III/I



117.

Antes de encerrarmos a Terceira Parte desta Introdução Histórica, temos que falar alguma coisa sobre o pontificado do Papa Nicolau V, que governou a Igreja por volta do ano 1450 DC, e dos de alguns de seus sucessores.

Foi devido em grande parte à obra de Nicolau V que, a partir de 1450 aproximadamente, o centro do movimento renascentista passou do norte da Itália para a cidade de Roma.

118.

Deve-se considerar que a parte principal do Renascimento vai do ano 1350 DC até 1550 DC, aproximadamente.

A primeira metade dos anos 1300, isto é, de 1300 aproximadamente até 1350 são como que uma preparação ao movimento. De 1300 até 1450 o movimento se desenrolou basicamente no norte da Itália. De 1450 até 1550 o Renascimento continuou no norte da Itália, mas o principal impulso ao movimento proveio da cidade de Roma que se agregou ao mesmo.

Para entendermos como isto veio a ocorrer, devemos considerar antes o que estava acontecendo com a cidade de Roma nos anos 1300 até 1450, período em que se desenvolvia o Renascimento no norte.

119.

Conforme vimos na Segunda Parte, logo no início dos anos 1300 a Cúria Romana, devido às maquinações de Filipe o Belo, rei da França, mudou-se de Roma para a cidade de Avinhão, na França, onde permaneceu durante 70 anos.

Após estes 70 anos de exílio na França, quando os Papa retornaram para Roma, uma parte dos cardeais elegeu um segundo papa em Avinhão e a Igreja se viu dividida entre dois Papas, dos quais para muitos não estava claro, à época, qual seria o verdadeiro. Esta situação durou mais outros quarenta anos, até que o Concílio de Constança pôde eleger como pontífice ao Papa Martinho V.

Após o Concílio de Constança, que reconstituíu a unidade da Igreja, subiram ao trono de Pedro além de Martinho V, eleito Papa pelo próprio Concílio, o franciscano Eugênio IV e, em 1447, Nicolau V, sob cujo pontificado ocorreu o deslocamento do centro do movimento renascentista para a cidade de Roma.

120.

Durante aqueles setenta anos de exílio na França, que se iniciaram praticamente no ano 1300, a cidade de Roma havia permanecido quase ao abandono.

Enquanto neste mesmo período as cidades no norte da Itália prosperavam pelo comércio e pela independência de fato que gozavam dentro do Império Germânico a que nominalmente pertenciam, e com isto se criava o clima político propício ao advento da Renascença, na cidade de Roma ocorreu o processo inverso.

Roma não era um centro comercial. Na verdade, desde as invasões dos bárbaros que provocaram a queda do Império Romano, havia perdido o seu antigo esplendor e era, de fato, uma cidade pobre. Na época do Império Romano haviam sido construídos aquedutos que levavam água para todos os bairros da cidade; com a invasão dos bárbaros estes aquedutos foram destruídos e nunca mais reconstruídos. Durante a Idade Média a população da maioria dos bairros de Roma tinha que ir buscar pessoalmente a sua água para uso doméstico no rio Tibre.

A monumental Basílica de São Pedro, atualmente a maior igreja do mundo, não existia em 1450. No seu lugar havia um templo bem mais modesto que o Imperador Constantino havia construído, mais de um milênio antes, nos anos 300 DC, sobre o túmulo de São Pedro, que já ameaçava desabar. As catedrais da maioria das cidades do norte da Itália em 1450 eram muito mais imponentes do que qualquer igreja de Roma.

De que vivia a cidade de Roma durante a Idade Média? Não era, conforme vimos, um centro comercial, nem mesmo durante os 150 primeiros anos do Renascimento. Sua Agricultura era insignificante. Roma vivia, em pequena parte, da criação de gado e de ovelhas, e principalmente das rendas da Igreja, cuja sede ela hospedava.

Mas quando, no início dos anos 1300, a Cúria Pontifícia se transferiu durante setenta anos para a França, a cidade perdeu sua principal entrada de recursos e iniciou um caminho não só para uma maior pobreza como também para a desordem política.

Duas famílias, os Colonna e os Orsini, durante os setenta anos do exílio papal na França e os quarenta do Cisma que se seguiu apoderaram-se do controle da política romana. Em volta de Roma, os governantes dos territórios que pertenciam aos Estados Pontifícios, nominalmente vigários dos Papas, de fato se tornaram novos senhores feudais com poderes ditatoriais, em uma época em que o feudalismo desaparecia da Europa. Em volta de Roma o banditismo apoderou-se das estradas acabando com o pouco comércio que ainda lá existia.

Quando em 1417 e em território alemão o Concílio de Constança elegeu como Papa a Martinho V, não obstante ser ele um romano da família dos Colonna, durante três anos não conseguiu entrar na cidade de Roma devido à falta de segurança nas estradas. Até 1420 teve que governar a Igreja desde Gênova e Florença.

Em 1420, quando conseguiu finalmente entrar em Roma,

"as condições da cidade,
a dilapidação dos prédios
e o próprio povo
o deixaram chocado.
A capital do Cristianismo
era uma das menos civilizadas
cidades da Europa",

diz o historiador Will Durant. O Papa, ademais, não possuía exército próprio e, para poder gozar de um mínimo de segurança em uma cidade nestas condições, teve que designar para os cargos chaves da administração pessoas de sua própria família, os Colonna.

O Papa Eugênio IV, franciscano, sucessor de Martinho V, julgando que seu predecessor houvesse transferido muita propriedade da Igreja para a família dos Colonna, chegou a ordenar que uma parte fosse restituída. O resultado foi um levante popular em que o Papa Eugênio, sem ter nenhum lugar seguro para refugiar-se, viu-se obrigado a fugir de Roma através do rio Tibre em um simples bote acossado não por algum formidável exército armado de canhões, mas apenas por uma multidão armada de paus e pedras. E, antes de poder voltar para Roma, teve que governar a Igreja durante nove anos desde a cidade de Florença.

121.

As coisas estavam deste modo quando em 1447 foi eleito Papa o cardeal arcebispo de Bolonha, Tomás Parentucelli, que tomou o nome de Nicolau V.

122.

Tomás era filho de um médico bom e competente mas que, apesar disto, viveu na pobreza e, ademais, morreu cedo deixando o jovem Tomás órfão.

Mais tarde Tomás iniciou seus estudos na Universidade de Bolonha, mas por falta de recursos foi obrigado a interrompê-los. Conseguiu um emprego de preceptor junto a uma família nobre em Florença e, dois anos depois, já havia juntado dinheiro suficiente para continuar seus estudos interrompidos em Bolonha e formar-se em Teologia.

O futuro Nicolau V, naqueles dois anos que passou em Florença como preceptor, pôde tomar contato com os expoentes do movimento renascentista e ele próprio tornou-se um humanista, embora conservando a fé e a pureza de vida de um cristão.

Três anos depois de formar-se em Teologia foi ordenado sacerdote e o arcebispo de Bolonha, Nicolau Albergati, o convidou para ser seu secretário particular.

Dom Albergati, o arcebispo de Bolonha, era uma alma santa, que havia pertencido à rígida ordem de vida contemplativa dos Cartuxos. Tomás foi seu fiel amigo e secretário durante mais de vinte anos. Neste período o arcebispo de Bolonha tornou-se Cardeal e o Papa Eugênio IV teve que refugiar-se durante nove anos na cidade próxima de Florença. A presença do Cardeal Albergati de Bolonha era constante em Florença e, por conseguinte, também a do seu secretário Tomás. Toda noite, após o serviço, Tomás se reunia com a nata dos humanistas em Florença ou era visto junto aos livreiros florentinos, para onde ia todo o dinheiro que ele possuía de próprio.

Após a morte de Dom Nicolau Albergati o Papa Eugênio IV escolheu ao próprio Tomás como a pessoa mais digna para sucedê-lo.

Depois disto os acontecimento se seguiram rapidamente. Em menos de três anos Tomás se tornou primeiro arcebispo de Bolonha, depois Cardeal e, quando todos e ele próprio menos esperavam, foi elevado ao trono pontifício. Como Papa, escolheu o nome de Nicolau V pela admiração que ele tinha pelo santo arcebispo de quem havia sido secretário durante tantos anos.

123.

Tomás foi descrito pelo historiador Pastor como um homem

"franco, reto, sincero,
inimigo de qualquer fingimento
e adulação".

"Ao contrário da majestade e do silêncio
de seu predecessor,
Tomás gostava de falar bastante
e ignorava todas as regras
do cerimonial pontifício".

"Era muito versado em Teologia,
nas Sagradas Escrituras,
e nos Santos Padres.
Desde a sua juventude
gastava seu dinheiro
quase que exclusivamente com livros".

"Para com os pobres era dotado
de uma ilimitada liberalidade.
Para com os judeus,
embora procurasse convertê-los,
defendia abertamente em todo lugar
a tolerância religiosa".

"A lembrança constante
de sua humilde condição de origem
fêz com que levasse uma vida simples
até os seus últimos dias.
Mesmo como Papa
sua mesa era servida
como nos seus primeiros dias
de sacerdote
e não tomava vinho senão
misturado com muita água".

Ao contrário da maioria dos humanistas,

"Tomás era verdadeiro
e intimamente humilde.
Todos os seus contemporâneos atestam
que a modéstia constituía
uma das principais virtudes
deste Pontífice afável
até o ponto de comover as pessoas".

124.

Com a eleição do Cardeal Tomás para o trono pontifício a Igreja pressentiu que estava para se abrir uma nova época em sua história.

E, de fato, não se enganou.

Nicolau V resolveu empreender uma reforma completa na arquitetura da cidade de Roma pois, do modo ao que a cidade estava reduzida, as pessoas dos Papas continuariam a ser um joguete perpétuo nas mãos de reis, famílias influentes e mesmo do povo.

Ele mesmo explicou claramente várias vezes os motivos que o levaram a empreender este trabalho, que iria se estender durante vários pontificados além do seu.

"A autoridade da Igreja de Roma",

disse Nicolau V,

"somente pode ser plenamente reconhecida
por aqueles que se dedicam
a estudos profundos
sobre a sua origem e o seu incremento".

O povo humilde porém, tende a compreender apenas aquilo que vê, e era-lhe muito difícil entender esta autoridade em uma cidade em sua época reduzida a escombros.

Com base nestas premissas, Nicolau V chamou os melhores artistas e arquitetos de sua época e projetou uma reconstrução completa da cidade de Roma e a construção de uma nova Basílica sobre o túmulo de São Pedro que, no estilo grandioso do Renascimento, viesse a se tornar a maior igreja do mundo.

"Não foi por ambição,
nem por desejo de glória
ou de afirmar nosso nome
que iniciamos todas estas construções",

disse Nicolau V aos cardeais em seu leito de morte, exortando-os a seguirem pelo caminho já iniciado,

"mas para incremento da autoridade
da Sé Apostólica,
e para que no futuro os Papas
não fossem mais caçados,
aprisionados, cercados ou oprimidos
de muitas outras maneiras".

A estas palavras de Nicolau V o historiador Pastor acrescentou a seguinte observação:

"Um homem que por testemunhos unânimes
era um inimigo declarado
de toda hipocrisia e fingimento
não poderia ter dito uma falsidade
justamente no seu leito de morte".

125.

Mas o pontificado de Nicolau V marcou época não apenas pela reconstrução da cidade de Roma.

Antes de ser Papa ela havia sido um humanista. Ele percebeu com isto, e percebeu melhor do que ninguém, os perigos que os desvios do movimento renascentista abriam para a Igreja e para os homens.

Ao subir ao trono de Pedro tomou, como Papa, uma atitude diante do Renascimento que levou até às últimas conseqüências. Foi uma atitude ao mesmo tempo muito corajosa e muito perigosa, mas que talvez na época fosse a única coisa que poderia ter sido feita com esperança de êxito.

Nicolau V decidiu que a própria Igreja deveria colocar-se à frente do movimento renascentista e canalizá-lo para uma finalidade cristã.

Ele chamou nada menos do que todos os humanistas que lhe foi possível chamar do norte da Itália para a cidade de Roma, para trabalharem com ele e sob o seu patrocínio. Todos os sábios da Itália se dirigiram para Roma no tempo de Nicolau V, disse um historiador da época, uma parte por iniciativa própria, outra parte chamada pelo Papa que desejava vê-los trabalhando em Roma. Mesmo para aqueles que vieram sem terem sido convidados o Papa providenciou trabalho regiamente recompensado. Apesar da evidente integridade moral do Papa, este passava por cima de muitíssimas coisas na vida destes humanistas que a outros cristãos deveriam constituir-se em motivo para seríssimas desconfianças, como se estivesse simplesmente fechando os olhos para os perigos que os humanistas da Renascença poderiam trazer à Igreja. Na verdade o que ocorria era que Nicolau V tentava com isto aproximá-los e endereçar estes homens por outros caminhos, homens que, mesmo sem a ajuda do Papa, já eram por si sós pessoas influentes na sociedade da época.

Assim, além do projeto de construção da maior Basílica do mundo, Nicolau V concebeu, com a assessoria dos humanistas que afluíam para Roma, organizar também a maior biblioteca do mundo.

Enviou emissários à busca de manuscritos em todos os lugares do mundo que lhe fossem acessíveis, por mais distantes que fossem. Enviou homens à Grécia, à Inglaterra e à fronteira norte oriental do Império Germânico.

Quando aos sábios que haviam permanecido em Roma, empregou-os em sua maior parte na tradução dos clássicos gregos, aos quais pagava com uma liberalidade maior do que a de qualquer outro governante da época.

Nicolau V, no dizer de L. Pastor, derramou uma verdadeira chuva de ouro sobre os eruditos, com a intenção declarada de traduzir toda a literatura da Grécia antiga. Mas, juntamente com os textos da literatura pagã, recuperaram- se através deste imenso esforço as obras completas de Santo Agostinho, grande parte dos escritos dos Santos Padres do Oriente e do Ocidente, e os manuscritos mais antigos das Sagradas Escrituras que o mundo moderno conheceu até à descoberta casual, em 1947, dos manuscritos das cavernas do Mar Morto.

Estes manuscritos, adquiridos no mundo inteiro da época, eram traduzidos, corrigidos e multiplicados na cidade de Roma por uma legião de eruditos, num esforço que deu origem à Biblioteca Vaticana que existe até os dias de hoje, uma biblioteca que, nos planos de Nicolau V, deveria ser pública e acessível a todos os homens de saber de qualquer proveniência.

126.

Mas, considerando-se o estado de profunda decadência material em que a sede da Igreja havia mergulhado àquela época, cabe perguntar onde Nicolau V pensou que encontraria o dinheiro que seria necessário gastar para realizar empreendimentos deste porte.

Nicolau V havia sido eleito no final de 1447. Aproximava- se, portanto, o ano santo de 1450. Ele acreditava piamente que, com as visitas dos peregrinos à cidade de Roma, encontraria os fundos necessários à execução de tudo quanto ele havia planejado.

Era provavelmente uma perspectiva piedosamente exagerada por parte de um Papa que tinha uma propensão natural ao otimismo e a considerar mais o lado bom do que os aspectos negativos dos homens. Mas o fato foi que, dois anos mais tarde, em 1450, o ano santo rendeu muitíssimo mais do que as mais otimistas expectativas deste Papa.

A História registra que durante o ano santo de 1450 a afluência dos peregrinos a Roma foi de uma magnitude totalmente sem precedentes, sem explicações aparentes para tanto. Os testemunhos oculares da época compararam o afluxo de peregrinos a uma multidão imensa de formigas. A quantidade de pessoas em Roma era tão grande que a Santa Sé viu-se obrigada a promulgar sucessivos decretos restringindo o tempo de permanência dos peregrinos na cidade. Inicialmente foi proibida uma estadia superior a cinco dias. Posteriormente verificou-se que cinco dias deveria ser considerado um tempo excessivo; Nicolau V foi obrigado a promulgar outro decreto proibindo a permanência dos peregrinos em Roma por mais de três dias. Algum tempo depois, este tempo teve que ser reduzido ainda para apenas dois dias. A quantidade de dinheiro que assim tão espontaneamente afluía para Roma era tão grande que nas cidades do norte da Itália começou-se a fazer sentir a falta de moeda circulante em ouro. Pouco depois começaram a chover protestos dos governantes italianos no sentido de que todo o dinheiro da Itália estava escoando para Roma. Posteriormente reclamações semelhantes começaram a vir também dos países situados no restante da Europa, para além dos Alpes.

Nem sempre, porém, a celebração do ano santo havia sido algo tão entusiástico como neste ano de 1450.

O primeiro ano santo havia sido decretado pelo Papa Bonifácio VIII em 1300 como um jubileu religioso a ser comemorado em Roma a cada cinqüenta anos.

Em 1350, mesmo com a Cúria estabelecida na França, foi celebrado em Roma o segundo ano santo. Foi a caminho de Roma, para a celebração deste ano santo, que Petrarca fêz amizade com Bocaccio em Florença, amizade que mais tarde viria a detonar o interesse da Renascença pela literatura grega.

Não temos notícia se, durante o Cisma, em 1400, tenha havido esta celebração, mas o fato é que, em 1500, durante o Pontificado do Papa Alexandre VI, a Igreja estava novamente em dificuldades financeiras. Sendo estas dificuldades muito menores do que as do tempo do Papa Nicolau V, e estando a cidade de Roma já em condições consideravelmente melhores para a hospedagem dos peregrinos, todos estavam na expectativa de que talvez viesse a repetir-se o milagre de 1450. Nada disso, porém, veio a acontecer. As doações dos peregrinos foram uma verdadeira decepção. A Igreja logo entendeu que desta vez teria que buscar socorro financeiro em outro lugar.

127.

Foi assim que Nicolau V conseguiu reunir recursos para, em questão de pouquíssimos anos, não apenas empreender a reforma da cidade de Roma, um empreendimento que se estenderia pelos pontificados seguintes, como também para levantar uma biblioteca, a futura Biblioteca Vaticana, contendo três mil livros, número hoje em dia muitíssimo pequeno, mas que na época superava todas as maiores bibliotecas do mundo.

Na verdade, o catálogo oficial da Biblioteca declarava que havia naquela época aproximadamente mil e duzentos livros. Mas um testemunho do Papa Pio II, o segundo sucessor de Nicolau V, um homem que tinha um interesse por livros semelhante ao de Nicolau V e que provavelmente deve ter freqüentado a Biblioteca Vaticana já naquela época, garante que havia em torno de três mil livros.

Mesmo, porém, com 1200 livros, a Biblioteca Vaticana já com isso era a maior do mundo. Em 1450 só havia duas bibliotecas na Itália que possuíam quase mil livros. Uma delas pertencia a um particular na cidade de Florença, e continha 800 volumes. A outra estava instalada em um castelo nas proximidades de Milão pertencente à família Visconti, os governantes do ducado de Milão, a qual continha 988 volumes.

Todas as demais bibliotecas da Itália da época continham menos de trezentos volumes. Na biblioteca da família dos Médici, os governantes de Florença, homens ricos e patrocinadores da cultura, havia, em 1450, apenas 158 livros.

128.

Estes números podem parecer surpreendentes, até mesmo chocantes, para um homem do século XX.

Será possível que então seria esta a tremenda revolução cultural de que tanto se fala ter sido produzida na época do Renascimento? Algumas poucas centenas de livros? Hoje em dia três mil livros podem ser encontrados em uma biblioteca de um grupo escolar da periferia de uma cidade de terceiro mundo considerada em estado de abandono. Cento e cinqüenta e oito livros podem ser encontrados em algum saco abandonado em uma calçada esperando pela passagem da coleta noturna de lixo. Muitas pessoas que não se interessam pelo estudo possuem 158 livros em suas casas. Não é incomum que um professor universitário possua em seu escritório particular três mil ou mesmo mais livros, e em qualquer Universidade poderão ser encontrados à disposição dos alunos um número astronomicamente maior de livros do que esta insignificante quantidade. E nem por isso fala-se de qualquer forma de revolução cultural. Muito pelo contrário, o que se fala é da decadência do ensino e na pouca leitura dos homens de hoje.

129.

Na realidade, para entender este paradoxo, é necessário fazer um esforço para reportarmo-nos à situação dos anos 1450. Este número tão baixo de livros explica, dentre outras coisas, porque o Renascimento até 1450 praticamente não se difundiu para fora da Itália.

O que acontecia é que em 1450 não existia ainda a imprensa, e todos os livros tinham que ser copiados à mão.

Já citamos anteriormente que Poggio Bracciolini declarou haver gasto 53 dias de trabalho para fazer uma cópia das Instituições Oratórias de Quintiliano, uma obra que tem aproximadamente o tamanho de um Novo Testamento. Daqui pode-se deduzir que, para obter uma única cópia completa da Bíblia requeria-se, naquele tempo, quase um ano de trabalho. É claro que, em uma situação como esta, a multiplicação dos livros seria muito difícil.

Esta imensa dificuldade para se multiplicarem os livros tinha uma outra conseqüência muito difícil de ser avaliada pelos homens de hoje. Por causa dela, em 1450, as pessoas que desejassem estudar estavam em uma dependência quase total dos professores, que geralmente também eram as únicas pessoas que possuíam os livros sobre os assuntos que ensinavam e, mesmo assim, os possuíam não para vender, mas para consultar ou serem copiados à mão. Desta maneira, se alguém, em algum país da Europa, fosse tocado pela febre da Renascença e desejasse tornar-se um humanista, teria que se dirigir primeiro à Itália para, junto dos humanistas italianos, ser admitido às suas amizades e passar com eles longos anos. Se retornasse ao seu país de origem somente poderia levar consigo, como material escrito, uma parcela muito pequena do que tivesse aprendido.

É evidente que em um contexto como este dificilmente a Renascença se espalharia para fora da Itália.

130.

Ora, ocorreu então que em 1454, justamente no auge do movimento renascentista italiano, bem além dos Alpes, em território alemão, Gutemberg inventou a imprensa. Seu primeiro livro editado foi a Bíblia, mas logo em seguida a nova invenção passou a ser utilizada principalmente para a difusão dos livros que propagavam as idéias renascentistas.

Assim, aos poucos, mas em um crescendo sempre maior, o que foi se difundindo pela Europa através da imprensa não foram principalmente as Sagradas Escrituras com que Gutemberg inaugurou o seu invento, nem a Filosofia Grega, nem o ideal cristão, mas o espírito do humanismo renascentista.

Dificilmente poderia ter sido encontrada uma hora mais inoportuna para a imprensa ter sido inventada. Tivesse ela sido inventada antes, dois séculos antes de 1450, ou então depois, dois séculos depois de 1450, e a história da humanidade talvez tivesse seguido rumos completamente diferentes.

Se a imprensa tivesse sido inventada dois séculos antes, isto é, em 1250, época em que haviam acabado de falecer homens como São Bernardo, Hugo de São Vitor, São Francisco de Assis, São Domingos, Santo Antônio de Lisboa, e em que viviam São Boaventura e Santo Tomás de Aquino, o Renascimento não teria surgido e a humanidade teria evoluído segundo uma concepção de vida totalmente diversa da que temos hoje.

Se a imprensa tivesse sido inventada dois séculos depois, isto é, em 1650, certamente não nos é possível conjecturar o que ela teria difundido ao ter surgido. Mas é quase certo que, sem o auxílio da imprensa, em duzentos anos o espírito renascentista teria se apagado na Itália por si só e dado lugar a alguma outra coisa que não necessariamente o que teria sido o seu desdobramento lógico.

131.

A decisão do Papa Nicolau V de colocar a Santa Sé à frente do movimento renascentista expunha a Igreja a perigos de uma magnitude evidente.

Pretender que a Santa Sé liderasse um movimento tão desencaminhado como o Renascimento era um empreendimento perigoso em que seria muitíssimo difícil prever de antemão todos os desdobramentos. Poderia acontecer que a Igreja redirecionasse o movimento dentro de um espírito cristão, mas também poderia acontecer que o movimento renascentista tivesse influências negativas na vida da Igreja. Conforme veremos, de fato a Igreja teve que pagar caro por muitas conseqüências que advieram de uma decisão tão arrojada.

Esta fora do propósito desta Introdução Histórica julgar se esta foi ou não uma decisão acertada. Mas é importante frisar que os riscos que daí podiam advir possuíam uma certa proporcionalidade com as verdadeiras dimensões do problema, que foram avaliadas por Nicolau V com uma perspicácia para a qual o homem do século XX não tem grande sensibilidade.

O Renascimento diferiu muito de outros movimentos históricos por estar relacionado não apenas com a ambição do poder político ou da riqueza, mas por ter iniciado um redirecionamento da história da sociedade humana nos cinco séculos que se seguiram envolvido profundamente e de uma maneira particularmente complexa com o problema da formação do homem e do desejo e da busca que ele possui pelo conhecimento.

O Renascimento não foi indiferente para com esta disposição humana, nem procurou sufocá-la. Ao contrário, estimulou-a com renovado vigor. Havia, porém, uma diferença importantíssima entre como o Renascimento fazia isto e como isto havia sido feito em outras ocasiões ao longo da história.

Em graus e planos diferentes a Filosofia Grega, o Cristianismo e até, de um modo muito mais rudimentar, o paganismo greco romano, toda a história, enfim, da civilização ocidental, tinham, até então, canalizado esta disposição humana para uma mesma direção geral.

Com o Renascimento, porém, e talvez pela primeira vez na História, a sociedade humana estava desviando o impulso da busca do homem pelo conhecimento para uma direção completamente diversa.

Ora, ocorre que no homem o desejo do conhecimento não é mais um simples instinto, como o desejo sexual, ou uma vã ilusão, como a ambição pelo poder ou pela riqueza, nem mesmo o mais forte de todos os instintos, mas é como que a própria natureza do homem.

O homem já não busca o conhecimento como por uma qualidade ou por um instinto que lhe foi acrescentado, mas por sua própria essência.

Segundo Aristóteles, no início da Metafísica, tal como comentada por Santo Tomás de Aquino,

"todo homem por natureza deseja conhecer,
existe naturalmente em todo homem
o desejo de conhecer,
pois qualquer coisa apetece
naturalmente à sua perfeição,
assim como a matéria apetece à forma.
Ora, se o intelecto está em potência
para com o conhecimento,
então todo homem deseja o conhecimento
da mesma maneira como a matéria
apetece à forma.

Ademais, qualquer coisa apresenta inclinação
à sua própria operação.
Mas a operação própria do homem
enquanto homem
é inteligir,
porque é por isto que ele difere
de todos os demais animais.
Portanto, todo homem é naturalmente
inclinada a inteligir e,
portanto, a conhecer.

É nisto",

diz Aristóteles,

"que está a felicidade última do homem.

Todo homem, portanto,
aspira naturalmente ao conhecimento,
e não impede esta conclusão
o fato de vermos que muitos
ou a maioria dos homens
não se aplicam à sua busca,
pois também vemos freqüentemente
que aqueles que desejam algum fim
são impedidos de prosseguirem
até aquele fim por alguma causa.

Assim, ainda que todos os homens
desejem naturalmente o conhecimento,
todavia não são todos
os que se aplicam à sua busca,
por serem detidos por outras causas,
como os prazeres,
as necessidades da vida presente
e até pela preguiça que evita o trabalho
que esta busca implica".

Não sem razão o homem do século XX poderia comparar o desejo e a busca do conhecimento nesta doutrina de Aristóteles à força nuclear, a maior das forças da natureza, presente no núcleo de todos os átomos e, portanto, em todos os corpos, mas ao mesmo tempo impedida de se manifestar em sua verdadeira magnitude exceto no interior das estrelas, nos reatores nucleares e nas bombas atômicas.

132.

Esta doutrina de Aristóteles, segundo a qual é no conhecimento que consiste a felicidade última do homem, está, ademais, de acordo com a doutrina de Cristo o qual, conforme narra o Evangelho de São João, levantando os olhos ao céu e dirigindo-se ao Pai, diz:

"É nisto que consiste a vida eterna,
que te conheçam a ti,
único e verdadeiro Deus,
e àquele a quem enviaste,
Jesus Cristo".

Jo. 17, 3

133.

Esta doutrina de Aristóteles está também de acordo com uma resposta de Santo Tomás de Aquino a uma Questão Quodlibetal.

Este termo, que vem do latim Quodlibet e que significa "qualquer que seja", origina-se de um exercício das universidades medievais em que um mestre era colocado diante de muitos alunos e estes poderiam fazer-lhe uma pergunta qualquer que fosse diante da qual o mestre deveria responde-lhes logo em seguida com coerência, qualquer que fosse a pergunta, e esclarecer todas as objeções.

Ora, aconteceu certo dia um fato cujo texto original não temos diante de nós e que portanto não transcreveremos com as mesmas palavras. Em um destes exercícios um aluno se levanta e pergunta a Tomás de Aquino:

"Mestre,
o que é mais forte
sobre o homem,

o rei,
a verdade,
o vinho
ou as mulheres?"

Uma pergunta aparentemente absurda, desconexa, onde os termos da questão nenhuma relação parecem ter uns para com os outros.

Bem diversa, porém, deve ter sido a reação de Tomás à pergunta que lhe havia sido formulada, a julgar pelo que a história nos reporta sobre a sua pessoa. Em sua habitual simplicidade, Tomás deve ter sido fulminado pelo alcance com que lhe pareceu ter sido formulada a questão.

"É preciso primeiramente",

respondeu Tomás,

"fazer algumas distinções.

De fato, observamos que no homem
existem diversas potências.

Consideremos, em primeiro,
a potência concupiscível.
Ela está relacionada com o desejo venéreo.
Sobre ela, enquanto tal,
age a mulher.
Segundo um determinado aspecto, portanto,
do ponto de vista da potência concupiscível,
a mulher é a maior força
que existe sobre o homem.

Consideremos, em segundo,
a potência irascível,
relacionada com o temor da morte.
Sobre ela, enquanto tal,
age o rei,
através de seus exércitos.
Segundo um determinado aspecto, portanto,
do ponto de vista da potência irascível,
o rei é a maior força
que existe sobre o homem.

Consideremos, em terceiro,
a imaginação.
Sobre ela age, enquanto tal,
o vinho,
pelo seu efeito embriagante.
Segundo um determinado aspecto, portanto,
do ponto de vista da imaginação,
o vinho é a maior força
que existe sobre o homem.

Consideremos, em quarto,
a potência intelectiva,
cujo bem, enquanto tal,
é a verdade.
Segundo este determinado aspecto,
portanto,
do ponto de vista da potência intelectiva,
a verdade é a maior força
que existe sobre o homem.

Considerando, porém,
que o homem é um animal racional,
em que, portanto,
todas as potências estão naturalmente ordenadas
a uma submissão à inteligência,
deve-se dizer que,
não sob um determinado aspecto,
mas simplesmente falando,
é a verdade a maior força
que existe sobre o homem".

134.

É importante notar que esta concepção é bastante diversa daquela que os homens de hoje estão comumente dispostos a admitir. Os homens do século XX são propensos a acreditar que as maiores forças que atuam sobre o homem, aquelas que o movem e que movem a história, são as forças econômicas.

Em grande parte isto é decorrência de uma falta de intimidade com a verdade. Os homens do século XX não conseguem em geral distinguir entre as informações comumente veiculadas pelos homens e a verdade, como se não houvesse algo situado em um plano mais alto além daquele em que comumente os homens intercambiam suas idéias sobre o qual estas idéias precisariam apoiar-se para poderem ser verdadeiras e dali haurirem a sua força.

Faltando-lhes esta intimidade com a verdade que lhes faria conhecer do que ele á capaz, os homens acreditam sem dificuldade que o principal motor da história são as forças econômicas. Não distingüindo entre verdade e ideologias que os homens continuamente elaboram em um ritmo cada vez mais alucinante para os mais diversos fins, julgam que todas estas têm a sua época e a sua utilidade dependendo da oportunidade e do lugar, e que a força das idéias provém delas estarem em sintonia com a direção das forças econômicas. Teriam sido elaboradas, em última análise, por pessoas que tiveram a perspicácia de perceber melhor do que outras as circunstâncias do momento. Nada possuem de perene ou atemporal, todas elas perdem com o tempo a sua utilidade e são facilmente desatualizadas por outras que tomam o seu lugar.

É fácil, porém, perceber que uma concepção como esta está em flagrante contradição com os pressupostos do Cristianismo. Cristo pouco se importou com forças econômicas. Quando ele prometeu a liberdade aos homens, prometeu-a justamente através da verdade dizendo, no Evangelho de São João, a alguns que nele haviam crido, que

"Se permanecerdes nas minhas palavras,
sereis verdadeiramente meus discípulos;
conhecereis a verdade,
e a verdade vos tornará livres".

Jo. 8, 31

Quando, mais tarde, Cristo enviou os Apóstolos a todas as nações do mundo, decisão da qual resultou a divisão da História em dois períodos, antes e depois de Cristo, não lhes pediu para que assumissem o controle das forças econômicas. Ao contrário, limitou-se apenas a dizer:

"Ide, pois,
e ensinai a todas as gentes
tudo aquilo
que vos mandei",

Mt. 28, 19-20

e nisto, simplesmente nisto, somado à presença de Cristo garantida à Igreja nesta mesma passagem até o fim dos séculos, consistiu toda a força do Cristianismo.

Se for permitido à história de nossa civilização um desenrolar mais extenso, o tempo se encarregará de tornar evidente qual é, de fato, a maior força capaz de agir sobre o homem.

135.

Apesar de um ou outro evento menos feliz, o pontificado de Nicolau V foi para a Igreja um tempo de paz. Nada do que havia para se temer no seu envolvimento com o Renascimento chegou a se concretizar.

Um fato eloqüente ocorrido no início do pontificado de Nicolau V ilustra muito bem o espírito que tomou conta da Igreja naqueles anos.

Durante o pontificado de Eugênio IV, o antecessor de Nicolau, um grupo de prelados franceses havia se reunido em Basiléia com a intenção, no dizer de um deles, de

"arrancar a Sé Apostólica dos italianos
ou espoliá-la de tal modo
que não mais viesse a importar
onde fosse a sua sede".

Este grupo decretou a deposição do Papa Eugênio IV e elegeu um novo falso Papa, que tomou o nome de Félix V. Estes fatos coincidiram com a revolta em Roma da família Colonna, que se sentiu prejudicada por Eugênio IV.

Assim, enquanto Eugênio IV fugia em um bote pelo rio Tibre em direção a Florença por causa da revolta popular organizada pela família Colonna em Roma, um outro grupo de soldados milaneses marchavam também para Roma, a mando dos prelados franceses reunidos em Basiléia, com ordens de capturá-lo.

Foi em vão que Eugênio IV, a salvo e governando a Igreja desde Florença e, nove anos depois, já de volta a Roma, admoestou ao falso Papa Félix V que não reabrisse o Cisma que a sua atitude renovava dentro da Igreja.

Morre então Eugênio IV, sobe ao trono pontifício Nicolau V.

Qual não foi a surpresa geral quando subitamente Felix V foi visto dirigir-se espontaneamente para Roma, reconciliar-se com Nicolau V e pedir-lhe humildemente perdão pelo Cisma que havia iniciado. Diante do Papa verdadeiro, ele próprio reconhecia jamais ter sido Papa.

Fatos como este revelam na verdade o prestígio que a Santa Sé tinha e que crescia em toda a parte. A afluência incomum de peregrinos ao Ano Santo de 1450, após a reconciliação de Felix V, foi também em boa parte um notável testemunho do carisma de que era dotado o Papa Nicolau V.

Deste Pontífice Will Durant faz o seguinte balanço final de seu governo:

"Restaurou a paz dentro da Igreja;
restaurou a ordem e o esplendor de Roma;
fundou a maior de todas as bibliotecas;
reconciliou a Igreja e a Renascença;
manteve as suas mãos inocentes de toda a guerra;
evitou o nepotismo;
esforçou-se por extingüir na Itália
as guerras suicidas;
em meio a rendimentos monetários sem precedentes,
conduziu uma vida simples;
amou a Igreja e os livros;
foi apenas um pouco extravagante
nas doações que fazia".

"Um cronista da época
não fêz mais do que expressar
o sentimento de todos os italianos
quando descreveu o Papa
como um homem sábio,
justo, benévolo, gracioso,
pacífico. afetuoso, caridoso,
humilde e revestido de todas as virtudes".