III/F



74.

Vamos descrever a seguir o surgimento, a educação e os interesses de uma nova classe intelectual que se formou durante a Renascença. Seus membros costumam ser referidos pela História com o nome de humanistas.

O primeiro dos humanistas foi o italiano Francesco Petrarca, que viveu durante a primeira metade dos anos 1300.

Petrarca era um homem nitidamente imbuído de ideais cristãos, não obstante nele já se encontrarem uma série de características que se chocam com esta postura. Diz dele Pastor no volume primeiro da "História dos Papas":

"Nem sequer Petrarca ficou imune
do fermento de seu século.
Encontramos neste poeta
traços que contrastam
com suas idéias fundamentais
de fiel cristão.
Tais são,
por exemplo,
seu desprezo altivo pela escolástica
assim como pela Idade Média,
da qual foi um dos primeiros,
por assim dizer,
a acreditar na fábula das trevas
da Idade Média,
e a sua doentia sede de glória".

"É um triste espetáculo ver um homem
tão elevado intelectualmente
como Petrarca
sonhar com coroas de louros,
favores de príncipes,
ovações populares
e correr atrás do fantasma da glória
junto a cortes de príncipes
moralmente muito degradados".

"Característica dos humanistas
que vieram depois dele
foi um amor próprio desmedido;
extremamente vaidosos
e necessitados de fama,
não se julgavam jamais
suficientemente reconhecidos.
Suas bocas e suas penas
estavam cheios de belas frases,
mas ao mesmo tempo
eles eram sumamente ávidos
de dinheiro e de vida faustosa,
de honras e de admiração,
mendigos dos favores
dos grandes e dos ricos,
e insuportáveis uns aos outros,
prontos para qualquer intriga,
para qualquer calúnia,
para qualquer maldade
desde que fosse para arruinar
um odiado concorrente.
Iniciou-se uma evolução sem limites
do individualismo,
da qual despontou
uma multifacetada ânsia de glória
que chegou a extremos satânicos".

75.

É o mesmo Pastor que, em um volume posterior, o Tomo III vol. 5 de sua obra, descreve o progresso da imoralidade durante a época do Renascimento:

"Se se investigam as causas principais
por que nesta época muitos italianos
se encaminharam pelos
mais perniciosos extravios,
não pode ser duvidosa a resposta:
é o desenvolvimento do individualismo
promovido pelo Renascimento".

"Os partidários desta perniciosa tendência
contrapunham conscientemente
a renúncia a si mesmo,
a humildade
e a mortificação da religião cristã
ao egoísmo,
ao orgulho, à vanglória,
ao espírito mundano
e à sede de prazeres
da antigüidade pagã.
Desta maneira surgiram
aquelas funestas figuras
que juntaram a mais elaborada cultura
a uma astuciosa malícia e desprezo
de todas as leis morais".

"Do individualismo ilimitado,
tão grandemente favorecido pelo Renascimento,
nasceram,
além da ambição pela glória,
outros muitos e perniciosos vícios,
como a prodigalidade,
a luxúria, o jogo,
a sede de vingança,
a mentira e a fraude,
a imoralidade,
os crimes e homicídios,
a indiferença religiosa,
a incredulidade a a superstição.
À simplicidade e bons costumes
do tempo antigo
se opôs em quase todas as cidades
um luxo crescente
e uma crescente imoralidade".

"Talvez o pior dos lados sombrios
dos italianos desta época
foi a desonestidade conjugal.
Não há dúvidas de que a imoralidade
fêz terríveis progressos
em todas as grandes cidades
e mesmo em muitas das pequenas
na época do Renascimento.
As mais grosseiras desordens
eram muito freqüentes,
principalmente entre as pessoas
instruídas e de elevada classe.
A ilegitimidade dos filhos
já não se considerava uma mancha,
de maneira que quase não se fazia mais
diferença entre os filhos bastardos
e os filhos legítimos.
Mesmo havendo honrosas exceções,
a maioria dos príncipes italianos
do Renascimento
estavam demasiadamente contaminados
pela corrupção moral".

"Toda a Itália,
escrevia na história de Frederico III
Enéias Sílvio Piccolomini,
o futuro Papa Pio II,
está em nossos tempos
governadas por príncipes
nascidos fora de matrimônio".

"Quando, mais tarde,
já Papa Pio II,
passou pela cidade de Ferrara em 1459,
deixou escrito que foi recebido
por sete príncipes,
dos quais nem sequer um havia nascido
de matrimônio legítimo".

"É simplesmente assombrosa a indulgência
com que as pessoas cultas
contemplavam os excessos dos grandes.
Poetas, literatos e artistas
glorificavam as vergonhosas paixões
dos príncipes,
ainda mesmo durante as suas vidas,
de uma maneira que,
embora parecesse aos séculos posteriores
o cúmulo da indiscrição,
passava na época por uma inocente homenagem".

"Juntamente com os príncipes
concorriam em imoralidade
grande parte dos humanistas
representantes do Renascimento,
muitos dos quais tinham sabido
tornarem-se indispensáveis
em quase todas as cortes dos príncipes
como educadores de seus filhos,
como oradores e diplomatas".

"Embora apenas as pessoas mais instruídas
tivessem acesso à literatura obscena
dos expoentes do Renascimento,
em círculos mais extensos
difundia-se o mesmo veneno
por meio das novelas e comédias
escritas em linguagem popular.
O argumento favorito destes novelistas
eram as relações sexuais
em seu mais crasso realismo,
e juntamente com ele,
a hostilidade contra o matrimônio
e a família,
o engano dos maridos que ingenuamente
confiavam em suas esposas,
as infidelidades cometidas
contra outros mais desconfiados,
apesar de todas as suas vigilâncias.
De modo geral,
predomina a tendência
a desculpar o adultério
e até a glorificá-lo,
desde que tenha sido levado a efeito
com astúcia e engenhosidade".

"Assim como na elite pensante
do Renascimento,
também nesta literatura
encontra-se o amor livre
como um ideal a que se deve aspirar,
e se foi chegando tão longe
que até muitas pessoas,
honestas em outros aspectos,
começaram a defender
a legitimidade do divórcio".

"Além da literatura obscena
teve um grande efeito pernicioso
nas classes mais favorecidas
desde a segunda metade dos anos 1300
o costume que se estendeu
por toda a Itália
de ter como escravas
donzelas orientais.
Quase todas as casas
distintas de Florença
tinham estas escravas,
e este abuso conduzia,
com forte freqüência,
a destruir a felicidade das famílias.
Outras vezes eram criados em conjunto
os filhos legítimos com os ilegítimos".

"Nos anos 1300 era grande
em muitas cidades italianas
o número das prostitutas,
mas nos anos 1400 percebe-se
um deplorável aumento das mesmas.
Mais significativo foi o fato de que
começou-se a trocar,
por esta época,
o nome com que se designavam
as mulheres públicas.
Em vez do antes usado de pecadoras,
passou-se a utilizar o mais decoroso
de cortesãs.
Correspondendo a esta denominação,
as cortesãs passaram a se esforçar também
por conseguir uma educação brilhante.
Vemos pelos testemunhos da época
como aquelas damas cultivavam a música,
liam os poetas
e sabiam falar e escrever
com elegância.
Suas cartas mostram uma expressão
segura e correta,
e até mesmo citações latinas.
Uma das mais famosas cortesãs romanas
levava o orgulhoso nome de Impéria;
sua morte precoce, porém,
preservou-a da sorte de quase
todas as restantes de suas companheiras,
as quais, depois de haver dissipado
sua beleza e sua riqueza,
acabavam no hospital
ou na indigência pública,
tal como Tullia d'Aragona,
célebre também como poetisa,
que chegou a tal pobreza em sua velhice
que passou seus últimos anos
em uma taverna do Transtevere,
onde morreu".

Em conseqüência do aumento da prostituição, à Peste de 1348 acrescentou-se, a partir dos fins dos anos 1400,

"uma terrível epidemia de sífilis.
Já conhecida anteriormente,
esta repugnante enfermidade,
que se manifestava em novas formas
e com uma maior violência,
alcançou,
em parte por efeito do notável
crescimento da imoralidade,
uma tão grande extensão
como nunca outra epidemia
havia alcançado anteriormente".

Naquela época não se conhecia ainda a cura da sífilis. Hoje facilmente tratável com os antibióticos mais simples, naqueles dias esta horrenda doença, uma vez contraída, evoluía inexoravelmente ano após ano até morte do paciente.

"Descrevia-se a doença
como um mal terrível e espantoso,
diante da qual a humanidade retrocedia
tomada de horror,
como um sofrimento
pior do que a própria lepra,
diante da qual
nenhuma outra doença
pode disputar a primazia,
um mal que consome o corpo,
deixa o espírito exausto
e transforma os doentes
em cadáveres viventes.
Assim como nos demais países da Europa,
o novo mal foi visto
como um justo castigo de Deus
pelos pecados dos homens
e pela grande corrupção dos costumes".

"Entretanto,
não era a multidão das prostitutas
e das cortesãs
o pior dos danos que afligiram a Itália
do Renascimento.
O historiador deste período
não pode deixar de mostrar outro lado
todavia mais repugnante.
Há testemunhos irrecusáveis
que não permitem duvidar
que renasceu nesta época"

a prática da homossexualidade. Muitíssimo comum na antigüidade pagã,

"quase totalmente desarraigada
pela Igreja e pelas legislações civis
penetradas pelo espírito cristão
durante a Idade Média,
voltou a introduzir-se agora nas sociedades
graças à cega adoração dos humanistas
pela literatura pagã.
No início dos anos 1400
a homossexualidade surge nas cidades
de Veneza, Siena e Nápoles.
São Bernardino de Siena
perseguiu este vício em seus sermões
com inflamadas palavras,
mas os humanistas glorificavam
publica e desavergonhadamente
este pecado que em outro tempo
havia sido a maldição do mundo antigo
e muitos chegavam até mesmo
a gloriar-se do mesmo.
Ariosto, um dos humanistas,
chegou a declarar que praticamente
todos os humanistas estavam manchados
com o vício pelo qual Deus havia castigado
a Sodoma e a Gomorra.
No fim dos anos 1400 Antonio Loredano,
embaixador de Veneza em Roma,
perdeu seu cargo
por escândalo dado nesta matéria,
mas o pior para os italianos
foi ter penetrado este vício também
nas classes inferiores.
No tempo da expedição de Carlos VIII,
no fim dos anos 1400,
quando as tropas francesas invadiram
temporariamente o norte da Itália,
o cronista da expedição militar
escreveu estas palavras:

`Todo este país,
todas as suas cidades,
Roma, Florença, Nápoles,
Bolonha, Ferrara,
estão contaminadas com este mal'".

76.

A esta descrição de Pastor junta-se a avaliação de Will Durant, encontrada em seu livro sobre a Renascença:

"A homossexualidade tornou-se
quase que uma parte obrigatória
do Renascimento
pelo interesse dos clássicos antigos.
Os humanistas escreveram sobre esta prática
com afeto estudantil,
e Ariosto inclusive deixou escrito
que todos eles estavam nela envolvidos.
Arretino descreveu a aberração
como sendo bastante popular
na cidade de Roma,
e ele próprio,
entre uma mulher e outra,
pediu ao Duque de Mântua
que lhe enviasse um belo rapaz.
Em 1455 o Conselho dos Dez de Veneza
redigiu uma nota oficial sobre como

`o abominável vício da sodomia
está se multiplicando nesta cidade',

e, para evitar `o castigo de Deus',
designou dois homens em cada bairro de Veneza
encarregados de extirpar a prática.
O Conselho ademais notou
que já havia homens em Veneza
que se trajavam como mulheres e vice versa.
Podemos ter certeza que a homossexualidade
estava mais do que normalmente presente
na Itália Renascentista.
A mesma coisa pode-se dizer
da prostituição.
De acordo com Infessura,
em Roma, cuja população era
de noventa mil almas,
havia pelo menos
seis mil e oitocentos prostitutas.
Em Veneza o censo de 1508
reportava quase doze mil prostitutas
em uma população de trezentas mil pessoas.
Logo nos primeiros tempos da imprensa,
um editor veneziano publicou
um catálogo de nomes, endereços
e preços das principais cortesãs de Veneza".

77.

Vamos examinar em seguida qual foi o tipo de cultura que floresceu durante a Renascença, em um ambiente como este que estivemos descrevendo, e em busca de que ideais se desenvolveu a formação dos homens daquele tempo.

O tema é de grande importância, não apenas porque neste época surgiu uma nova forma de educação, a que pode-se chamar de educação renascentista, também conhecida posteriormente como educação humanista, mas também porque foi da evolução deste tipo de escola baseada nas idéias educacionais da Renascença que provieram as escolas que existem atualmente.

A escola de hoje é um aperfeiçoamento do tipo de educação que surgiu neste contexto no norte da Itália. Não é, a não ser indiretamente, uma continuação dos ideais pedagógicos dos filósofos gregos, nem uma educação inspirada diretamente nos ensinamentos do Evangelho, tal como aquela que pode, por exemplo, ser encontrada nos escritos pedagógicos de Hugo de São Vitor, de modo especial na obra recentemente publicada intitulada de "Princípios Fundamentais de Pedagogia", na qual se reúnem e coordenam diversos textos de Hugo de São Vitor que até hoje tinham sido publicados apenas de uma forma esparsa.

78.

Para entender como surgiu a pedagogia renascentista, temos que relembrar alguma coisa sobre a história que veio sendo descrita nesta Terceira Parte da presente Introdução Histórica.

Acabávamos de explicar como um ambiente tal como o que se desenvolveu na Itália nos anos 1300-1400 é, ao contrário do que poderia parecer a um primeiro exame, altamente propício ao desenvolvimento da cultura, embora a cultura que daí vá resultar seja um tipo bem particular de cultura. Nossa intenção será, a seguir, explicar como se educavam as pessoas dentro desta cultura.

No início desta Terceira Parte explicamos como durante a antigüidade floresceram duas formas de educação. Havia a educação filosófica que se estendia por toda uma vida e não envolvia finalidades imediatas e havia também a educação retórica, à qual se dirigiam a maioria dos que estudavam. A educação filosófica, muitíssimo mais exigente, sempre foi a de uma minoria.

Ambas estas duas formas de educação, tanto a filosófica como a retórica, canalizavam grande quantidade de conhecimento, mas a finalidade e o modo como estes conhecimentos eram utilizados eram bastante diversos. Os filósofos buscavam a sabedoria, os retores buscavam a arte de falar e escrever bem, de convencer as multidões mais pela beleza e pelo envolvimento do discurso do que pela força do argumento.

Embora, conforme apontado, a educação filosófica sempre tivesse sido privilégio de uma minoria, no século IV Santo Agostinho propôs em seus livros que o ideal para o estudante cristão seria aproveitar o que havia de bom em ambas estas concepções educacionais, servindo-se das duas como uma preparação para um estudo mais profundo das Sagradas Escrituras.

Com o desenvolvimento das escolas monásticas no Ocidente Cristão, que se iniciou aproximadamente por esta época, a orientação contida nas obras de Santo Agostinho foi sendo posta em prática e se difundindo pela Europa. Foi introduzido o currículo das Artes Liberais, dividido em dois ciclos designados por Trivium e Quadrivium. O Trivium tinha sua inspiração nas antigas escolas de retórica, o quadrivium tinha sua origem direta no livro `A República' de Platão, onde ele descreve a formação do filósofo.

O surgimento do ensino das Artes Liberais em seus dois ciclos do Trivium e do Quadrivium fêz com que gradualmente ambas as correntes da pedagogia antiga fossem se canalizando em uma mesma direção convergindo para o estudo das Ciências Sagradas.

Com esta fusão, porém, o Quadrivium que provinha da corrente filosófica passou a ter uma importância cada vez maior do que o Trivium. A Arte Retórica continuou a ser ensinada, mas apenas como matéria preliminar de formação, e não como objetivo último da Pedagogia. Aos poucos, à medida em que a humanidade foi se aproximando dos séculos XII e XIII, a educação superior foi se voltando cada vez mais para a busca da sabedoria pura e simplesmente.

É muito importante chamar a atenção para o real significado deste fato. De um modo gradual, sem que para tanto tivesse havido nenhuma revolução ou aparato, o tipo de ensino que era predominante da antigüidade passou a ser relegado a um plano bastante secundário de introdução geral aos estudos, e o que era privilégio de poucos passou a ser a norma geral do ensino superior. Aquilo que Platão fazia em sua escola, o modo e os objetivos para os quais ele orientou seu discípulo Aristóteles e que aos poucos, à medida em que se aproximava da morte, o próprio Platão foi se convencendo que seria uma utopia para o mundo, tudo isto acabou gradualmente se tornando no mundo cristão uma realidade.

É assim que, por exemplo, os "Princípios Fundamentais de Pedagogia" de Hugo de São Vitor são em grande parte uma concretização em contexto cristão de ideais pedagógicos de grande afinidade com os de Platão; mas, ao mesmo tempo, não são mais uma descrição, como ocorre na "República", de um ideal a ser atingido pela humanidade, mas a transposição escrita de uma realidade pedagógica vivida em Paris no início dos anos 1100 DC.

79.

Toda esta realidade desmoronou durante a Renascença. Objetivos como estes se tornaram incompreensíveis para os homens da época. Os homens da Renascença não se interessavam mais pela Teologia, pela Filosofia, pela Matemática ou pelo Quadrivium.

O pequeno surto de interesse que houve nos anos 1400 pelas obras de Platão entre alguns estudiosos de Florença se referiu mais ao aspecto deslumbrante de sua obra do que pela verdade que pudesse haver nela contida, com exceção, talvez, de M. Ficino, o líder deste restrito grupo.

Mas então, neste caso, pelo que se interessavam os homens da Renascença? Interessavam-se, devemos responder, basicamente por aquilo que hoje nós chamaríamos de literatura, pura e simplesmente. Este estranho renascimento do interesse pela literatura com evidente desprezo de outras formas de atividade da inteligência, explicável apenas diante do contexto da época, iniciou-se por meio do poeta Petrarca.

80.

Francesco Petrarca era filho de um advogado de Florença que, por ocasião de uma revolta em 1302, tinha sido obrigado a fugir da cidade. Dois anos depois, no exílio, nascia Petrarca.

Quando Petrarca tinha aproximadamente 10 anos de idade, seu pai transferiu-se juntamente com a família para a cidade de Avinhão, na França. Nesta época a Cúria Romana estava em Avinhão e a cidade oferecia maiores oportunidades para o trabalho de um advogado.

Já adolescente, Petrarca foi mandado pelo seu pai para Bolonha, com a finalidade de estudar Direito. Segundo o historiador Will Durant, Petrarca adorou a cidade, mas odiou o Direito. Dizia ele que era contra o seu espírito

"adquirir tão penosamente
uma arte que dificilmente
poderia vir a praticar
senão desonestamente".

Dos tratados de Direito tudo o que lhe interessava era a imensa quantidade de referências que havia neles a respeito da antiguidade romana.

Assim, em vez de estudar as leis, em Bolonha Petrarca punha-se a ler tudo o que podia encontrar sobre Virgílio, Cícero e Sêneca, os grandes poetas e oradores do mundo antigo. As poucas obras que ele pôde encontrar destes autores lhe abriram novas perspectivas quanto à arte literária. Petrarca começou a pensar como eles e esforçava-se a escrever também como eles. Em 1326, quando seus pais faleceram, Petrarca abandonou o estudo das leis, retornou a Avinhão e se dedicou à poesia.

Petrarca possuía suficientes recursos para permitir-se uma vida de lazer e de viagens. Durante a primeira metade da década de 1330 ele visitou Paris, a Bélgica, a Alemanha e Roma.

Retornando a Avinhão foi durante anos hóspede no palácio de um dos principais cardeais, onde podia encontra-se com os melhores estudantes, professores, homens da Igreja, advogados e estudiosos da Itália, da França e da Inglaterra, comunicando-lhes, continua ainda Will Durant, parte de seu entusiasmo pela literatura antiga.

Finalmente, Petrarca comprou uma chácara situada a quinze milhas de Avinhão, para onde se retirava e escrevia longas cartas não só para seus amigos, como também para Papas, reis, homens famosos da antigüidade já falecidos há séculos e também para a posteridade. De toda esta correspondência, escrita no melhor estilo latino de Cícero, ele tirava cópias que eram arquivadas e revisadas para serem publicadas após a sua morte.

Petrarca aceitava com sinceridade toda a doutrina religiosa proposta pela Igreja, mas vivia em espírito entre os grandes escritores romanos. Escrevia cartas para Homero, Cícero e Tito Lívio como se fossem seus amigos íntimos e lamentava-se que não tivesse nascido nos dias da antiga Roma.

Durante os estudos de sua juventude em Bolonha ele havia tido notícia da existência de numerosos clássicos da literatura antiga que haviam sido esquecidos ou perdidos. Uma de suas maiores paixões tornou-se a caçada a estas obras das quais se sabiam os nomes mas não se sabiam onde estavam os respectivos textos, no que foi favorecido por suas numerosas viagens.

Em 1340 Petrarca foi coroado com louros pelo Senado Romano em consideração pelos seus trabalhos poéticos; na mesma época foi hóspede da corte do Rei de Nápoles; passou depois aquela década viajando por Pisa, Bolonha e Verona. Quando veio a Peste Negra, Petrarca era hóspede da corte de Pádua; estêve também em Mântua e Ferrara.

Em 1350 visitou a cidade de Roma por ocasião do ano santo. Durante a viagem conheceu em Florença o seu futuro amigo Bocaccio, outro dos grandes nomes do Renascimento literário dos anos 1300.

Em 1351 já estava de volta em Avinhão. Em 1353 foi hóspede das cortes de Milão. Na década de 1360 morou em Veneza; em 1370 mudou-se novamente para Pádua, onde finalmente morreu.

Durante suas viagens Petrarca descobriu em 1333, em uma biblioteca da uma igreja em Liège, dois discursos perdidos de Cícero. Em 1345 descobriu em um mosteiro de Verona um manuscrito contendo várias cartas de Cícero a Ático, Quinto e Brutus.

Estas descobertas chamaram a atenção de Petrarca para o fato de que nas bibliotecas de muitos mosteiros da Europa havia cópias destas obras antigas. Na verdade elas eram desconhecidas apenas pelo fato de que não só os monges, mas toda a civilização medieval nunca lhes havia dado valor ou se interessado por elas mais do que por um exercício de gramática. Eram obras que primavam pela beleza do estilo latino com que estavam escritas, mas de muito pouco valor quanto ao seu conteúdo. Nos mosteiros em que havia cópias manuscritas estes textos às vezes eram utilizados como um exercício de gramática latina ou simplesmente estavam encostados em algum canto menos freqüentado da biblioteca.

Mas quando Petrarca descobriu que escondidas pelos mosteiros da Europa jaziam esquecidas muitas daquelas obras que há séculos não se dava mais valor, e das quais geralmente não se conheciam senão os nomes, passou a considerar, conforme cita Will Durant, aqueles textos

"como mercadoria mais valiosa
do que qualquer coisa
que lhe pudesse vir
das Arábias ou da China".

Inspirou seus amigos a procurarem e a copiarem pela Europa manuscritos perdidos da literatura grega e latina, exigiu a abertura de bibliotecas públicas e, durante suas viagens, transcreveu ele próprio numerosos manuscritos. Quando em sua chácara em Avinhão, contratou copistas para viverem com ele e fazerem novas cópias daqueles manuscritos que ele havia juntado.

81.

O personagem que deu o segundo grande impulso para o renascimento pelo interesse pela literatura antiga nesta época foi um grande amigo de Petrarca. Giovanni Bocaccio era o seu nome.

Seu pai havia sido mercador da cidade de Florença. De passagem por Paris, uma aventura entre este mercador florentino e uma mulher francesa resultou no nascimento de Bocaccio. Logo após o nascimento, o pai resolveu trazê-lo consigo para Florença.

Aos dez anos de idade Bocaccio foi mandado para Nápoles para ser encaminhado na carreira comercial. Mas assim como Petrarca odiou o Direito, diz Will Durant, Bocaccio odiou o comércio e optou pela poesia.

Já adulto, alguns anos antes da Peste Negra, Bocaccio mudou-se de volta para Florença e foi ali que ele, depois da epidemia, começou a escrever contos eróticos que mais tarde reuniu para formar um romance. Mais do que apenas contos eróticos, diz Pastor, é

"com evidente prazer
que Bocaccio nestas obras
passou a celebrar
o triunfo da sedução sobre a inocência
como um sinal de sabedoria de vida
diante de concepções
que ele considerava já antiquadas".

Foi nesta época, em 1350, que Bocaccio conheceu e iniciou uma profunda amizade com Petrarca o qual, de passagem por Florença, dirigia-se para Roma para a celebração do ano santo.

Onze anos mais tarde, em 1361, Bocaccio recebeu inesperadamente uma carta que um monge agonizante lhe havia endereçado. Nesta carta havia muitíssimas censuras dirigidas a Bocaccio, tanto pela vida libertina que ele levava como pelo seu despudor literário. A carta continha também uma profecia ameaçadora segundo a qual, caso Bocaccio não se emendasse em um curto espaço de tempo, esperavam-no uma morte fulminante e uma condenação eterna no inferno.

O monge veio a falecer, mas a sua carta veio a produzir o efeito que ele esperava. Bocaccio arrependeu-se e pensou em vender seus livros e ingressar para a vida monástica.

Escreveu, entrementes, para seu amigo Petrarca sobre o ocorrido e suas novas intenções. Petrarca, porém, parece ter concordado apenas em parte com as idéias de seu amigo. Ainda segundo Will Durant, Petrarca concordou com o monge e com Bocaccio quanto a abandonar o tipo de literatura a que ele vinha se dedicando. Quanto, porém, a tornar-se monge, aconselhou-o a tomar uma via intermediária e a preferir o estudo dos clássicos gregos e latinos.

Assim aconselhado e orientado por Petrarca, Bocaccio passou a vasculhar várias bibliotecas, dentre elas a do mosteiro de Monte Cassino, dos quais resgatou e trouxe à luz várias obras antigas.

82.

Petrarca havia aconselhado Bocaccio a dedicar-se ao estudo dos clássicos gregos e latinos. Apesar disso, o próprio Petrarca não sabia ler grego. Ele possuía algumas cópias das poesias de Homero as quais, embora as guardasse com muito carinho, não era capaz de ler.

Este problema, no entanto, não era apenas de Petrarca. Na verdade, era dificílimo nos anos 1300 encontrar alguém na Itália que conhecesse a língua grega.

Nem sempre havia sido assim. No antigo Império Romano, embora no Oriente predominasse a língua grega e no Ocidente a latina, na cidade de Roma falava-se fluentemente ambas as línguas.

Na época do início do Cristianismo as crianças dos nobres romanos costumavam ser educadas por escravas gregas e, freqüentemente, por causa deste costume, aprendiam a língua grega antes da latina. Entre o povo romano a língua grega era tão comum que na própria Roma a Liturgia da Missa era celebrada em grego. Outro sinal do grau de difusão da língua grega na cidade de Roma é constituído pelo fato de que, quando o Apóstolo São Paulo quis escrever a sua Carta aos Romanos, redigiu-a em língua grega e não na latina. A mesma coisa fêz São Marcos quando, estando em Roma, baseando-se nos relatos de São Pedro que também lá estava, escreveu seu Evangelho para ser lido pela comunidade romana. O Evangelho de São Marcos foi escrito em grego, e não em latim.

Mas, aos poucos, o uso da língua grega foi diminuindo. Na Idade Média somente alguns poucos eruditos conheciam esta língua, e até mesmo uma pessoa como Santo Tomás de Aquino não sabia ler grego.

Nos decadentes anos de 1300 a situação ficou ainda pior. Encontrar na Itália alguém que soubesse grego era algo como procurar uma agulha em um palheiro.

Em 1342 Petrarca, em seu amor à literatura antiga, havia começado a estudar grego com um monge da Calábria. Logo em seguida, porém, este monge foi elevado à dignidade episcopal e teve que interromper as aulas. Com isto Petrarca nunca mais encontrou livros ou pessoas que pudessem lhe ensinar a língua grega.

Já o novo Bocaccio teve melhor sorte. Agora sob a orientação de Petrarca, conseguiu entrar em contato na cidade de Milão com Leôncio Pilatos, um ex aluno daquele monge calabrês que havia sido professor de Petrarca antes de se tornar bispo. Bocaccio levou Leôncio Pilatos para Florença e persuadiu a Universidade desta cidade a abrir uma cátedra de grego para ser ocupada por Pilatos. Petrarca ofereceu-se para pagar ele próprio o salário do novo professor e enviou-lhe cópias gregas da Ilíada e da Odisséia de Homero que ele próprio não conseguia ler para que fossem traduzidas para o Latim.

83.

Graças a Leôncio Pilatos, Bocaccio tornou-se o primeiro dos humanistas italianos capaz de ler, ainda que rudimentarmente, a língua grega.

Dedicou-se, daí em diante, até o fim de sua vida, seguindo os conselhos de Petrarca, à divulgação entre os italianos da literatura e da história da antiga Grécia.

84.

Foi então que, por ocasião do Concílio Ecumênico de Constança, de que se falou na segunda parte desta Introdução, no início dos anos 1400, deu-se um passo seguinte e decisivo nesta história.

A título de recordação, o Concílio de Constança, cidade situada no território do Sacro Império Germânico, está associado ao Cisma que dividiu a Igreja no fim dos anos 1300 e início dos anos 1400.

Logo após o retorno da Cúria Pontifícia de Avinhão para Roma, em 1377, os cardeais franceses, que naquela época eram a maioria do colégio cardinalício, elegeram um segundo papa ao lado do Papa legítimo.

Mais tarde, em 1409, foi eleito na cidade de Pisa um terceiro papa, também ilegítimo.

Esta triste situação só foi resolvida pelo Concílio de Constança, convocado inicialmente pelo terceiro papa em 1414. Um dos primeiros atos deste Concílio foi o de forçar a renúncia deste terceiro para, o que foi obtido, não antes de muitas dificuldades.

Diante da renúncia do terceiro papa, vendo a possibilidade de reconstituir a unidade da Igreja, Gregório XII, o Papa legítimo, convocou a partir daquele momento em seu nome o Concílio já de fato reunido em, Constança, renunciando, em seguida, ao Pontificado.

Esperava-se com isto que o segundo papa que nesta época residia em Avinhão, também renunciasse por amor à Igreja. Se assim ocorresse, poderia ser eleito um novo sucessor de Pedro cuja legitimidade não fosse mais suspeita para ninguém.

Mas o papa de Avinhão não quis renunciar, e passaram-se quase três anos antes que pudesse ser eleito Martinho V, o legítimo sucessor de Gregório XII, dando-se fim ao Cisma.

85.

Ora, o secretário do Papa Gregório XII, o Papa legítimo que renunciou diante do Concílio de Constança, era um humanista de nome Poggio Bracciolini.

Com a renúncia de Gregório XII e a intransigência de Bento XIII, o outro papa, em não fazer o mesmo, passaram- se quase três anos antes de ser eleito outro Papa em Roma e de Poggio poder voltar às suas funções de secretário papal.

Enquanto isto Poggio estava em pleno território germânico, assistindo a um Concílio no qual tinha pouco a fazer.

Resolveu, pois, seguindo as inspirações de Petrarca e de Bocaccio, aproveitar o tempo procurando manuscritos perdidos. Até a eleição de Martinho V e o encerramento do Concílio de Constança, Poggio conseguiu organizar quatro expedições de busca destes manuscritos pela Europa Central. Até então a busca de manuscritos por parte dos humanistas tinha-se restringido quase que somente à Itália. Apenas ocasionalmente, no início do movimento, Petrarca, devido às suas numerosas viagens, tinha tido a oportunidade de fazê-lo uma vez ou outra fora da Itália. Os demais humanistas, influenciados por Petrarca e por Bocaccio, haviam limitado suas buscas apenas ao território italiano.

Com Poggio Bracciolini e a vacância de quase três anos da Sé Romana surgiu pela primeira vez uma oportunidade para o então nascente movimento realizar uma busca de sérias proporções em territórios situados para além dos Alpes.

Aproveitando sua estada em Constança e o longo período de sede vacante, Poggio vasculhou, ainda em 1415, o ano da renúncia de Gregório XII, a biblioteca do antigo Mosteiro de Cluny.

Em uma segunda expedição, em 1416, visitou a biblioteca do Mosteiro de Saint Gall.

Na terceira, no início de 1417, revisitou Saint Gall e outros mosteiros das redondezas.

Em meados de 1417 realizou uma quarta expedição por diversas bibliotecas da França e da Alemanha.

86.

Foi na segunda expedição que ocorreu um fato que posteriormente veio a se mostrar da maior importância.

Nesta segunda expedição de Poggio, em uma das torres da Igreja do Mosteiro de Saint Gall,

"em meio ao pó,
à umidade e à escuridão",

"em um calabouço sujo e escuro",

conforme ele próprio relatou posteriormente, Poggio encontrou um código contendo as Instituições Oratórias de Quintiliano.

Poggio narrou que se sentia diante do achado como se o antigo mestre estivesse lá preso em grilhões, de joelhos, pedindo que fosse salvo da secular prisão dos "bárbaros".

"Sem temer o frio
nem a neve do inverno",

diz Will Durant, Poggio exumou uma quantidade inumerável de manuscritos antigos apenas naqueles três anos, enquanto aguardava a eleição do próximo Papa.

Mas, entre eles, primaram pela importância justamente as Instituições Oratórias de Quintiliano, uma obra razoavelmente grande para os padrões da antigüidade, que Poggio afirma ter demorado para copiá-lo pessoalmente cinqüenta e três dias seguidos.

As Instituições, de que voltaremos a falar mais adiante, era uma obra escrita em doze livros por um advogado e professor romano que havia vivido no final do século I sobre a qual iria basear-se toda a pedagogia do movimento renascentista.

Nesta obra Quintiliano apresenta a oratória como a principal matéria de estudo para a formação do homem, devendo os demais assuntos ser estudados para que o homem se torne bom e perito na arte de falar.

Ela insistia na necessidade de um amplo conhecimento dos clássicos antigos, aquilo que coincidentemente já era a paixão dos novos humanistas, mas com a finalidade de desenvolver a arte de bem falar e escrever.

De fato, nos dois primeiros livros de sua obra, Quintiliano explica como fazer a criança aprender a ler e a escrever; como passá-la depois aos cuidados do professor de gramática; como ela deve aprender, juntamente com o latim ou até mesmo antes, a língua grega e exercitar-se na versão de uma língua para outra; como deve aprender todas as demais disciplinas, ainda que nada pareçam oferecer à arte oratória, como a música e a geometria; e como deve passar, depois disso tudo, aos cuidados do professor de retórica.

Do livro III ao IX Quintiliano passa a explicar os diversos preceitos da arte oratória. Chegando, porém, ao livro X, Quintiliano interrompe e diz:

"Mas todos estes preceitos
sobre a arte oratória,
necessários para a preparação teórica,
não são suficientes
para levar à eloqüência.
Conseguiremos isto lendo e ouvindo
o que há de melhor,
pois em tudo quanto se pode ensinar
os exemplos são mais poderosos
do que os preceitos teóricos.
É necessário ler com diligência
os melhores autores,
com a mesma solicitude
como se nós tivéssemos escrito
o que lemos".

Mas Quintiliano não se limitou aqui a fazer esta exortação em termos genéricos. Ele passa em seguida a catalogar e comentar uma extensa lista de obras dentre aquelas que ele considerava como o que de melhor havia na antigüidade o desenvolvimento da arte oratória, primeiro dentre os clássicos da língua grega e depois dentre os clássicos da latina, mostrando como o estudo desta imensa literatura se encaixava dentro da pedagogia que ele havia traçado.

Finalmente, no XIIº Livro Quintiliano mostrava como também é necessário desenvolver o caráter do estudante se ele desejar se tornar um exímio orador.

87.

Terminando o Concílio de Constança, quando Poggio Bracciolini voltou para a Itália, nos anos que se seguiram uma dúzia de humanistas italianos viajaram para a Grécia e para Constantinopla, financiados pelos governantes das cidades italianas, em busca de manuscritos dos livros apontados por Quintiliano e outros mais que pudessem existir.

Um só destes humanistas, Giovanni Aurispa, trouxe em uma única viagem 238 livros novos de Constantinopla.

"Quando tais exploradores literários
retornavam para a Itália
com seus achados
eles eram recebidos como se fossem
generais vitoriosos,
e os príncipes pagavam regiamente
por uma participação
nos seus espólios.
Com a queda de Constantinopla
muitos clássicos mencionados
nos livros dos escritores bizantinos
se perderam,
mas milhares deles se salvaram,
todos eles tendo vindo parar
no norte da Itália",

reafirma Will Durant.

"Uma revolução editorial se iniciou.
Os textos assim recuperados
eram estudados, comparados,
corrigidos e explicados.
Como muitos destes trabalhos
exigiam conhecimentos de grego,
iniciou-se a procura
de professores de grego.
Uma febre começou a se apossar
de todas as cidades italianas,
começando pela cidade de Florença,
em que os novos sábios
eram pesadamente apoiados
pela família governante dos Médici".

O estilo começou a se tornar mais importante do que a substância, e a arte oratória começou a se espalhar pelos salões das cortes. Para a maioria dos humanistas, deslumbrados diante das descobertas que se faziam, os dez séculos entre Constantino e os anos 1300 DC haviam sido um erro, uma tragédia, uma perda de rumo, um tempo precioso perdido por causa da divulgação do Cristianismo. Os humanistas tornaram-se não apenas secretários e conselheiros de senadores, senhores, duques e príncipes, mas também, com a fascinação de sua eloqüência, transformaram completamente o ideal pedagógico dos homens das cortes. Posteriormente veremos como este ideal pedagógico, a concepção do que é a formação do homem, se alastrou não só para as cortes, mas também para toda a sociedade da época. Ela criou raízes tão profundas que se tornou praticamente impossível para os homens de épocas posteriores, mesmo para muitos sábios cristãos, sequer ter uma idéia de como havia sido a educação na época precedente em que ela havia se desvencilhado das antigas idéias pagãs e não somente se baseava quase que totalmente nos mais profundos princípios da formação humana encontrados no Cristianismo, como também levava naturalmente à compreensão destes mesmos princípios.

Estava-se, com isto, iniciando-se uma nova era para a humanidade, uma época em que os homens começariam a ser formados de modo a já desde o início poderem compreender cada vez menos o que o Evangelho tinha a dizer.

No texto de Apresentação à Página de Introdução ao Cristianismo mencionou-se o fato de como o Cristianismo pode parecer uma coisa simples para os que o abraçam com sincera boa vontade mas, à medida em que estas mesmas pessoas, em sua boa vontade, perseveram no chamado da graça e vão crescendo na caridade, chega um momento em que se deparam com a grandeza de algo que elas começam a perder de vista, como que percebendo situar-se além de tudo quanto possam imaginar. Começam a perceber a profundidade que se esconde por trás do Evangelho, da qual também São Paulo Apóstolo testemunhou na Epístola aos Coríntios, quando disse:

"Aquilo que Deus preparou
para aqueles que O amam,
nem o olho viu,
nem o ouvido escutou,
nem jamais passou pela mente humana".

I Cor. 2, 9

O Evangelho é, pois, algo tão profundo que para se intuir a realidade de sua extensão que se perde de vista é necessário, conforme ele próprio o diz, usar

"todo o nosso coração,
toda a nossa alma,
toda a nossa mente
e todas as nossas forças".

Mc. 12, 28

Ora, que acontecerá, porém, se a formação do homem, ainda que às vezes se conceda que paravelmente se ministre alguma aula de religião, passa a ser inteiramente trabalhada em toda a sua concepção fundamental e todas as suas linhas mestras para conduzir à compreensão de outros objetivos cada vez mais estranhos ao Evangelho? Este homem estará sendo, na verdade, cada vez mais educado para não ser mais capaz de compreender o Evangelho. Ele poderá dizer-se cristão, mas nada ou muito pouco será capaz de compreender daquilo para o que Cristo o chama.

Foi um processo assim que principiou a acontecer durante a Renascença, no início apenas nas cortes dos déspotas italianos. Em toda a Itália a educação das famílias dos príncipes passou para a mão dos humanistas e, diz Jacó Burckhardt, é sintomático, quanto a este fato, como

"a redação dos tratados
de educação dos príncipes,
antes trabalho dos teólogos,
passou agora para o domínio
dos humanistas".

A partir daí, acrescenta Jacó Burckhardt,

"iniciou-se uma natural aliança
entre o déspota e o humanista,
ambos os quais repousavam unicamente
sobre os seus próprios talentos".

88.

Mas, para entender melhor como se processou esta transformação, temos que analisar um pouco melhor as Instituições Oratórias de Quintiliano, o livro em que os humanistas viram como que o código da formação ideal do homem.

Quintiliano, conforme vimos, havia sido professor e advogado no Império Romano durante o século I da era cristã. Seu pai já era advogado na Espanha, terra em que Quintiliano nasceu. Ainda menino, mudou-se para Roma, juntamente com o pai, onde este passou a advogar. Desejando também ser advogado e seguindo os conselhos deixados por Cícero, o mais famoso entre os advogados e oradores romanos, dedicou-se durante a juventude aos estudos que pudessem levá-lo ao máximo de cultura geral que lhe fosse permitido em seu tempo.

Voltou mais tarde para a Espanha, provavelmente junto com o General Galba, a quem o Imperador havia nomeado governador daquela província. Quando, anos depois, o próprio Galba tornou-se Imperador, Quintiliano retornou com ele à Corte Romana.

Anos depois, já aposentado de seus deveres de advogado e professor, durante seis anos Quintiliano foi ainda preceptor dos sobrinhos do Imperador Domiciano, que se preparavam para sucedê-lo no governo do Império.

Só depois de tudo isto, já próximo do fim da vida, foi que Quintiliano redigiu os 12 Livros das Instituições Oratórias, resumo de toda a sua experiência como advogado e educador, e não sem antes ter consultado tudo quanto antes dele havia sido escrito sobre o mesmo tema na literatura grega e latina.

A originalidade e a grandeza da obra de Quintiliano se devem precisamente ao fato da mesma conter não apenas o que o autor havia acumulado em uma verdadeiramente grande experiência pessoal, mas também incorporar, de uma forma ou de outra, aquilo que de melhor o autor tinha encontrado em tudo quanto antes dele havia sido escrito sobre a arte retórica.

Estas circunstâncias permitiram ao autor, com razoável facilidade, ultrapassar as concepções pedagógicas referentes à educação retórica dos que o haviam precedido.

No início desta Terceira Parte fizemos um rápido esboço sobre a evolução da educação no mundo antigo e medieval. Tal assunto não é estranho ao tema do Cristianismo, porque é através da educação que se forma o homem e, portanto, na educação de cada povo ou civilização está embutido o que este ou aquele povo ou esta e aquela civilização realmente pensam que é o ser humano, por que ele existe e o que deve ser feito dele. Ademais, vice versa, é esta mesma educação que condiciona, em grande parte, as possibilidades acerca do que o ser humano será capaz de compreender a respeito dos problemas fundamentais sobre si mesmo, o mundo e das relações entre ele e o mundo.

Ora, é evidente que o Evangelho está diretamente relacionado com estas questões de modo que, na verdade, é imprescindível tocar neste assunto para se tentar entender o quadro dos problemas do homem moderno que motivaram a convocação dos Concílios Modernos dos séculos XIX e XX, objetivo desta Introdução Histórica.

Dissemos, neste sentido, no início desta Terceira Parte, como a civilização ocidental contemporânea proveio da fusão da civilização hebraica, grega e romana, mas seu sistema educacional é derivado da civilização grega. Na civilização grega as primeiras escolas foram as fundadas pelos filósofos; na época do apogeu da democracia ateniense porém, com os sofistas surgiu um outro tipo de escola, sob a forma de uma versão vulgar das escolas filosóficas, que ensinava a arte de bem falar em público. Estas novas escolas, que posteriormente evoluíram e se difundiram em todo o Império Romano, alguns séculos após o advento do Cristianismo, a atividade educacional passou gradualmente para os mosteiros que, seguindo as orientações de Santo Agostinho, fundiram os elementos de ambas as correntes mas cristianizando-os de tal modo que nos anos 1100 e 1200 as escolas superiores da Europa seguiam na verdade uma orientação cuja grande afinidade com o ideal filosófico era evidente. Foi com a Renascença que esta concepção de educação começou a tomar o rumo totalmente diverso que segue até os dias de hoje.

O obra de Quintiliano, que ressuscitou repentinamente nos anos 1400, insere-se neste contexto de uma maneira bastante peculiar.

Quintiliano viveu no século I da era cristã, mas não era cristão. Provavelmente apenas no fim de sua vida teria ouvido falar sobre o Cristianismo de uma maneira genérica como de uma seita secreta perseguida pelo poder imperial.

Nas Instituições Oratórias, portanto, nada há de influência cristã, e é uma obra cujo contexto pertence inteiramente ao mundo antigo tal como o Cristianismo o iria encontrar.

Ora, ocorre que uma análise mais cuidadosa destas Instituições Oratórias mostra facilmente que ela representou, neste mundo antigo, um decidido e talvez mesmo o maior esforço de aproximação que houve da educação retórica ao ideal pedagógico dos filósofos gregos.

Segundo Henri Bornesque, Quintiliano quis com a sua obra

"reagir contra o ensinamento
dos retóricos que,
esquecendo-se de formar o espírito
e o coração,
se perdem dentro da vã complicação
de suas regras.
Para Quintiliano, a prática da declamação
não é suficiente para formar
o verdadeiro orador".

Mas, conforme já vimos, com o advento do Cristianismo, gradualmente triunfou na Pedagogia uma concepção que continha tudo quanto os antigos filósofos através dela buscavam. Este processo de aproximação da educação geral administrada para a maioria dos homens para a concepção colocada pelos antigos filósofos, cujo ponto alto na antigüidade romana havia sido dado pelo próprio Quintiliano acabou, portanto, por se realizar no Cristianismo e de um modo tal que teria parecido para os mais arrojados daqueles filósofos uma perene utopia.

O grande paradoxo foi que, entretanto, enquanto no século I da era cristã, no ambiente do Império Romano, a obra de Quintiliano representava uma tentativa de aproximação da educação geralmente oferecida aos cidadãos do Império àquela de concepção mais elevada dos filósofos, na Renascença a mesma obra de Quintiliano foi usada pelos humanistas justamente para se distanciarem desta mesma concepção que havia se incorporado e desenvolvido na tradição cristã.

A obra de Quintiliano foi, assim, por um paradoxo descomunal, interpretada pelo seus maiores entusiastas do movimento renascentista em um sentido exatamente oposto ao que teve quando da época em que havia sido escrita.

Posteriormente, no fim dos anos 1500, já no fim da época renascentista, surgiu na Igreja a Companhia de Jesus.

Quando nesta época os homens em geral já não conheciam nem aceitavam nenhum outro tipo de educação a não ser a moldada pela Renascença, os jesuítas, que então surgiam, desenvolveram um sistema de educação baseado nas idéias renascentistas sobre educação e, portanto, também na obra de Quintiliano. Este sistema educacional dos jesuítas tomou corpo em um código interno à Companhia de Jesus que recebeu o nome de Ratio Studiorum. Entre os textos dos jesuítas que, durante largos anos, prepararam a Ratio Studiorum, são abundantíssimas as citações a Quintiliano, demonstrando como este autor teve, na verdade, uma influência também direta sobra a educação jesuíta que poucos anos depois viria a se transformar em um modelo para toda a Europa.

No caso dos jesuítas, porém, ao contrário dos humanistas em geral até então, o ideal de Quintiliano foi interpretado na direção original em que havia sido formulado, e o tipo de educação que os jesuítas acabaram desenvolvendo pode ser abreviadamente descrito como sendo um humanismo cristão.

O que os jesuítas fizeram foi, provavelmente, devido à situação dos homens e às circunstâncias da época, o melhor que talvez poderia ter sido feito. Organizar a educação nos padrões expostos nos Princípios Fundamentais de Pedagogia de Hugo de São Vitor teria sido talvez uma batalha perdida, mas ao mesmo tempo deve- se dizer que entre os Princípios de Hugo de São Vitor e a Ratio Studiorum dos jesuítas a diferença é descomunal. Se, por um lado, salvou-se com isto uma orientação que estava correndo o risco de se perder, ao mesmo tempo a educação em geral desceu um imenso degrau.

Iniciou-se a partir daí um longo processo de que haveremos de tratar com mais detalhe, onde entre os que pagaram a conta está o homem contemporâneo, inserido em uma gaiola ardilosamente urdida pela história, cuja complexidade supera a capacidade de compreensão da maioria dos homens mas que, ao mesmo tempo, sem que eles saibam por que, lhes tornou imensamente dificultoso abrir os olhos para a luz que o Cristo, fazendo-se homem, desejou tão ardentemente trazer ao mundo.

89.

Mesmo à custa do tamanho desta Terceira Parte, temos que fazer o próprio Quintiliano falar, através de sua obra, para podermos continuar convenientemente a nossa exposição.

Na introdução ao Livro Primeiro das Instituições Oratórias Quintiliano explica seu propósito educacional que o norteará durante a obra toda:

"Tendo abandonado
a minha atividade profissional,
consagrada durante vinte anos
na instrução da juventude,
alguns de meus amigos me pediram
que compusesse alguma coisa
sobre a arte de dizer.

Para satisfazer mais plenamente
aos pedidos de meus amigos,
tentarei,
para não ingressar
em caminhos já percorridos,
não insistir naquilo que
outros já fizeram,
porque todos aqueles
que escreveram até hoje
sobre a arte oratória
o fizeram como se estivessem
impondo a elevada mão da eloqüência
sobre pessoas já perfeitas
em todos os demais gêneros de conhecimento,
aos quais deviam dar apenas
a última polida da eloqüência.

Talvez estes autores tivessem considerado
como coisa de menos importância
todos os estudos feitos
preliminarmente à nossa arte,
ou mesmo opinaram
que tal coisa não pertencesse
ao seu ofício.

Eu, porém,
estimo que nada pode ser alheio
à arte oratória
sem o qual se torna impossível
formar o orador,
e que em nenhuma matéria é possível
alcançar a perfeição
se não iniciarmos
pelos próprios princípios.
Não me recusarei, portanto,
de descer até estes estudos
menos importantes
mas que, se negligenciados,
não é possível elevar-se aos mais altos e,
tal como se me entregassem novamente
um educando para transformá-lo
num orador,
começarei a descrever e explicar
quais devem ser seus estudos
desde a mais tenra infância".

Já nestas poucas passagens iniciais das Instituições Oratórias vemos um dos traços desta obra que impressionariam os homens da Renascença. Quintiliano não se propõe apenas a escrever um tratado sobre a arte oratória, mas um sistema educacional completo tendo como objetivo final a formação do perfeito orador.

90.

Porém, ao perseguir este seu objetivo final, Quintiliano foi mais longe. De fato, logo a seguir, na introdução do Livro I, ele continua:

"Mas o orador que desejamos assim instituir
é o orador perfeito,
que não pode existir de modo algum
se ele não for um homem bom.
Por isto exigiremos dele não apenas
uma exímia habilidade no falar,
mas também todas as demais
virtudes da alma.

De fato, não posso admitir,
como alguns fazem,
que se deixe como matéria
própria de filósofos
o estudo do que seja a vida
reta e honesta,
a sabedoria e a moral,
porque o homem verdadeiramente útil
aos seus concidadãos,
o homem verdadeiramente civilizado
e perito na administração
das coisas públicas e privadas,
capaz de retamente governar uma cidade
pelos seus conselhos,
de instituir as leis,
de corrigir a administração da justiça,
este homem, sem dúvida alguma,
não é outro senão o perfeito orador.

Assim, embora usarei nesta obra
muitas coisas que são encontradas
nos livros dos filósofos,
afirmo que,
pelo direito e pela verdade,
estas coisas pertencem ao nosso domínio
e pertencem de modo próprio
à arte oratória".

O que vemos aqui é a amplidão da perspectiva educacional de um texto que a princípio se anunciava apenas como tratando de oratória. Quintiliano declara que não deseja formar apenas o homem perito na arte de falar mas, para obter este resultado, ele quer formar também o homem bom, e nisto vemos a influência que ele recebe da educação dos filósofos, de onde ele diz que tomou emprestado quanto é necessário para a formação do homem bom, o que ele já considera como coisa sua e não mais dos filósofos.

A seguir Quintiliano critica os professores de oratória que, antes dele, não conseguiam enxergar estas coisas que ele acabava de expor:

"Ademais, conforme Cícero mostrou
já bastante abertamente,
o ofício do sábio e do orador
são tão unidos em sua natureza
e tão igualmente inseparáveis na vida prática
que o sábio não pode ser distinguido
do verdadeiro orador.
Se em algumas ocasiões,
no estudo da oratória,
se estabeleceu uma separação como esta,
isto ocorreu a partir do momento em que
a palavra se tornou
uma profissão lucrativa.
Quando as pessoas começaram a abusar
dos benefícios da eloqüência
abandonaram também com isto
o cuidado pelos costumes
e a moral foi negligenciada
por aqueles que passavam
por oradores.
Mas, assim abandonada,
a eloqüência se tornou presa
dos engenhos mais medíocres.

Na verdade,
o orador deve ser
um homem que mereça verdadeiramente
o nome de sábio,
e deve ser perfeito não apenas
em seus costumes,
como também na ciência
e em todas as formas de eloqüência".

91.

Mais adiante, no décimo quinto capítulo do Livro II, Quintiliano repete o que ele entende por arte oratória:

"Nós, que empreendemos com esta obra
a tarefa de formar um orador perfeito,
e que desejamos que em primeiro lugar
ele seja um homem bom,
devemos voltar às sentenças daqueles
que a este respeito melhor opinaram.

Alguns, de fato,
identificaram a retórica
com a própria civilidade.

Cícero afirmava que ela
é uma parte da ciência
que convém ao cidadão,
a qual ele afirma que é
a própria sabedoria.

Outros,
dentre os quais Isócrates,
dizem que é
a própria Filosofia.

Mas a definição
que mais convém àquilo que é
a própria essência da Retórica
é a de Cleantes,
segundo a qual
a Retórica é a ciência do bem dizer,
porque com ela abraçamos
todas as virtudes do discurso e,
ao mesmo tempo,
o caráter do orador,
porque o orador não pode bem falar
se não for um homem bom".

Continua o mesmo Quintiliano no Livro XII das Instituições:

"O orador que instituímos deverá ser,
portanto, aquele que foi definido
por Catão como

`o homem bom,
perito no falar',

mas em primeiro lugar,
o que Catão disse na primeira parte
desta sua definição,
a parte que é a mais importante,
isto é,

`o homem bom'.

Na verdade, não é apenas
para que alguém seja um bom orador
que deverá ser um homem bom,
mas porque não conseguiria ser um bom orador
se não for primeiro um homem bom.

A inteligência não pode se entregar
ao estudo da mais bela de todas as artes
se não estiver isenta primeiro
de todos os vícios,
em primeiro lugar porque
no mesmo peito não pode haver
o consórcio simultâneo
do que é torpe e do que é honesto.
Pensar no péssimo e no excelente
não pertence mais ao mesmo homem
do que a mesma pessoa ser ao mesmo tempo
homem bom e homem mau.

Quem não vê que a maioria dos discursos
tratam da justiça e do bem?
Seriam estas idéias desenvolvidas
com a dignidade conveniente
por um homem mau e iníquo?

Ninguém duvidará
que todo discurso tem por finalidade
apresentar o que se propõe ao juiz
como verdadeiro e honesto.
Será o homem bom ou o homem mau
que mais facilmente dará
esta persuasão?
O homem bom, evidentemente,
ele próprio dirá mais costumeiramente
coisas verdadeiras e honestas.

Ademais, para suportar a fadiga
e a duração dos estudos,
não será necessária a frugalidade?

Que esperança pode dar ao estudo
quem se entrega à luxúria
e aos prazeres?

A principal motivação
para a paixão da literatura
não será o amor pela glória?"

92.

Esta última passagem que acabamos de citar do Livro XII das Instituições de Quintiliano é muito importante.

Ela mostra o quanto o ideal educacional do autor, por mais que se aproxime da concepção dos filósofos, está ao mesmo tempo tão distante dela.

Na última frase da passagem anterior, se bem examinarmos, Quintiliano coloca o amor da glória como uma virtude, e também como

"a principal motivação"

para o estudo.

Aqui, de fato, há uma confusão feita por Quintiliano. Jamais filósofo algum procurou a sabedoria por amor à glória, mas apenas por causa dela mesma. E, entre os cristãos, é a humildade e a renúncia a si próprio, e não o amor da glória humana, que dá origem às demais virtudes.

Esta lição de Quintiliano, no entanto, foi muito apreciada pelos homens da Renascença, e vimos também no que ela resultou.

93.

No décimo capítulo do Livro I, Quintiliano afirma também que para a formação do orador é necessário que não apenas que ele conheça os preceitos da gramática e da oratória, assim como os preceitos da ciência moral e que ele próprio se torne um homem bom, mas também que se exige dele o conhecimento de todas as demais artes:

"O que eu tinha a dizer
sobre o ensino da Gramática,
que deve preceder na criança
o da Retórica,
o indiquei o mais brevemente possível,
não procurando fazer uma exposição completa,
o que não teria mais fim,
mas apontar o que é mais necessário.

Devo acrescentar também uma palavra
sobre as demais artes nas quais julgo
que devem ser instruídas as crianças
antes que passem do professor de gramática
para o professor de retórica,
para que elas possam percorrer
todo aquele círculo de conhecimentos
que os gregos denominam
de enciclopédia.

De fato, ouve-se objetar,
por parte de algumas pessoas,
de que serviria para defender uma causa
ou uma sentença diante do Senado,
saber como construir
um triângulo equilátero
sobre uma dada linha?
Ou em que ajudaria
a defender melhor um réu
ou a aconselhar melhor um governante
distinguir os sons da cítara
pelos seus nomes e intervalos?
Não é possível citar um grande número
de homens competentes no Fórum
que nunca estudaram Geometria
e que nada ouviram de música
a não ser o prazer que a melodia
oferece ao ouvido comum?

Eu respondo a isso,
em primeiro lugar,
aquilo que Cícero declara
tão freqüentemente
no seu livro escrito a Bruto:
não estamos descrevendo a formação
do orador que existe,
mas daquele tipo ideal de orador perfeito
que nada deixa a desejar.

Os que formam os sábios,
sábios que devem ser
um todo plenamente acabado e,
como eles próprios dizem,
como que deuses mortais,
não satisfeitos de os iniciarem
nas ciências divinas e humanas,
os fazem passar igualmente por várias outras,
até mesmo fúteis,
consideradas em si mesmas.
São, por exemplo,
certas sutilidades da Lógica.
Tais coisas ninguém acredita
que sejam capazes de formar
um homem sábio,
mas o fato é que o sábio por excelência
deve ser infalível
até nas mais mínimas coisas.

Da mesma forma,
o orador por excelência
deve ser um sábio.
O que o tornará assim
não é o professor de Geometria,
nem o professor de Música,
nem os demais conhecimentos
de que eu vou falar,
mas todas estas artes
o ajudarão a tornar-se perfeito".

94.

Existe, nesta outra passagem em que acabamos de citar, uma nova discrepância entre o ensino proposto por Quintiliano e o praticado entre os filósofos, embora Quintiliano julgue, por um mal entendido, que ele esteja ensinando aquilo que os filósofos designavam por sabedoria.

De fato, recolhendo as várias expressões de Quintiliano, ele diz que

"o sábio por excelência

deve ser um todo plenamente acabado,
não só iniciado nas ciências divinas
e humanas,
mas em várias outras,
até mesmo fúteis,
consideradas em si mesmo;

deve percorrer todo aquele círculo
de conhecimentos
que os gregos denominam
de enciclopédia,

e ser infalível até
nas mínimas coisas".

Quintiliano deseja, pois, que seus alunos sejam, o tanto quanto possível, uma enciclopédia, porque isto é bom para o perfeito orador. Esta foi outra lição bem assimilada pelos humanistas da Renascença, porém deve-se dizer que, embora possa parecer paradoxal para os homens de hoje, um conhecimento enciclopédico nada tem a ver com a sabedoria.

Jamais houve um só entre os filósofos que quisesse fazer de um discípulo uma enciclopédia. Os conhecimentos sobre os quais os filósofos se debruçam são, na verdade, muito amplos, mas não são, de modo algum, uma enciclopédia.

O valor dos conhecimentos que os filósofos possuíam não estava na sua quantidade, mas no fato de que eles haviam encontrado um sentido que coordenava entre si todos os conhecimentos possíveis. Um conhecimento meramente enciclopédico sem a compreensão deste sentido maior faria mais mal do que bem, não só aos filósofos como a qualquer um; seria, entretanto, mesmo assim, um excelente subsídio para o orador e, como tal, foi aceito na Renascença como coisa excelente. Muitos dos que passavam por sábios na Renascença eram verdadeiras enciclopédias; não passavam, porém, de excelentes oradores.

É importante notar isto porque hoje em dia, no final do século XX e às portas do XXI, é ainda assim que se apresenta o conhecimento para o homem contemporâneo e, no geral, esta forma de conhecimento lhe faz mais mal do que bem. Para algumas pessoas, inclusive, um excesso de conhecimento desta natureza pode inclusive causar danos irremediáveis.

Já vimos como no Livro X das Instituições Oratórias Quintiliano aconselha não apenas um estudo enciclopédico de todos os assuntos como subsídio à Oratória, mas um amplo conhecimento dos principais clássicos da poesia, da literatura, da história e da filosofia das civilizações grega e romana (cf. nº 86). É isto, ou algo semelhante atualizado para nossa época, o ideal do homem culto ainda hoje. Mas, para um sábio, isto não passaria de uma monumental desordem intelectual, às vezes tão grande que se torna definitivamente impossível de se arrumar.

A verdadeira cultura não é uma massa descomunal de informações, mas um amplo conhecimento que revela o sentido com que se ordenam as coisas dentro do universo e o homem dentro dele.

95.

Na seção décima sétima do primeiro capítulo do Livro X de sua obra, Quintiliano se refere de modo especial à necessidade da leitura dos filósofos para a formação do perfeito orador:

"A leitura dos filósofos
deve ser muito freqüentada
pelo futuro orador,
por defeito dos próprios oradores
que abandonaram a parte mais bela
de sua própria arte.

De fato, não são os filósofos estóicos
que tratam de modo especial
a respeito da justiça,
da honestidade, da utilidade,
de seus opostos,
assim como das coisas divinas
e se entregam a estes temas
nas mais vivas discussões?
Por outro lado,
não são os filósofos socráticos,
graças aos seus contínuos
questionamentos e réplicas,
capazes de formar à excelência
o futuro orador?

Porém, à leitura dos filósofos
devemos aplicar o mesmo senso crítico
que utilizamos ao tratar
da leitura dos poetas.
Devemos saber que,
mesmo que os filósofos tratem
dos mesmos assuntos que os oradores,
há uma grande diferença
entre um processo judiciário
e uma discussão filosófica,
há uma grande diferença entre o Fórum
e os eventos das preleções dos filósofos,
há uma grande diferença
entre os preceitos dos filósofos
e as causas criminais".

Na segunda seção do Livro XII, Quintiliano continua afirmando a importância que a Filosofia tem para o orador. Agora, porém, não se trata mais, como acima, da Filosofia como conhecimento geral, mas como subsídio para torná-lo homem de bem.

Entretanto, ao mesmo tempo em que Quintiliano chama a atenção do aluno para esta importância da Filosofia, o adverte para o perigo de se tornar um verdadeiro filósofo, por mais paradoxal que esta afirmação possa parecer.

Quintiliano afirma que não quer que o seu aluno se torne um filósofo "grego", mas sim, se é que seja possível existir uma coisa assim, um filósofo "romano".

Passemos às suas próprias palavras:

"Todo orador deverá ser um homem de bem,
e isto não pode acontecer
sem a aquisição da virtude.
A virtude, porém,
embora tome o seu primeiro impulso
da própria natureza,
não pode ser aperfeiçoada
senão pela doutrina.

Assim, antes de tudo o mais,
o orador deverá cultivar seus costumes
pelo estudo,
e adquirir um conhecimento perfeito
da justiça e da honestidade,
sem o qual ninguém pode ser dito
homem bom,
nem perito na arte de dizer.

Ninguém será suficientemente hábil
na arte de falar
se não conhecer a fundo a natureza
e não tiver formado seus costumes
pelos preceitos e pela razão.

Não é sem motivo que
no terceiro livro do De Oratore
Crasso sustenta que todas as considerações
a respeito da eqüidade,
da justiça, da verdade, do bem,
e de seus opostos
pertencem ao domínio próprio do orador
e que os filósofos,
quando recorrem à eloqüência
para defender tais virtudes,
se servem das armas da retórica para tanto,
e não da Filosofia.

Por outro lado,
será aos filósofos que se deverão
pedir tais conhecimentos,
sem dúvida porque
mais parece pertencer a eles
a posse dos mesmos.

É isto também
que faz dizer a Cícero,
em seus vários livros,
que a facilidade de dizer
flui das mais íntimas fontes
da sabedoria e que,
por esta razão,
já houve épocas em que
os mesmos homens eram os preceptores
da moral e da eloqüência.

Porém estas minhas exortações
não significam que o orador
deva transformar-se em um filósofo,
porque na verdade não há gênero de vida
que menos se ocupe de servir aos cidadãos
e de tudo quanto constitui
a ocupação do orador.
Quem, de fato,
entre os filósofos,
freqüenta os julgamentos do Fórum
ou adquiriu fama
pela sua arte de falar?

Quero que o orador que eu desejo formar
seja um filósofo,
mas um filósofo romano,
um homem devotado aos seus concidadãos,
que demonstre ser um homem
verdadeiramente político
pela sua experiência
e pelas suas obras".

96.

Nas seções 105 a 111 do primeiro capítulo do Livro X das Instituições, finalmente, Quintiliano mostra como, por mais que se aproxime dos filósofos, seu ideal está longe do daqueles.

Ele descreve, na pessoa de Cícero, a quem ele admira como ao perfeito exemplo de sábio e de orador, quem é aquele que ele deseja realmente formar:

"Não me recuso a comparar Cícero
com qualquer orador grego.
Não ignoro a batalha
que com isto ser-me-á levantada,
se me apontarem a Demóstenes,
entre os gregos,
como o exemplo de perfeito orador.

Julgo semelhantes as virtudes
de ambos estes homens.
Há uma certa diferença na forma:
um é mais denso,
o outro mais prolixo;
a mesma frase de um é mais trabalhada,
a do outro é mais natural.
Pode ser também que o gênio
da língua latina nos dificultou
certos efeitos que admiramos
na língua grega.

Mas devemos ceder em um ponto:
Demóstenes veio primeiro na história e,
em grande parte,
é ele que fêz de Cícero
tudo o que ele é.
Parece-me que Cícero,
entregando-se inteiramente
à imitação dos Gregos,
apropriou-se da força de Demóstenes,
da abundância de Platão,
da jucundidade de Isócrates.
Todavia não foi apenas pelo estudo
que ele conseguiu
aquilo que há de melhor em cada um dos outros.
A maioria ou até mesmo todas as suas virtudes
foi em si próprio que ele as encontrou,
na felicíssima beleza de seu gênio imortal.

Conforme diz Píndaro,
Cícero não se limitou
a reunir as águas da chuva,
mas se tornou ele próprio
uma fonte viva e exuberante.
Ele foi como um dom gerado
pela providência
para permitir que a eloqüência
ensaiasse nele
todas as suas forças.

De fato, quem mais do que Cícero
pode ensinar com mais diligência ao ouvinte,
quem pode movê-lo com mais veemência?
Quem possuiria jamais
tamanha jucundidade no falar?
As próprias coisas que ele nos estorque
somos levados a pensar que ele as pede,
e mesmo quando ele impõe
o seu ponto de vista sem justificativas,
as pessoas parecem mais segui-lo
do que ceder à sua pressão.

Mais ainda, tudo o que ele diz
respira tamanha autoridade
que nos envergonhamos de discordar,
e não parece ser produto do estudo de advogado,
mas conter a segurança da testemunha
ou a confiabilidade do juiz,
e todas estas qualidades fluem naturalmente,
sem esforço, de tal modo que jamais
nada tão lindo se ouviu,
e o discurso traz consigo
uma felicíssima facilidade.

É por isto, a título justo,
que seus contemporâneos
o proclamaram o Rei dos Tribunais,
e a posteridade lhe conferiu
não um nome de homem,
mas o da própria eloqüência.
Que o tenhamos diante dos olhos,
portanto, e ele seja para nós
como um exemplo proposto,
e saiba alguém o quanto terá progredido
quando passar a admirar verdadeiramente
a Cícero".

97.

Em rápidos traços, foi esta a formação do homem que fascinou aos homens da Renascença. Foi assim que eles desejaram se formar, e foi assim que eles passaram a aspirar que os homens se formassem.

Na concepção original de Quintiliano, ele desejava formar o homem bom. Entre os seus alunos talvez o tivesse conseguido em boa parte, mas na Renascença o mesmo método falhou de muito.

Conforme vimos, os próprios humanistas afirmavam que jamais houve tanta corrupção na história humana como entre eles e, no entanto, estava justamente entregue aos seus cuidados a educação das cortes nas quais, juntamente com os homens de letras, estava o grande foco daquela corrupção.

Como pode ter acontecido semelhante paradoxo, se esta geração se esforçou tanto para educar os homens segundo uma metodologia que, segundo Quintiliano, deveria levar à formação de

"um homem bom, perito no falar",

e sublinhava ainda que, entre estas duas coisas, o homem bom era ainda mais importante do que o perito no falar?

Este paradoxo pôde ter acontecido porque a pedagogia de Quintiliano não era um sistema autônomo de educação. Conforme vimos, ela foi uma aproximação da educação retórica à educação dos filósofos, este último sim um sistema pedagógico completo, autônomo e superior.

Isto fica claro quando se considera que, embora o homem bom fosse o objetivo principal declarado de Quintiliano, e a perícia no falar fosse o objetivo secundário, a parte central das Instituições Oratórias, isto é, a maior parte do tratado, explicita em todos os detalhes em que consistem as técnicas da arte de falar; mas, quando chegamos ao homem bom, que é algo mais importante do que a perícia no falar, Quintiliano não nos oferece em nenhuma parte do seu livro uma explicação semelhantemente elaborada do que seja um homem bom. Na verdade, ele remete a abordagem mais detalhada deste assunto aos livros dos filósofos, os quais ele mesmo reconhece que tratam do assunto como algo que pertencia aos seus domínios.

Ou seja, a educação de Quintiliano é uma educação que necessita de uma outra para que lhe explique os seus objetivos; seus objetivos não podem ser compreendidos apenas dentro de seu próprio sistema.

Por conseqüência, o professor que desejasse ser fiel às Instituições Oratórias como ideal de ensino, deveria reportar-se a uma outra cultura, para além das Instituições, como referência, para compreender-lhe o seu sentido último.

No final do século I da era cristã, na cidade de Roma, qual fosse tal cultura de referência era algo evidente para a elite romana, pois um conhecimento, ainda que superficial, dos escritos dos filósofos gregos, principalmente da corrente estóica, já era comum entre os romanos cultos. Quando Quintiliano dizia que queria formar um homem bom, e não explicava precisamente o que significava este homem bom, os romanos entendiam o que ele queria dizer com esta expressão segundo a acepção que ela tinha na filosofia grega e na dos filósofos estóicos em particular.

Na Renascença a referência óbvia para se entender o que poderia significar o homem bom não era mais a Filosofia, mas o Cristianismo. No entanto, era justamente com a tradição cristã que os humanistas estavam tentando romper; ao fazerem isto, estavam na realidade tentando romper com o único contexto em que na época era possível enquadrar a Pedagogia de Quintiliano de modo a se poder compreender o sentido final em função do qual Quintiliano propunha todo o seu sistema.

Em vez do Cristianismo, os humanistas da Renascença buscaram como referência de fundo para as Instituições Oratórias a literatura pagã em geral, da qual Quintiliano, no Livro X das Instituições, fêz um numeroso elenco e comentário.

Quintiliano, porém, não havia elaborado este longo elenco como uma referência para o objetivo final de sua pedagogia. Esta referência final ele diz explicitamente que está nos tratados dos filósofos gregos. A lista das obras da antigüidade pagã do Livro X são para ele apenas modelos de arte oratória ou elementos de cultura geral necessários ao orador para poder falar e escrever bem. Considerada a obra toda, a pedagogia de Quintiliano aponta para um padrão superior ao de sua época.

Para os humanistas, porém, as referências da literatura antiga não foram tomadas neste sentido técnico que Quintiliano quis dar, e sim como o modelo que a humanidade deveria imitar. Enquanto Quintiliano tentava na realidade elevar-se acima do antigo paganismo, os renascentistas tentaram ressuscitar este antigo paganismo em toda a sua inteireza. Admiraram nos antigos justamente aqueles traços marcantes que provinham de seu egoísmo que não conhecia problemas de consciência, de seu orgulho pessoal desmedidamente cultivado, de seu amore à glória e de sua sede de prazeres; e, enquanto admiravam ilimitadamente estas características do paganismo, desprezaram abertamente no Cristianismo as características opostas. Aquilo que nos séculos imediatamente passados era considerado uma abominação, agora era louvado em todo lugar pelos homens mais cultos.

98.

Tudo isto fica mais claro quando vemos a descrição que Jacó Burckhardt faz do humanista da Renascença. Não é possível que fosse isto o que Quintiliano entendia como sendo o homem bom que ele desejava formar.

Conforme vimos, J. Burckhardt diz que a educação das cortes ficou totalmente a cargo dos humanistas, em boa parte porque eles encontraram as cortes como um lugar natural para eles. Mesmo os mais insignificantes déspotas da Romanha, diz Burckhardt, não podiam dispensar um ou dois homens de letras em suas cortes.

Por que? Porque além da educação dos príncipes, continua Burckhardt, havia dois motivos para a presença dos humanistas nas cortes, a correspondência do Estado, isto é, todo o trabalho de secretariado dos negócios do déspota renascentista, e os discursos em ocasiões públicas e solenes. Não apenas o secretariado exigia um latinista competente, mas inversamente, apenas o humanista, naquela época, tinha a competência, o conhecimento e a habilidade necessárias para ser o secretário do déspota. Desta maneira, os maiores homens no campo dos estudos durante os anos 1400 devotaram grande parte de suas vidas no serviço do Estado.

Para o déspota, a posição social do humanista era completamente indiferente. O que se desejava era o mais pleno talento humanista cultivado. Apesar disso, porém, continua Burckhardt, os humanistas não formavam uma classe, tinham um sentido mínimo de seus interesses comuns, e não tinham o mínimo respeito entre eles próprios.

Todos os meios possíveis eram cogitados para se derrubarem uns aos outros. Das discussões literárias eles passavam com uma estonteante rapidez para os piores vitupérios. Não satisfeitos em refutar, eles passavam a anular o oponente. O resultado é que, na prática, a vida do humanista se tornava uma guerra contínua.

A carreira do humanista era, ademais, de regra, de tal tipo que apenas os temperamentos mais fortes poderiam passar por ela.

O primeiro perigo vinha, em alguns casos, dos próprios pais, que desejavam transformar uma criança precoce em um milagre de erudição, tendo em vista sua futura posição em uma classe que então estava chegando ao auge. O jovem humanista era então mergulhado em uma vida de excitamentos e de vicissitudes, na qual se sucediam estudos exaustivos, tutorados, secretariados, professorados, ofícios diversos em casas de príncipes, inimizades mortais e perigos, luxúria e mendigagem, admirações ilimitadas assim como desprezos ilimitados confusamente seguidos uns aos outros, nos quais a cultura mais sólida era freqüentemente posta de lado por uma superficial falta de pudor.

Mas o pior de tudo era que a posição do humanista era quase incompatível com uma residência fixa, ou porque ele próprio era obrigado a fazer freqüentes mudanças de residência para poder sobreviver, ou porque o seu próprio temperamento se alterava com o tempo de tal forma que não conseguia mais viver feliz em um mesmo lugar durante muito tempo. Ele simplesmente se cansava das pessoas e não podia mais ter paz entre as inimizades que ele próprio criava e cultivava, enquanto que as pessoas, por seu lado, estavam a exigir dele sempre alguma coisa nova. Acrescente-se a isto o efeito mortal de uma vida de excessiva licenciosidade, tão geral que, ainda que o humanista se comportasse de um modo diferente, sempre era o pior que se pensava dele, e uma total indiferença quanto às leis morais tais como reconhecidas pelos outros.

Homens assim dificilmente poderiam ser concebidos sem um orgulho desordenado. Na verdade, eles necessitavam deste orgulho ainda que fosse apenas para manterem suas cabeças acima do nível da água, e eram confirmados nele pela admiração que, alternada com o ódio, havia no tratamento que recebiam do mundo que os rodeava. Eles foram os mais marcantes exemplos e vítimas de uma desenfreada subjetividade.

O historiador Geraldo, contemporâneo dos humanistas, continua Burckhardt, levantou contra eles uma série de graves acusações. Entre elas estão a cólera, a vaidade, a obstinação, a auto adoração, a vida privada dissoluta, imoralidades de todos os tipos, heresia, ateísmo, o hábito de falar sem convicção, influências sinistras nos governos, ausência de gratidão para com os mestres, adulação dos poderosos, os quais primeiro lhes davam uma amostra de seus favores para depois deixá-los na miséria.

Tudo isto que acabamos de citar é a descrição que existe na obra de J. Burckhardt do caráter geral dos humanistas da Renascença. Tais foram os primeiros frutos da educação dita humanista.

99.

Foi assim, pois, que nasceu a pedagogia humanista.

Num dado momento, vinha a notícia de que alguém, financiado por algum duque ou príncipe, havia descoberto certo número de manuscritos antigos do mundo romano. Pouco tempo depois, de outro lugar vinha outro anúncio de que outra pessoa, financiada por algum outro príncipe ou duque, havia descoberto em determinado local outro número de manuscritos antigos do mundo grego. Em sua maioria tais manuscritos não eram obras de ciência nem de filosofia, mas de literatura, em prosa ou poesia, ou relatos históricos. Todos eles chamavam a atenção pela sua perfeição estética no uso da linguagem grega e latina, perfeição que não existia mais entre os estudiosos da época e da Idade Média anterior. De todos os cantos surgiam, durante a Renascença, notícias de descobertas de mais e mais destes textos antigos.

Onde estavam escondidos tantos manuscritos antigos? Que expedições milionárias, que métodos sofisticados foram utilizados para descobrí-los?

A sensação que tais descobertas produziram faria o estudioso moderno pensar, em um primeiro momento, em expedições caríssimas explorando locais inacessíveis com escavações demoradas, enfrentando mil perigos vindos de toda a parte, em aventuras emocionantes cujos relatos hoje poderiam ser transformados em longas metragens campeões de bilheteria.

No entanto nenhuma destas descobertas teve em sua origem emoções semelhantes às que acabamos de supor. O humanista simplesmente visitava um mosteiro qualquer, onde era sempre bem acolhido, e pedia para ver os livros da biblioteca. Ali, no meio de outros tantos livros, encontrava estes textos misturados com outras obras, em algum canto geralmente pouco usado pelos monges. A partir daí o humanista se transformava em um herói, como se aquele livro que ele havia copiado e que empunhava vitorioso diante de seus colegas humanistas tivesse desaparecido há séculos e só tivesse sido recuperado graças a esforços comparáveis aos de um Hércules.

Este sentimento, no entanto, não correspondia à realidade. O que ele havia descoberto não era o manuscrito original que havia sido redigido pelo próprio punho de Cícero ou de Quintiliano. Nas circunstâncias da época, um manuscrito original desta natureza, datado de quinze séculos ou mais, dificilissimamente poderia-se ter conservado. Seria algo fisicamente quase impossível. Ao que sabemos, existe apenas um único caso de um manuscrito original anterior à era cristã que se tenha conservado até hoje; são os manuscritos do Mar Morto, descobertos apenas em 1947. Se aqueles textos da antigüidade que os humanistas foram descobrindo nas bibliotecas dos mosteiros se tinham conservado é porque tais textos haviam sido copiados e recopiados muitas vezes pelos monges ao longo da história. De fato, todos eles haviam sido copiados e recopiados com uma certa metodicidade pelos monges até pouco antes do advento da Peste Negra, quando esta epidemia desorganizou completamente a disciplina dos mosteiros. Com o declínio dos estudos e da disciplina monástica, todos estes manuscritos ficaram relegados a um canto das bibliotecas e davam a falsa impressão de que estavam abandonados desde a antigüidade romana.

Por que então os monges nunca fizeram alarde de toda esta vasta literatura antiga que haviam tão diligentemente guardado e copiado desde épocas imemoriais? A resposta é simplesmente porque quase não davam importância a estes textos. Eram usados apenas para aprender a ler e a escrever, e para aprender alguns rudimentos de retórica. Se para mais do que isso não valiam, para que chamar tão estrepitosamente a atenção do mundo para eles? Embora eles demonstrassem um belíssimo domínio da língua latina, o valor de seu conteúdo era considerado pequeno; o que verdadeiramente era importante para os professores e estudantes anteriores à Peste Negra era outro tipo de literatura. Os clássicos da antigüidade que fascinariam os renascentistas eram, até pouco tempo antes, considerados apenas como literatura de conteúdo de importância muito secundária para merecerem maiores atenções.

Foi então que o que havia sido durante séculos considerado como um refugo passou a parecer aos humanistas que fosse o supra sumo da cultura, e foi com base nesta literatura que eles reconstruíram a cultura do homem nos anos 1400 e 1500. A perfeição do Latim de Cícero, o ápice da perfeição artística da língua latina, pareceu-lhe também o ápice da cultura humana.

Já o Latim de Santo Tomás de Aquino e dos demais escolásticos era um Latim verdadeiramente simplório; em sua época quanto mais profundo fosse um autor geralmente tanto mais simplório era o Latim de que se utilizava. Sua linguagem não possuía nenhum rebuscamento. Entre os filósofos gregos já havia aparecido em parte esta tendência; o maior entre os filósofos gregos, Aristóteles, foi justamente aquele que se utilizou da língua grega em sua forma mais simples.

Esta simplicidade de linguagem curiosamente reforçou entre os renascentistas a idéia de que a Idade Média havia sido a Idade das Trevas. Desprezando o conteúdo das obras escritas anteriormente, estes homens julgaram que apenas uma cultura inferior poderia ter-se expressado em uma linguagem que lhes parecia tão bárbara.

100.

Assim, o tipo de formação que era dada aos homens na época de Hugo de São Vitor e de Santo Tomás de Aquino passou a ser desprezado por um segundo motivo.

O primeiro, já o vimos, surgiu devido ao nominalismo.

O nominalismo, que se alastrou progressivamente pelas universidades de toda a Europa enquanto o Renascimento tomava conta do norte da Itália, tendia a separar a fé da razão e a afirmar que todo o conhecimento com que os escolásticos se esforçavam para elevar a inteligência humana a uma maior compreensão das verdades da fé não poderia possuir valor algum. Os nominalistas também consideravam como impossível à inteligência humana alcançar a evidência de muitas outras verdades de natureza mais abstrata, mas que os escolásticos insistiam não serem propriamente verdades de fé; embora fossem mencionadas nos textos revelados das Sagradas Escrituras, diziam os escolásticos, isto era apenas um auxílio à fraqueza do intelecto do homem comum, pois tais verdades poderiam ter suas evidências manifestadas por um trabalho mais diligente do intelecto. Como os nominalistas, porém, não davam qualquer valor às supostas evidências dos escolásticos, aceitavam tais verdades mas catalogando-as entre as verdades de fé sobre as quais qualquer trabalho da inteligência seria inútil. As verdades de fé, segundo os nominalistas, tinham que ser aceitas apenas porque Deus havia assim estabelecido, e era este o motivo pelo qual elas eram verdades, e não qualquer valor objetivo que elas pudessem ter. Neste sentido, o esforço da inteligência humana em compreendê-las ou em aportar-lhes alguma luz não podia passar de uma ilusão; tal esforço, de fato, pressupunha que haveria razões objetivas para que tais coisas fossem verdadeiras, o que, segundo os nominalistas, não era o que ocorria. Com isto, porém, toda a profundidade contida nos escritos dos sábios que haviam surgido na Igreja, um tesouro tanto do pensamento como da espiritualidade, já de mais nada valia. Na realidade, conforme vimos, era a própria decadência do ensino que fazia com que os homens influenciados pelo nominalismo não mais conseguissem alcançar o que os sábios que os haviam precedido tinham dito.

Logo em seguida, porém, surgiu a segunda grande motivação histórica para o desprezo da Escolástica. Uma motivação esta, tão inacreditável, objetivamente falando, que só se pode compreender tendo em vista as circunstâncias da época. Os escolásticos não sabiam nem ler nem escrever, diziam não já os nominalistas, mas os humanistas da Renascença. Os escolásticos desrespeitam as leis da gramática, desrespeitam a arte de bem dizer, não obedecem aos preceitos mais elementares da retórica. Quem poderá aprender a falar Latim em um estilo elevado como o de Cícero estudando as obras de Santo Tomás de Aquino? Ninguém, e é verdade, e o próprio Santo Tomás parece nunca ter-se preocupado com isto. Sua linguagem, em sua estética, tem a simplicidade de uma criança. Seu valor probativo reside inteiramente no conteúdo. Já os que se esforçam por imitar a Cícero causarão uma profunda admiração entre os seus ouvintes, não pelo valor do argumento, é certo, mas pela beleza da Retórica.