sem autorização da Sé Apostólica, mas depois autorizou o clero francês que pagasse ao rei tudo quanto ele pedia se isto fosse feito na qualidade de um donativo. Ao mesmo tempo, porém, encarregou um bispo que apresentasse ao rei Felipe as queixas do Papa sobre as infrações às leis canônicas a respeito das imunidades eclesiásticas na França.

A isto Felipe o Belo respondeu mandando prender, no ano de 1301 DC, o bispo que tinha sido delegado pelo Papa.

O Papa Bonifácio VIII replicou no mesmo ano intimando Felipe o Belo a justificar-se perante a Santa Sé pelas acusações feitas contra ele de cunhagem de moeda falsa e convocando, através de uma Bula, um Sínodo em Roma para discutir a proteção das liberdades da Igreja na França.

O rei Felipe reagiu divulgando entre os franceses uma bula papal falsa, visando desmoralizar o Pontífice, a qual depois foi queimada publicamente, e chamando os juristas da corte para defenderem a autoridade real.

No ano seguinte, 1302 DC, uma reunião dos principais representantes da nação francesa foi convocada na qual o rei obteve o apoio geral dos presentes contra a tirania do Romano Pontífice sobre a França.

Em 1303 DC o rei Felipe o Belo convocou uma outra assembléia em que foi lida uma lista de crimes de que o Papa seria réu. Bonifácio VIII foi acusado de heresia, imoralidade e superstição, e com isto invocou-se a realização de um Concílio Ecumênico para depô-lo. No fim deste ano, em vez do Concílio Ecumênico, um grupo de soldados franceses invadiu a Itália e prenderam o Papa. Após uma série de vexames, tentaram obrigar Bonifácio VIII a revogar os seus decretos e a renunciar ao pontificado. Como o Papa se negasse intransigentemente a fazer o que se lhe exigia, estando o comandante francês a deliberar sobre o que fazer, uma rebelião local conseguiu libertar o Papa. Este, porém, veio a falecer logo depois.

27.

Logo em seguida Felipe o Belo conseguiu fazer com que fosse eleito Papa um bispo francês, que tomou o nome de Clemente V, alguém que o rei sabia possuidor de um temperamento que poderia ser manobrado muito mais facilmente do que o de Bonifácio VIII.

Clemente V foi coroado Papa não na Itália, mas na França, na cidade de Lião, na presença do Rei Felipe. Em seguida, devido à situação política da Itália da época, o novo Papa decidiu transferir temporariamente a sede do Supremo Pontificado para uma cidade francesa, em Avinhão. Tal medida, porém, só veio a favorecer as pretensões do Rei Felipe, que a partir daí começou a exercer uma influência notável sobre o temperamento condescendente de Clemente V.

28.

Após a eleição de Clemente V, o Rei Felipe o Belo obrigou-o a abrir um processo contra o seu menos transigente falecido predecessor, Bonifácio VIII, e chegou a exigir de Clemente V que riscasse o nome de Bonifácio VIII da lista dos Pontífices legítimos. Embora não tivesse conseguido, conforme pretendia, que Bonifácio VIII fosse retirado da lista dos Pontífices, já é coisa notável que o Rei Felipe tivesse conseguido que fosse aberto de fato um processo na Sé Apostólica contra Bonifácio VIII.

29.

Mas Felipe o Belo, não contente com isso, exigiu que fosse convocado um Concílio Ecumênico para julgar os atos do falecido Bonifácio VIII e para que fosse decretada a extinção da Ordem dos Templários.

A Ordem dos Templários era uma organização religiosa de soldados fundada para proteger os territórios da Terra Santa que haviam sido conquistados pelos cruzados. Com a reconquista destes territórios pelos muçulmano, eles voltaram para a Europa onde seus bens, habilmente administrados, haviam aumentado consideravelmente. Aproveitando-se de uma pessoa que, dizendo ter pertencido à Ordem, lançou em 1305 uma série de acusações contra os Templários, o Rei Felipe decretou a prisão de todos os templários franceses e obrigou o Papa Clemente V à convocação do Concílio de Viena para que decretasse a extinção da Ordem, impedindo ao mesmo tempo que os templários fossem ouvidos nas sessões plenárias do Concílio. O Concílio concluiu decretando que a Ordem fosse dissolvida, não por decreto judicial, mas por uma disposição administrativa, e que seus bens passassem a outras ordens religiosas. Na França, porém, Felipe o Belo conseguiu apossar-se ele mesmo de uma grande parte destes bens.

No mesmo Concílio foi iniciado o processo contra Bonifácio VIII, ao qual, porém, conseguiu-se conduzi-lo a arquivamento.

30.

Clemente V não pretendia ficar na França para sempre, porém as condições anárquicas em que vivia a Itália naquele momento e os problemas que Felipe o Belo criavam para a Igreja fizeram com que ele se conservasse até o fim de seu pontificado em Avinhão.

Mais sério, porém, do que isso foi o fato de que 23 dos 24 novos cardeais que ele designou fossem franceses. Era com isto bastante provável que o próximo Papa fosse francês, como de fato o foi não apenas o seguinte como os demais durante um período de setenta anos. Os novos Papas franceses nomeavam cardeais que em sua maioria eram franceses, os quais elegiam novos Papas franceses, os quais, por sua vez, por diversos motivos, não voltavam para a Itália. Começou a parecer uma coisa anormal para o mundo que houvesse um Papa que não fosse francês e, ao mesmo tempo, em parte por causa da impressão que os Papas seguissem muito docilmente os interesses dos soberanos franceses, a Santa Sé foi perdendo a autoridade que havia crescentemente obtido durante os séculos anteriores.

31.

Foi com a situação estando assim configurada que surgiu na metade dos anos 1300 a Peste Negra de que já se mencionou na primeira parte desta Introdução e que causou tão grandes estragos na Europa e em particular dentro da Igreja. A Peste Negra surgiu, portanto, em uma época em que os Papas já estavam há décadas em Avinhão, em uma situação em que lhes era bem mais difícil administrar as conseqüências causadas por aquela epidemia.

32.

Deve-se dizer que, porém, de uma maneira ou de outra, durante os setenta anos em que os Papas estiveram em Avinhão, várias vezes tentaram voltar para Roma, encontrando para isto não poucas dificuldades pela frente. Um dos Papas franceses chegou mesmo a voltar para Roma e entrar na cidade, de onde a contragosto foi obrigado a retornar para a França.

O retorno definitivo dos Papas para a cidade de Roma conseguiu-se em grande parte devido à obra de Santa Catarina de Sena que, para isso, dirigiu-se pessoalmente para Avinhão.

33.

Foi o Papa Gregório XI que, vencendo as mais diversas oposições, regressou definitivamente a Roma em 1377. Esta resolução, porém, por uma série de circunstâncias fortuitas que se seguiram, em vez de sanar os problemas que a longa série de Pontífices na França havia criado, pelo menos a curto prazo só veio a agravá-los.

34.

O que ocorreu foi que Gregório XI morreu muito pouco tempo depois de seu regresso à cidade de Roma. O povo romano receava que os cardeais, quase todos franceses, elegessem como Papa outro francês. Cercaram o conclave que deveria eleger o sucessor de Gregório XI e com gritos e ameaças exigiam que o novo Papa fosse um romano, ou pelo menos um italiano. Chegaram em uma ocasião até mesmo a invadir o próprio recinto do conclave.

Os cardeais, com medo e em um clima de muita tensão, elegeram como Papa um bispo italiano que não fazia parte do Colégio dos Cardeais, um homem de cultura, bons costumes e profunda piedade. Infelizmente, porém, como depois de percebeu, era também dotado de um temperamento explosivo e inflexível.

Durante os quatro meses seguintes de seu pontificado, Urbano VI, -este era o nome que o novo Papa havia escolhido-, descontentou com o seu comportamento autoritário todos os cardeais franceses. Santa Catarina de Sena, aquela que havia obtido o retorno dos Papas à Itália, chegou a escrever-lhe uma carta em que o convidava a

"moderar,
em nome de Jesus crucificado,
os impulsos espontâneos
de sua natureza".

Mas ele lamentavelmente não o fêz. Havia sido eleito em abril; em agosto os cardeais franceses reuniram-se novamente em conclave e declararam que era inválida a eleição anterior porque havia sido extorquida pelo tumulto da plebe, e que iriam eleger agora o verdadeiro sucessor de Gregório XI.

Foi eleito um Papa francês, justamente aquele que era, diante do povo italiano, o mais impopular dos cardeais franceses.

Tomou ele o nome de Clemente VII e retornou para Avinhão.

35.

Embora o verdadeiro Papa fosse o primeiro, o que ficou em Roma, os fato foram contados na época de tal maneira que poucas pessoas sabiam de fato dizer qual era o legítimo Pontífice, se era o que estava em Roma ou o que estava em Avinhão.

No clero havia quem obedecesse a um, quem obedecesse a outro e quem não sabia a quem obedecer. Em certas dioceses havia dois bispos, um nomeado pela Papa de Roma e outro nomeado pelo Papa de Avinhão, e freqüentemente ambos estes bispos obedeciam de boa fé àquele que julgavam ser o verdadeiro Papa.

A causa desta confusão foi sem dúvida o fato de terem sido praticamente os mesmos cardeais a elegerem tanto o primeiro como o segundo destes pontífices, e terem declarado eles próprios que a eleição anterior havia sido inválida.

Santa Catarina de Sena tentou na época fazer o possível para desfazer o engano. Escreveu pessoalmente cartas duríssimas a todos os cardeais e aos principais soberanos da Europa, principalmente ao rei da França.

Aos cardeais chamou-lhes duramente a atenção para que aquilo que eles haviam feito era uma conseqüência da vida desordenada que levavam e de se terem separado da verdade, pois certamente tinham mentido antes, apresentando Urbano VI como Papa quando na verdade não o era, ou estavam mentindo agora, dizendo que Urbano VI nunca havia sido verdadeiro Papa. Mas, continua ela,

"a solenidade da coroação,
o respeito testemunhado,
os favores que solicitastes
provam a regularidade da eleição".

Chama-os de mentirosos e culpados de covardia.

"Se temessem a Deus
e à desonra",

continua ela,

"tudo suportariam
por parte do eleito,
de preferência a dividir
o mundo inteiro".

Quanto às cartas que ela escreveu ao rei da França, estas não chegaram ao seu destino. Foram todas interceptadas pelos interessados em que o rei não fosse corretamente informado sobre o que realmente havia acontecido.

36.

Embora hoje, à luz da História, pareça evidente que Santa Catarina tivesse razão, o fato é que na época as circunstâncias do momento não favoreciam a clareza desta evidência. A incerteza pairava até em almas sensíveis e santas. Em uma época que tinha acabado de assistir à Peste Negra com todas as suas conseqüências, em que a Igreja precisava mais do que nunca da autoridade e do prestígio da Sé Apostólica, estas só diminuíram mais ainda.

Para complicar a situação, houve vários homens e mulheres de sabedoria e santidade, muitos dos quais a Igreja reconheceu posteriormente como santos, mas que não estavam tão bem ao par dos acontecimentos ocorridos na Cúria Romana por notícias de primeira mão como o estava Santa Catarina, dos quais alguns apoiaram o Papa francês enquanto outros apoiaram Papa de Roma.

37.

Tal estado de coisas prolongou-se por aproximadamente 40 anos.

Quando faleceu Clemente VII, o Papa francês, seus cardeais elegeram em seu lugar a Benedito XIII.

Quando morreu Urbano VI, o Papa romano, seus cardeais elegeram em seu lugar Bonifácio IX, ao qual sucedeu Inocêncio VII, aos qual sucedeu depois Gregório XII.

38.

Gregório XII, o último dos Papa romanos durante a época em que durou esta triste divisão, embora fosse o legítimo, comprometeu-se a abdicar ao Pontificado, desde que o mesmo fizesse o Papa francês, para que assim pudesse ser escolhido pelo Colégio dos Cardeais um só Papa sobre o qual não haveria mais incertezas sobre a sua legitimidade.

Mas o fatos vieram a mostrar ser impossível conseguir com que ambos os Papas abdicassem simultaneamente.

39.

Vendo o impasse, e vendo a triste situação em que eles próprios haviam mergulhado a Igreja da época, os cardeais convocaram por sua própria iniciativa um Concílio Ecumênico na cidade de Pisa e decretaram a deposição dos dois Papas reinantes. Declarada a sede vacante, elegeram como Papa ao bispo de Milão, quer tomou o nome de Alexandre V.

Com isto, pareceu naquele momento aos cardeais que eles haviam finalmente resolvido o problema. Não havia mais dois Papas, mas apenas um.

O que aconteceu, porém, na realidade, foi que nem todos acataram que um Concílio Ecumênico, convocado contra o consentimento do Soberano Pontífice, seja qual dos dois, o romano ou o francês, fosse o legítimo, pudesse depor em seguida o Papa legítimo, pois certamente um dos dois o era.

A situação, portanto, em vez de resolvida, tornou-se pior do que a de antes, pois agora, em vez de dois Papas, um na França e outro em Roma, havia três, um em Avinhão, outro em Roma e um terceiro em Pisa.

40.

Seja como fosse, o Concílio ilegítimo de Pisa que havia eleito Alexandre V, o terceiro Papa, havia também decidido que dali a três anos se reuniria novamente outro Concílio Ecumênico.

Neste meio termo morreu Alexandre V, o Papa de Pisa, o sucessor deste terceiro Papa tomando o nome de João XXIII. Dentre os três Papas existentes, era João XXIII aquele que em geral menos convencia em sua pretensão de ser o verdadeiro Soberano Pontífice.

Fiel à orientação deixada pelo ilegítimo Concílio de Pisa, João XXIII convocou em 1413 outro Concílio a ser celebrado na cidade de Constança.

41.

Iniciado o novo pseudo Concílio em Constança, João XXIII pensava que o Concílio o reconfirmasse no cargo de Sumo Pontífice.

Em vez disso, o primeiro assunto a entrar na pauta dos debates conciliares foi a deposição dos três pontífices reinantes. Como era sabido que esta idéia ia contra as intenções de João XXIII, foi apresentada em sessão uma denúncia anônima contra João XXIII e iniciado um processo sobre as culpas de que ele era acusado.

Vendo que os acontecimentos caminhavam contra os seus propósitos, João XXIII fugiu durante a noite e foi pedir proteção junto ao Duque da Áustria, de onde convocou os cardeais a abandonarem o Concílio. Suas ordens não foram obedecidas.

Ao contrário, o Imperador do Sacro Império Romano Germânico, do qual a Áustria fazia parte, deu ordem ao Duque de Áustria, que era seu súdito, no sentido de lhe entregar João XXIII como prisioneiro. Devolvido este pelo Imperador ao Concílio, acabou aceitando submeter-se às suas decisões e concordou em renunciar ao seu suposto Sumo Pontificado.

42.

A notícia da renúncia de João XXIII tendo chegado a Gregório XII, o Papa romano, através de uma mensagem entregue ao Imperador, este fêz saber aos Padres Conciliares reunidos em Constança que ele aceitaria renunciar ao Pontificado por amor à Igreja desde que o Concílio não se considerasse legitimamente convocado enquanto ele próprio não o fizesse, em seguida ao que abdicaria.

Esperava-se com isto que o Papa de Avinhão tomasse atitude semelhante e se pudesse assim eleger um único Papa, coisa que, porém, não se verificou. O Papa de Avinhão não renunciava.

43.

Mesmo assim, em 14 de junho de 1415 um Cardeal deu em Constança um decreto em que se convocava, autorizava e confirmava, a partir daquele momento, em nome de Gregório XII, o Concílio de Constança e seus atos ulteriores. Em seguida foi lida, também em nome de Gregório XII, sua renúncia ao Pontificado.

44.

Só faltava obter a renúncia do Papa francês para que se procedesse à eleição do próximo Papa sobre o qual não pudesse pairar dúvida alguma em quem quer que fosse quanto à sua legitimidade.

O Imperador do Sacro Império Romano Germânico dirigiu-se em pessoa, juntamente com uma delegação do Concílio, ao Papa de Avinhão, para expor a situação e pedir a sua renúncia.

O Papa de Avinhão, porém, insensível, no dizer do historiador Agostino Favale, à chance que se lhe oferecia de recompor a Igreja dividida com apenas um ato de sua vontade, não queria renunciar.

As discussões se prolongaram durante dois anos, durante os quais se abriu um longo processo e o pseudo Papa foi perdendo gradualmente a obediência de todos os que o cercavam até ter como súditos apenas um pequeníssimo punhado de pessoas refugiadas juntamente com ele em um castelo na Espanha próximo a Valença.

Dois anos e meio depois da renúncia de Gregório XII, finalmente, o Concílio de Constança elegeu Papa a Martinho V, recompondo com ele a unidade da Igreja.

45.

Todos estes fatos extremamente dolorosos se deram logo depois do surgimento da Peste Negra, e se juntaram ao quadro dos resultados da mesma que foram descritos na primeira parte.

Certamente não era fácil obter a reforma que a Igreja tentava conseguir em si própria em um quadro como este.

46.

Os dois primeiros pontificados que se seguiram à recomposição da unidade da Igreja não conheceram novos problemas além dos que já havia e que foram mencionados.

Mas logo em seguida, quando, apesar da situação geral em que a Igreja estava não ser das melhores, parecia que aos poucos as coisas iriam acabar se recompondo com o passar do tempo, começou a se fazer sentir na Igreja a influência de um movimento que estava tomando conta dos homens da Europa cuja influência, acrescentada a diversos outros fatores históricos, iria chegar até o homem do século XX.

Tal processo ficou conhecido como Renascimento, e terá que ser objeto especial de consideração da terceira parte desta introdução.

                                     
São Paulo, 9 de junho de 1991