III/E



53.

Um quinto fator que se somou aos anteriores para proporcionar um ambiente propício ao surgimento da Renascença foi uma particular forma de organização política que levou todo o norte da Itália a um nível de corrupção historicamente sem precedentes, não por coincidência justamente no local e na época em que se iniciou o movimento Renascentista.

54.

Já tivemos a oportunidade de expor como enquanto durante a Idade Média a Igreja tentava desvencilhar-se do Feudalismo os reis europeus também tentavam fazer o mesmo utilizando-se de recursos tais como a criação de um sistema judiciário nacional, a instalação de tribunais de recursos dependentes diretamente dos reis, a introdução de uma mesma moeda para todo o reino, o reconhecimento da independência das cidades e outros.

De modo geral estes expedientes foram obtendo os seus resultados em toda a Europa e, por volta de 1300 diversas monarquias estavam em avançado processo de consolidação. Uma exceção neste sentido à primeira vista surpreendente entre as nações européias era o Sacro Império Romano Germânico, ao qual pertencia também todo o norte da Itália. No Sacro Império Romano Germânico, por volta do ano 1300 DC, em vez de uma consolidação e de uma centralização maior, estava-se assistindo ao processo oposto.

Os soberanos do Sacro Império, ao contrário dos demais reis da Europa, não se consideravam reis de uma nação em particular, mas sucessores dos Imperadores Romanos e de Carlos Magno, cujo domínio de dereito deveria estender-se sobre todas as nações da terra, embora de fato estendia- se apenas sobre as atuais Alemanha, Suíça, a região centro oriental da Europa, com exceção principalmente da Rússia, e o norte da Itália.

Portanto, ao contrário dos reis da França e da Inglaterra, sob os quais não deveria haver outros reis, o Império reconhecia, dentro dele mesmo, sob a soberania do Imperador, outros reis e príncipes governando, com relativa autonomia, cerca de trezentos e cinqüenta estados.

Como, ademais, eram estes reis e príncipes que elegiam o Imperador, este sistema de governo fêz com que a autoridade efetiva do Imperador nunca pudesse ser suficientemente forte para tornar o Sacro Império um organismo dotado de uma unidade como a das demais nações então emergentes na Europa. As centenas de principados que havia dentro do Sacro Império aspiravam a uma independência de fato sempre maior. Eram freqüentes as guerras entre estes principados durante as quais uns chegavam a conquistar territórios dos outros. Ademais, cada vez que um Imperador conseguia obter um maior poder e controlar melhor a política do Império, na eleição seguinte os príncipes elegiam um candidato que lhes parecia vir a permitir-lhes obter novamente maior autonomia frente ao poder imperial.

55.

A parte do Sacro Império, porém, que mais fragilmente estava ligada ao todo era justamente o norte da Itália.

De início, o norte da Itália estava separado do restante do Império pela Cordilheira dos Alpes e seu povo tinha não poucas diferenças lingüísticas e culturais com o restante da nação. Somando-se a estas condições, por volta do ano 1300 começou a florescer naquela região o comércio com o Oriente. Era no norte da Itália, em Gênova e em Veneza, onde aportavam os navios provenientes da Ásia e do norte da África. Partindo destes portos, eram as demais cidades do norte da Itália que as caravanas que iriam distribuir para o restante da Europa os produtos vindos por mar que deveriam ser atravessadas em primeiro lugar. Estas cidades começaram aos poucos a viver uma vida independente de fato não apenas em relação ao Sacro Império como um todo, como também uma em relação a outra. Suas ligações uma com a outra e com o restante do Sacro Império era apenas nominal.

Para complicar esta situação, a organização política que surgiu efetivamente nestas cidades do norte da Itália acabou se tornando algo de único em toda a Europa.

56.

Nesta época a Itália dividiu-se basicamente em três partes.

No norte constituíram-se uma série de cidades estado, independentes no sentido que será discutido a seguir; na parte central havia os Estados Pontifícios, e ao sul o Reino de Nápoles, que acabou caindo sob o domínio espanhol. O Reino de Nápoles, embora fosse o maior da Itália, ao qual pertencia todo o sul da península e mais a Sicília, desempenhou no entanto apenas um papel secundário nos acontecimentos da história desta época que aqui nos interessam.

57.

O norte da Itália, a parte mais rica e importante da região, conforme dissemos, era formado de cidades estado independentes. É importante entender sua organização porque foi justamente ali e nesta época que começou o Renascimento.

Em todas estas cidades estado do norte da Itália o governante, rei, príncipe, duque ou outro dos muitos títulos com que eram designados, detinha o poder absoluto. Era um regime absolutista, mas ao mesmo tempo era um tipo de regime absolutista bastante diverso das monarquias absolutistas que estavam se formando na França, na Espanha e na Inglaterra.

A diferença estava em que na Espanha, na França e na Inglaterra o rei era absolutista mas era um rei legítimo. Todos sabiam quem era o rei e qual era o título legal que lhe dava o direito de ser rei. Não era aquele que o quisesse que poderia ser rei quando bem lhe aprouvesse. Quando o rei falecia, o seu reino era entregue ao seu sucessor de direito.

Já no norte da Itália o poder era absoluto mas quem governava geralmente não era um governante legítimo. Os governantes ali não detinham o poder por algum título que os legitimasse, nem sequer geralmente se davam ao trabalho de tentar forjar um título falso para ostentarem uma aparente legitimidade.

Os que governavam no norte da Itália conseguiam o poder não porque o tivessem herdado ou porque tivessem sido eleitos, mas porque eles ou os seus antecessores próximos tinham por meio de algum golpe derrubado ou assassinado o governante anterior. Eles eram senhores absolutos não porque havia algum direito que de alguma forma poderia ser invocado para que lhes fosse atribuído este poder, mas porque pela força haviam derrubado ou assassinado a quem antes deles estava no poder.

Se, a partir daí, o novo governante conseguisse sobreviver até a sua morte natural, isto não significava necessariamente que o seu herdeiro tomaria o poder. Se o herdeiro tivesse força política e militar suficiente para se manter no poder, continuaria governando. Caso contrário, outro mais forte governaria no seu lugar.

As pessoas tinham consciência de que nenhum daqueles governantes era legítimo, e que eles somente se mantinham no poder porque conseguiam matar quem lhes fazia oposição, e geralmente isto era tão evidente que não se tentava fazer crer que fosse diferente.

A ilegitimidade era tão flagrante que, embora todos os governantes do norte da Itália fossem súditos do Sacro Império Romano Germânico, de fato nenhum deles se comportava como tal, mas também nunca nenhum deles teve a coragem de romper nominalmente com o Imperador e se declarar governante de uma República ou Principado independente. Tratava-se simplesmente do poder do mais forte.

J. A. Symonds, um historiador do século passado, escreveu o seguinte deste período da história:

"Somente gladiadores
de comprovada capacidade
e nervos de aço,
superiores a todos os escrúpulos
morais e religiosos,
indiferentes ao amor da pátria,
mestres na perfídia,
científicos no uso da crueldade
e do terror,
empregando ao máximo
todas as potencialidades
da inteligência, da vontade e do corpo,
colocadas ao serviço
de um egoísmo transcendental,
somente virtuosos da arte política
tal como teorizada por Maquiavel,
poderiam sobreviver
em uma arena tão perigosa".

Maquiavel, aqui citado por Symonds, foi conselheiro político na cidade de Florença durante este período. Profundo conhecedor, em primeira mão, dos meandros políticos de seu tempo, autor de tratados sobre o assunto que geraram controvérsias sem fim na história subseqüente, ele próprio não tentou disfarçar ou se enganar a respeito da situação do momento em que vivia. Em um de seus livros deixou escrito, sem necessidade de levantar maiores polêmicas, que

"Nós, os italianos,
somos o mais corrupto
de todos os povos".

58.

Desta época temos diversos relatos de fatos históricos que são tidos como característicos do ambiente renascentista e que só com muita dificuldade se ouvem dizer de outras épocas e lugares.

Os historiadores da época dizem que as crueldades domésticas dentro das cortes pareciam não ter fim. Por si só, isto não significava algo necessariamente característico da Renascença, mas estas realidades eram então agravadas pelo fato de que a vida dissoluta dos governantes produzia uma multidão de filhos bastardos, todos eles podendo aspirar ao trono dependendo unicamente de sua habilidade pessoal. Este número exagerado de príncipes bastardos é confirmado por um testemunho dado pelo Papa Pio II quando, em 1459, visitou a cidade de Ferrara. Ele nos conta que então nenhum dos sete príncipes que o receberam eram filhos legítimos.

No auge da Renascença a maioria dos governantes italianos já eram, eles próprios, filhos bastardos.

59.

Coisas como estas, aliadas ao clima de corrupção da época, produziam situações hoje dificilmente imagináveis.

O clima das cortes era tão perigoso, diz Jacó Burckhardt, famoso estudioso da história da Renascença, que freqüentemente os filhos dos governantes, tanto os legítimos como os ilegítimos, fugiam para o estrangeiro onde ali mesmo continuavam sendo ameaçados por emissários assassinos. Estes filhos, ademais, não raro do estrangeiro passavam a comandar conspirações contra a corte do pai.

Em Ferrara, em 1493, a mesma cidade que quase quarenta anos antes tinha sido visitada por Pio II, foi o filho bastardo de um bastardo que comandou a conspiração para governar no lugar do príncipe herdeiro legítimo; este mesmo homem, neste ano, envenenou sua mulher por ter sido avisado por outrem que sua mulher estava tentando envenená-lo.

60.

Em um ambiente como este, não poderia haver um exército dotado de sentimentos nacionais, recrutado entre os próprios cidadãos. O poder militar dos governantes baseava-se em capitães aventureiros estrangeiros, chamados "condottieri", que lutavam mediante pagamento.

Várias vezes aconteceu que os próprios condottieri tomavam o poder de quem os havia contratado. Por causa disso, se o condottiere perdia uma batalha, poderia ter a sua cabeça cortada, mas se ele ganhasse a guerra de uma maneira brilhante, poderia também perder a cabeça por isso, pois o governante suporia, e freqüentemente com razão, que o próximo adversário do condottiere seria ele próprio. Certamente, por outro lado, não era fácil ir para uma guerra que não podia nem ser perdida nem bem ganha.

61.

Mas este problema que os militares enfrentavam também era enfrentado pelos demais funcionários dos governantes.

Se eles desempenhassem bem demais os seus papéis, poderiam com isto perderem suas cabeças. Se o responsável pela arrecadação dos impostos, por exemplo, arrecadasse os impostos de uma maneira muito eficiente, poderia morrer por isto, devido à suspeita de que com uma parte do dinheiro pudesse pagar a morte do governante. Se ele não arrecadasse, por outro lado, os impostos de que o governante precisava, também poderia pagar com a vida por isso.

62.

Que dizer então dos sintomáticos sistemas de segurança destes governantes?

Jacó Burckhardt, na "Civilização da Renascença na Itália", descreve como era organizada a segurança de Filippo Maria, o último governante da dinastia dos Visconti em Milão:

"O que pode a paixão do temor
fazer com um homem de talento incomum
e elevada posição
pode ser visto no caso de Filippo Maria
com perfeição matemática.
Todos os recursos do estado
foram devotados para o único fim
de promover a sua segurança pessoal,
embora felizmente seu cruel egoísmo
não tivesse degenerado
em uma sede de sangue
sem propósito.
Ele vivia na cidadela de Milão
cercado por magníficos jardins,
árvores e gramados.
Durante anos ele não pôs os pés na cidade,
fazendo suas excursões apenas no campo,
onde ficavam diversos
de seus esplêndidos castelos.
Quem quer que entrasse na cidadela
era vigiado por centenas de olhos.
Era proibido até permanecer
próximo às janelas,
pelo receio de que pudessem
ser dados sinais aos que estivessem
do lado de fora.
Os que eram admitidos
entre os acompanhantes do príncipe
eram submetidos a uma série
das mais rigorosas revistas.
Este era o homem que comandava
longas e difíceis guerras,
que lidava habitualmente
com afazeres políticos
de primeira importância,
que diariamente mandava
emissários plenipotentes
por todas as partes da Itália.
Sua segurança era construída
sobre o fato de que nenhum de seus servos
podia confiar em nenhum outro,
que todos os seus condottieri
eram constantemente vigiados
e enganados por espiões,
que os embaixadores e oficiais mais elevados
eram confinados e mantidos isolados
por intrigas artificialmente alimentadas e,
em particular,
sobre o artifício de associar
um homem honesto com um patife.
Seria interessante acrescentar que,
ao morrer,
Filippo Maria Visconti
foi sucedido no poder
pelo seu condottiere,
Francesco Sforza,
um general cuja fama militar
era tão grande
que várias vezes venceu batalhas
apenas fazendo saber ao inimigo
que quem estava no comando adversário
era ele próprio".

63.

Comentamos, até aqui, vários fatores que prepararam a época da Renascença, uma época em que começou a haver uma transformação profunda no modo do homem compreender a si próprio e à realidade que o cerca. Enumeramos ao todo cinco fatores. Qual seria o próximo?

Um sexto fator surge naturalmente quando nos perguntamos se em um contexto como o que foi descrito até agora é possível haver algum favorecimento da vida cultural. Poderia haver alguma forma de desenvolvimento cultural em um ambiente histórico como este ou, melhor dizendo, justamente por causa dele?

Por mais difícil que possa parecer a uma primeira consideração, a verdade é que o ambiente que acabamos de descrever é extremamente propício para o desenvolvimento cultural. O problema é que esta cultura se refere a uma vida da inteligência bastante diferente daquela que a humanidade havia conhecido até então.

64.

Um sistema político absolutista como o da França e o da Espanha, pelo menos por causa dele mesmo enquanto tal, não favorece o florescimento da cultura.

Em se tratando, porém, de um sistema político de caráter absoluto como o que surgiu no norte da Itália, um sistema em que o poder é absoluto não de direito, mas de fato, em que o governante não pode invocar nenhuma base legal para legitimar o seu poder. em que se mantém no poder apenas por força de sua pura ambição pessoal e esperteza política, do qual pode ser derrubado imprevistamente a qualquer momento sem poder conjecturar quem será o seu sucessor, a história mostra que a avaliação deverá ser bastante diferente. Estes sistemas favorecem o desenvolvimento da cultura e na verdade o favorecem até demais. Cabe agora entender por que.

O motivo para este aparente paradoxo consiste em que, em um sistema absolutista como os que havia na França e na Espanha o rei não é necessariamente o melhor, nem necessariamente a pessoa mais bem dotada de qualidades pessoais. Ele está ali por ter herdado o trono, protegido pelas leis e costumes da nação. Não subiu pelos seus méritos, e não deixa de ser deposto porque não haja outro melhor. Freqüentemente são pessoas medíocres que possuem pouquíssimas qualidades como governante e como homem.

Mas em um sistema como o italiano somente alcançam o poder os homens mais fortes, aqueles que têm o maior número possível de qualidades pessoais que lhes permitam entender a situação política ao seu redor melhor do que o fazem todos os demais. Nesta situação aqueles que, por exemplo, falam um número maior de línguas, que possuem um maior cabedal de cultura que lhes permita desenvolver o maior engenho possível, estão em uma situação de vantagem. Quanto maior o número de qualidades que um homem destes tiver em todos os sentidos mais provavelmente conseguirá entender o que se passa em sua cidade, controlar a situação e manter-se no poder. Não é suficiente saber matar para alcançar o poder; depois de matar ele terá que saber manter-se ali, uma tarefa que não é mais apenas uma questão de força bruta e em que ele conta somente com as suas próprias capacidades para levá- la a efeito.

Homens assim, ademais, não se mantém no poder somente pelo fato de serem os melhores, mas também pela fama que eles cultivaram de serem os melhores, uma fama que nada mais é do que uma projeção externa de suas próprias personalidades. Para serem tidos como tais, coisa que não só lhes é importante para se manterem no poder, mas algo que faz parte de suas personalidades, eles devem que fazer jus à fama que construíram. Por conseguinte, estes homens começaram a fazer algo que não se fazia antes na Idade Média, não pelo menos na escala em que eles o fizeram: começaram a favorecer as artes, a arquitetura, os poetas, os pintores, os escritores de peças de teatro, todos, enfim, os que pudessem produzir algo que impressionasse.

Nas obras de arte, porém, procurava-se mais a ostentação e o virtuosismo do que a beleza em si; na arquitetura produziram-se templos grandiosos, mas as vidas dos que os conceberam estavam longe de reproduzir o que a grandeza destes monumentos significava, e nas obras escritas buscava-se mais a impressão produzida pela forma do que o conteúdo da verdade. Os castelos dos quais estes príncipes governavam às vezes uma única cidade e seus arredores eram mais luxuosos do que os castelos dos reis de França ou de Espanha, os quais governavam uma grande nação. Para semelhante luxo empregavam-se numerosos artistas, arquitetos e intelectuais.

65.

Entre os efeitos que tal atitude de vida produziu está, por exemplo, o surgimento da moda.

Jacó Burckhardt diz que o primeiro testemunho histórico que ele conseguiu encontrar a respeito da moda data de 1390, quarenta anos após a Peste Negra, na cidade de Florença. Nesta época em Florença as pessoas faziam questão de se vestirem cada uma de modo diferente da outra, diversamente do que ocorria na Idade Média, em que este era um aspecto totalmente secundário da vida. Diz Burckhardt na "Civilização da Renascença na Itália" a este respeito:

"Nas características (políticas)
destes Estados do norte da Itália
está não a única
mas a principal razão
para o desenvolvimento precoce
dos italianos.
É devido a isto que a Itália
foi a primogênita entre os filhos
da Europa moderna.
Não é difícil mostrar que este resultado
se deve acima de tudo
às circunstâncias políticas da Itália.
Em épocas passadas pode-se,
aqui ou ali,
detectar um certo desenvolvimento
da livre personalidade,
mas nos anos 1300
a Itália começa a enxamear
de individualidade.
Os italianos dos anos 1300
não tinham medo da singularidade,
de serem ou parecerem diferentes
de seus vizinhos.
Pelo ano de 1390 não existia mais
nenhum gênero predominante de roupas
para os homens de Florença,
cada um preferindo vestir-se a si próprio
de seu próprio modo.

O despotismo, conforme vimos,
empurrou ao mais alto grau a individualidade,
não apenas do tirano ou do condottiere, mas também dos homens
a quem ele protegia
ou usava como seus instrumentos,
isto é,
o secretário, o ministro, o poeta,
o companheiro.
Estas pessoas foram obrigadas a conhecer
os mais ocultos recursos
se suas próprias naturezas,
passageiras ou permanentes.
Seus interesses pela vida
foram estimulados e concentrados
pelo desejo de obter
a maior satisfação possível
de um período provavelmente muito curto
de poder e de influência".

66.

Foi nesta época que, paralelamente a estas tendências, desenvolveu-se nas cortes do norte da Itália um interesse desmedido pelas ciências ocultas de todo tipo, tal como nunca talvez se tenha ouvido falar na história. Tal interesse existiu principalmente entre os governantes e as pessoas que os rodeavam. Quanto mais estas pessoas realizavam e melhores se julgavam no seu conceito pessoal, tanto mais se interessavam por estes assuntos. Nos anos 1400 campeou o ocultismo nas cortes da Itália.

67.

É possível perceber que a cultura que um clima destes favorece e que, ademais, favorece muito, não é mais a busca e o amor à verdade que havia nas universidades dos séculos XII e XIII, e no sistema de ensino que as precedeu de modo imediato. É uma cultura brilhante, mas daquelas que impressionam os sentidos, que estimulam o interesse imediato, que transmitem uma viva impressão de erudição com uma falsa aparência de universalidade e que alimentam o auto conceito de ser o melhor.

68.

Este clima cultural que se espalhou pela sociedade do norte da Itália nos anos 1400 é visível, ainda hoje, no século XX, em certos meios como, por exemplo, no interior de uma grande empresa de Engenharia, aquela que tem que sobreviver produzindo os melhores produtos, vencendo a concorrência ou mesmo trapaceando, mas com trapaças feitas com competência. O engenheiro que quiser ascender profissionalmente em um meio como este tem que ser um bom engenheiro, dotado do maior número possível de qualidades, inclusive qualidades além de sua competência estritamente profissional. Os empresários tem que ser excelentes empresários, e os executivos têm que ser excelentes executivos.

É um ambiente muito diferente do que o que se encontra em muitas outras instituições, como repartições públicas e mesmo na maioria das escolas, onde não há um verdadeiro interesse, nem uma verdadeira necessidade, de se fazer melhor o que deveria ser feito, bastando que seja feito de alguma maneira. Tratam-se de instituições que se comportam como se existissem mais para preencherem um espaço dentro da sociedade que não poderia ser deixado vazio do que para realizar efetivamente o trabalho a que se destina. Comparadas com as primeiras, o ambiente encontrado nestas instituições é tal que sugere a impressão que seus profissionais estão fingindo que trabalham, que seus diretores estão fingindo que tudo está em ordem, que seus beneficiários estão fingindo que não percebem o que realmente está acontecendo e que todo o conjunto existe apenas para não deixar claro para a comunidade que na realidade não está sendo feito o que deveria estar sendo feito.

Neste sentido, a descrição psicológica que Burckhardt faz da civilização renascentista é exatamente aquela que se nota existir na cúpula de uma grande empresa de Engenharia. Até mesmo o interesse pelas ciências ocultas, que começa a surgir exatamente quando as pessoas começam, devido ao ambiente que criaram, a ter motivos para acreditar que pertencem à elite da sociedade em que vivem. Todos eles tem interesses culturais diversos e muito vivos, mas são geralmente interesses superficiais, que não exigem um esforço sistemático de anos seguidos. Todos eles têm e procuram ter uma razoável cultura geral, freqüentam os cinemas, os jornais, as melhores revistas, praticam um certo número de atividades paralelas que freqüentemente tem pouca ou nenhuma relação uma com a outra e, depois de alguns anos, quando possuem um currículo que lhes dê um certo respaldo psicológico, falam dos problemas do país, do mundo, da humanidade ou mesmo de seus empregados dando a impressão de que o que eles aprenderam em suas vidas representa a visão absoluta, exata e ontológica do cosmos.

Nestas empresas, à diferença da Renascença italiana, não se cortam os pescoços daqueles que não vencem, mas existe o mesmo tipo de competição que conduz a um mesmo tipo de interesse cultural.

69.

Pode-se depreender, portanto, como no Renascimento teve início o mundo moderno.

No ambiente em que se iniciou a Renascença estava o mundo moderno em miniatura. Existia ali o mesmo ambiente que existe no verdadeiro capitalismo, com o desenvolvimento conseqüente de um padrão de interesse intelectual que conduz a uma apreciação do mundo semelhante ao que temos hoje, mas ao qual teremos muito que acrescentar, conforme veremos.

70.

Um problema fundamental que havia com estes homens é que, embora fossem os líderes de um mundo assim estruturado e fossem de fato os melhores de sua época, não eram capazes de perceber que eram os melhores apenas segundo um determinado aspecto, e não os melhores no sentido absoluto da palavra.

A mesma coisa acontece com as elites bem sucedidas do século XX, aqueles que ditam as normas do mundo de hoje. Eles incorporaram em suas vidas este mesmo defeito de perspectiva. Supõem que são os melhores e, efetivamente, é algo evidente que eles são os melhores, uma constatação que não se pode negar. Mas o que eles não conseguem perceber é que existe uma diferença entre ser o melhor segundo um determinado aspecto e ser o melhor absolutamente falando, o melhor ontologicamente falando, aquele "melhor" que o é por relação para com o bem, que Platão dizia que são necessários pelo menos cinqüenta anos de dedicação plena, apaixonada e metódica para poder ser compreendido.

Porém se dissermos uma coisa destas às pessoas do mundo de hoje elas simplesmente serão incapazes de compreender do que se está falando ou que exista esta distinção. Elas não quererão sequer discutir o assunto. Entraram na realidade em um processo de auto ilusão tão enraizado que aquele bem no sentido absoluto de que falava Santo Tomás de Aquino e que muitos de seu tempo eram capazes de entender com relativa facilidade, elas não conseguem mais entender. E, tal como são estas pessoas, assim também é em reflexo a sociedade que elas constróem, erguida sobre a ausência de previsão séria para qualquer instituição que tenha por fim buscar bem algum que não o seja sob um determinado aspecto.

71.

A cultura, portanto, que resultou de um mundo como este não é mais a cultura que se esperava que florescesse de fundamentos cristãos. É uma cultura de uma civilização que tem como base o culto da personalidade.

Atualmente pode parecer difícil imaginar uma forma diversa de desenvolvimento cultural, mas o fato é que, poucos séculos antes, os melhores estudantes geralmente procuravam o estudo depois de terem passado pelo que Cristo colocou no Evangelho como sendo a primeira condição para se aprender algo com ele:

"Quem não renuncia a si mesmo",

diz Jesus no Evangelho,

"não pode ser meu discípulo.

Bom é o sal,
mas se até o sal
se tornar insípido,
com o que se lhe dará o sabor?
Não servirá para mais nada,
e será atirado para fora.

Assim também,
qualquer um de vós,
que não renuncia a quanto tem,
e também à sua própria vida,
não pode ser meu discípulo.

Quem tem ouvidos para ouvir,
que ouça".

Mt. 16, 24
Lc. 14,26; 14,33-34

Esta é, pois, uma condição prévia colocado por Cristo para ser seu discípulo. Portanto, uma condição prévia para poder aprender. A este mesmo respeito escrevia S. Paulo da Cruz em uma carta de 24 de outubro de 1723:

"Já que nosso Salvador
nos deixou no seu Evangelho
que quem não se nega a si próprio
não pode ser seu discípulo,
assim todos os santos,
que quiseram ser
verdadeiros discípulos de Jesus,
têm estudado continuamente esta lição,
e efetivamente a colocaram em execução.

Experimentam agora estes santos homens
quanto bem lhes tenha trazido
a contínua abnegação de si próprios.

Seja este, portanto,
também nosso estudo,
não apenas hoje,
mas por todo o restante
de nossa vida".

O que ocorre, porém, quando se alicerça a vida sobre o fundamento oposto?

A primeira coisa que ocorre é, de modo geral, perderem-se de vista os mais altos objetivos da vida humana. Embora seja esta apenas a primeira coisa que ocorra, só isto, por si só, já é uma tragédia, e uma tragédia que está se abatendo sobre toda a humanidade.

Para a maioria dos homens esta perda começa a acontecer quando eles deixam-se dominar desde cedo, em suas vidas, pelas suas paixões, fazendo com que os objetivos de suas existências sejam decididos por estas paixões e não pela luz da inteligência. Uma pessoa que renuncia de fato a si mesma não se deixa levar pelas suas paixões, mas a que segue pelo caminho oposto facilmente se deixa conduzir por elas e, ao fazer isto, abandona aqueles objetivos mais altos porque as paixões humanas sempre têm objetivos muito estreitos e limitados, jamais alcançando os que somente podem sê-los pela inteligência.

Tais pessoas passam a agir, portanto, como se estivessem privadas da razão em todas as decisões fundamentais que irão determinar o desenrolar de suas vidas. A inteligência que elas possuem, a partir daí, não será mais utilizada para decidirem os seus objetivos, mas apenas para elaborarem os meios para que se alcancem os objetivos que não foram escolhidos pela inteligência.

Com o tempo, a inteligência, que não é utilizada como fim, mas como instrumento, vai se obscurecendo de tal modo que chega à negação de qualquer objetivo mais elevado para a vida humana que não seja os da própria satisfação de suas paixões; os objetivos da vida humana passam a ser considerados como questões pessoais, como uma opção de gosto pessoal, expressão que na verdade significa que não são mais os objetivos que derivam da luz da inteligência, mas os impostos pelas paixões humanas.

O homem que vive neste estado está de antemão em um eterno preconceito com o Evangelho, pois o Evangelho viria trazer-lhe notícias de objetivos mais elevados, exatamente objetivos do tipo que ele nega.

Objetivamente falando, uma pessoa reduzida a este estado é uma pessoa que se degradou. Para quem não se encontrasse nestas condições, uma pessoa neste estado deveria causar-lhe uma tristeza profunda, assim como ao homem sóbrio causa tristeza assistir à degradação do alcoólatra. É o que, de fato, encontramos nos escritos dos homens santos, como em passagens como estas, tiradas das cartas de Santo Antão:

"Quero que saibais,
meus filhos,
o quanto sofro por vós
quando vejo a profunda decadência
que a todos nós ameaça.

Os homens,
incapazes de exercerem
sua inteligência
segundo o estado
de sua criação original,
inteiramente privados de razão,
sujeitaram-se à criatura
em vez de servir ao Criador.

Meu coração se espanta
e minha alma se aterroriza,
pois mergulhamos no prazer
como gente embriagada de vinho,
porque deixamos reinar em nós
a nossa vontade própria
e nos recusamos e elevar
nossos olhos para o céu,
buscando a glória celeste".

Os homens que se recusam a elevar os seus olhos para o céu, buscando a glória celeste! Mas é justamente assim que hoje vivem a maioria das pessoas.

Se tais tivessem a coragem de renunciarem sinceramente a si próprias, o primeiro efeito que elas colheriam deste preceito de Cristo seria uma abertura da mente para um uso mais límpido da inteligência. Pode parecer à primeira vista paradoxal, mas a renúncia seria algo que lhes alargaria os horizontes.

Era exatamente porque faziam isto que, na época de Hugo de São Vitor e Santo Tomás de Aquino os melhores estudantes percebiam mais claramente o que era que de mais importante devia ser buscado com o estudo.

Já na Renascença aqueles que eram incentivados a produzirem intelectualmente não eram aqueles que haviam renunciado a si próprios, mas aqueles que haviam decidido cultivar ao máximo o seu próprio ego ou que eram patrocinados por tais homens. Foi no orgulho, e não na renúncia, que se começou a construir um mundo novo, um mundo exatamente oposto àquele que a humanidade e seus principais representantes haviam lutado durante dois mil anos para conseguirem implantar.

72.

Que frutos podem ser esperados de um mundo novo construído desta maneira?

No início dos anos 1100 Hugo de São Vitor escreveu um pequenino livro, um opúsculo, que hoje, impresso, ocupa cerca de meia dúzia de páginas. Chama-se "Os Frutos da Carne e do Espírito".

Este livrinho é acompanhado por dois desenhos feitos pelo próprio autor. Neles Hugo desenhou duas árvores, uma árvore que corresponde à árvore dos vícios e outra árvore que é a árvore das virtudes. As duas árvores ilustram o título do livro, "Os Frutos da Carne e do Espírito".

Na árvore dos vícios são mostrados os frutos da carne, e na árvore das virtudes os frutos do espírito.

No desenho da árvore dos vícios vemos muitos galhos que se elevam até chegar ao topo; na raiz da árvore Hugo colocou aquilo que, segundo ele, é a raiz de todos os vícios, o orgulho.

Na outra árvore das virtudes, como raiz Hugo colocou aquilo que, segundo ele, é a raiz de todas as virtudes, a humildade, que podemos tomar aqui como subentendendo a renúncia de si próprio.

Ambas as árvores correspondem a duas concepções de vida, que são, coincidentemente, as que estivemos descrevendo. As duas árvores são, respectivamente, o homem que estava- se tentando produzir na Renascença e o homem que até os anos 1200 a sociedade despendia consideráveis esforços para produzir, duas formas de construir uma personalidade que divergem em suas próprias raízes.

A primeira é baseada na humildade como raiz, ou a renúncia de si próprio, que é a base de um longo aprendizado posterior. Conforme afirmou Cristo, quem não renuncia a si próprio não pode ser seu discípulo, o que significa, em outras palavras, que não pode sequer começar a aprender o que quer que haja para ser aprendido no caminho que Cristo nos aponta. De tudo o que Cristo nos tem a ensinar, nada poderá ser aprendido se não se assentar sobre esta base.

A segunda é baseada no orgulho como raiz, ou o culto de si próprio, justamente o oposto do homem da personalidade anterior, isto é, o homem que não apenas não quer renunciar a si próprio como antes, ao contrário, parte do princípio de querer cultivar a si mesmo de todos os modos possíveis.

Mas o que há de mais interessante nestas duas árvores é o que se vê no topo de ambas. À medida em que elas vão crescendo os frutos vão surgindo e os principais são os últimos, isto é, os que crescem no topo das mesmas.

O que há, neste sentido, no topo daquela primeira árvore cuja raiz é a humildade e a renúncia? No topo desta árvore Hugo desenhou o amor, isto é, a caridade, aquela amizade que une entre si Deus e os homens com base em uma felicidade que jamais haverá de ter fim.

E o que pode ser visto, por outro lado, no topo da outra árvore? Guerras, ódios, vinganças, destruição? Nada disto. No topo da outra árvore encontra-se apenas a luxúria, o desregramento da vida sexual, a incapacidade de compreender a vida sexual como algo que esteja entre as coisas sagradas, uma vida sexual que, embora seja entre seres humanos, passa a ser vivida à semelhança daquela que existe entre os animais.

A árvore que se inicia com o orgulho, assim, termina não na guerra ou na violência, mas em uma vida humana que imita a dos animais.

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E é precisamente isto o que vemos acontecer durante o período renascentista, como se o opúsculo escrito por Hugo de São Vitor tivesse sido uma profecia.

Em todas as classes sociais, mas principalmente entre as superiores e mais próximas ao poder, assistiu-se a um alastramento geral da imoralidade.

Porém, mais do que isso, este alastramento foi acompanhado por um fato novo na história. As novas classes intelectuais, a nova elite pensante, conhecida genericamente como os humanistas, da qual ainda não falamos como se formou, como era educada e quais os interesses que a moviam, sustentada pelos novos governantes, veio a empenhar-se propositalmente na difusão da imoralidade, na sua justificação e na sua glorificação.