OS PRESSUPOSTOS DO
APRENDIZADO

- Quarta Parte -




37.

A contemplação nas Sagradas Escrituras.

Acabamos de afirmar que existe uma operação da inteligência, à qual chamamos de contemplação, que produz efeitos visíveis no homem, transformando aquele que se familiariza com ela num exemplo vivo de sabedoria, efeito que se torna perceptível aos demais homens, parecendo-lhes como se se houvesse personificado uma sabedoria superior. Na medida em que, o mais das vezes, esta operação não se alcança sem o auxílio da graça, e sua manifestação mais plena não se alcança nunca sem a graça, estes são aqueles dos quais Jesus afirma que

"serão chamados filhos de Deus",

Mt. 5, 9

dos quais Santo Tomás de Aquino também diz que

"participam da semelhança
do Filho de Deus unigênito,
os quais Deus na sua presciência
predestinou para serem conformes
à imagem de seu Filho (Rom. 8, 29),
o qual é a Sabedoria gerada".

Summa Theologiae
IIa IIae, Q. a.

A Sagrada Escritura atesta a existência de uma operação da inteligência capaz de produzir tais efeitos no homem. Às vezes não nos damos conta deste fato porque no mundo latino esta realidade veio a ser conhecida pelo nome de contemplação, um termo que reflete uma concepção derivada da tradição grega pela qual tenta-se descrever esta operação da alma por meio de uma analogia com a faculdade da visão:

"Por ela chegamos
às próprias fronteiras do inteligível",

diz o filósofo grego Platão;

"embora sendo unicamente do intelecto,
é imitada pela faculdade da vista
ao procurar contemplar os animais,
as estrelas e o próprio Sol".

República, L. VII

Por causa de nos termos acostumado a este nome sem nem sempre conhecer bem a realidade à qual ele se refere, não nos damos conta do número imenso de vezes em que as Escrituras nos descrevem esta mesma realidade por meio de uma analogia com a faculdade do ouvir.

De fato, é muito freqüente no Velho Testamento que as exortações de Moisés e os oráculos dos profetas se iniciem com um pedido para que os homens as ouçam. Uma leitura menos atenta dará a impressão que com estas palavras os profetas estão apenas fazendo uma chamada para reunir o povo, nada que em si pudesse ter um valor maior do que uma interjeição mais elaborada. Outras vezes parecerá que o pedido de que os homens ouçam estas exortações significa uma maneira mais delicada de dizer que as obedeçam; segundo esta interpretação, ao pedir aos homens que as ouvissem, os profetas queriam dizer que as obedecessem, só indiretamente estando eles interessados em que fossem ouvidas, na medida em que para obedecê-las os homens deveriam primeiro tomar conhecimento dos seus conteúdos. Efetivamente, em algumas passagens esta é a interpretação correta, mas em uma grande multidão de outras a extrema freqüência com que aparecem estas expressões, como se estivessem querendo chamar a nossa atenção também para o próprio ato do ouvir, e o contexto em que são usadas, nos mostram que estes pedidos para que ouçamos, mais do que simples interjeições ou expressões sinônimas para significarem a obediência, designam, na realidade, um verdadeiro chamado à contemplação descrita por analogia com o ouvir e tendo o ouvir como seu ponto de partida.

Vejamos alguns exemplos destas expressões:

"Se ouvirdes atentamente a minha voz,
e guardardes a minha aliança,
diz o Senhor,
constituireis para mim um reino de sacerdotes,
e uma nação santa".

Ex. 19, 5-6

"Ouvi a palavra do Senhor,
ó príncipes;
escuta a lei de nosso Deus,
ó povo".

Is. 1, 10

"Aplicai os ouvidos,
diz o Senhor,
e ouvi a minha voz;
atendei e ouvi as minhas palavras".

Is. 28, 23

"Eis que (naquele dia)
um rei, (isto é, o Messias),
reinará com justiça,
e os seus príncipes governarão com retidão.
Não se ofuscarão os olhos dos que vêem,
e os ouvidos dos que ouvem
escutarão atentamente".

Is. 32, 1-3

"Vinde cá, ó nação, e ouvi;
povos, estai atentos;
ouça a terra, e o que ela contém;
o mundo, e tudo o que ele produz".

Is. 34, 1

"Farei vir sobre este povo
o que eles temiam,
diz o Senhor,
porque eu chamei,
e não houve quem me respondesse;
falei, e não me deram ouvidos,
e fizeram o mal diante de meus olhos,
e escolheram o que eu não queria".

Is. 66, 4

"A quem falarei eu?",

diz Jeremias.

"A quem conjurarei que me ouça?
Os seus ouvidos estão incircuncidados,
e não podem ouvir;
a palavra do Senhor tornou-se para eles
um motivos opróbrio,
e não a receberão".

Jer. 6, 10

"Isto diz o Senhor:
o dia em que eu tirei os vossos pais
da terra do Egito,
não lhes mandei coisa alguma
acerca dos holocaustos.
Eis o que eu lhes mandei:
ouvi a minha voz,
e eu serei vosso Deus,
e vós sereis meu povo,
e andai por todo o caminho
que vos prescrevi,
para serdes felizes.
E não me ouviram,
nem prestaram atenção,
mas foram atrás de seus apetites
e a depravação de seu malvado coração.
E eu vos enviei todos os meus servos e os profetas,
cada dia me apressava a enviá-los;
e não me ouviram,
nem prestaram atenção,
mas endureceram a sua cerviz,
e obraram pior do que os seus pais.
E tu também, Jeremias,
lhes dirás todas estas palavras,
e não te ouvirão;
e chama-los-ás,
e não te responderão".

Jer. 7, 22-27

"Ouvi a minha voz,
e fazei todas as coisas que eu vos mando,
e sereis o meu povo,
e eu serei o vosso Deus,
para que eu renove o juramento
que fiz a vossos pai
de lhes dar uma terra
que manasse leite e mel.
Ouvi as palavras desta aliança e observai-as,
porque eu conjurei com instância os vossos pais
desde o dia em que os tirei da terra do Egito
até hoje,
admoestando-os,
e dizendo-lhes continuamente:
ouvi a minha voz.
E não ouviram,
nem prestaram ouvidos,
mas cada um seguiu a depravação
de seu coração maligno".

Jer. 11, 4-8

Nestas exortações podemos entrever que o ouvir de que falam os profetas é uma atividade do espírito à qual o homem deveria-se dedicar constantemente para que, deste modo, desviasse o pêndulo que inclina a sua atenção para a "depravação de seu maligno coração", isto é, a atividade de sua imaginação movida pelos vícios e pelas paixões dos sentidos, para uma outra região da alma, de onde pode-se ouvir a palavra de Deus. De fato, pergunta Jeremias:

"Quem considerou
a palavra do Senhor
e a ouviu?"

Jer. 23, 18

Se o tivessem feito, responde o profeta, Deus

"certamente os teria desviado
de seu mau caminho
e de seus tão depravados pensamentos".

Jer. 23, 22

Porém, continua Jeremias,

"Este povo é um povo perversíssimo,
porque não quer ouvir as palavras do Senhor;
em vez disso anda",

(ou poderia dizer "ouve",
ou ainda,
"está constantemente com a atenção
voltada para a")

"maldade do seu coração".

Jer. 13, 10

Deus quer, portanto, através destas exortações, acostumar-nos a ouvir a sua palavra para com isto desacostumar-nos a ouvir nossos próprios pensamentos, que não são, na maior parte das vezes, verdadeiros pensamentos, isto é, expressões da faculdade da inteligência que se caracteriza pela apreensão da verdade, mas simples movimentos da imaginação, prolongamentos muito pouco conscientes da atividade dos cinco sentidos, impulsionados sem cessar pelas paixões sensíveis. É isto o que Deus nos quer também ensinar, quando, através de Isaías, assim nos exorta:

"Deixe o homem iníquo
os seus pensamentos,
e volte-se para o Senhor,
(inclinando o seu ouvido),
o qual terá piedade dele,
porque os meus pensamentos
não são os vossos pensamentos,
diz o Senhor.
Tanto quanto os céus estão elevados
acima da terra,
assim se acham elevados
os meus pensamentos
acima dos vossos pensamentos,
diz o Senhor".

Is. 55, 7-9

Conforme veremos melhor mais adiante, Isaías está exortando os homens para que abandonem os seus pensamentos através do "voltar-se para o Senhor", o que, no contexto deste capítulo 55, significa "inclinando-lhe os ouvidos" (Is. 55, 3).

O Deuteronômio parece, em certas passagens, utilizar- se de expressões diversas para designar estas mesmas realidades. A atividade que Isaías descreve no capítulo 55 de sua profecia pelo "inclinar dos ouvidos" parece às vezes descrita por Moisés no Deuteronômio pelo termo "meditação", a mesma expressão que Hugo de São Vitor utiliza para designar a atividade que precede a contemplação. Conforme veremos, porém, a meditação de que fala o Deuteronômio não é a mesma realidade que os profetas muitas vezes expressam pelo "inclinar dos ouvidos"; o contexto do Velho Testamento é tal que subentende-se que o meditar do Deuteronômio é um meditar que conduz espontaneamente a um ouvir. A passagem mais conhecida onde ocorre esta expressão é aquela onde se preceitua o mandamento do amor a Deus:

"Ouve, Israel",

diz Moisés ao povo judeu,

"estas palavras que eu hoje vos intimo
estarão gravadas no teu coração.
Tu as ensinarás aos teus filhos,
e as meditarás sentado em tua casa,
e andando pelo caminho,
e estando no leito
e ao levantar-te".

Deut. 6, 6-7

Encontramos no Salmo 118 a voz de alguém que cumpria com esta exortação de Moisés:

"Quanto eu amo a vossa lei,
Senhor.
Ela é objeto de minhas meditações
o dia todo.
Mais sábio do que os meus inimigos
me tornou o teu mandamento,
porque ele está sempre comigo.
Sou mais prudente
do que todos os meus mestres,
porque os teus mandamentos
são a minha meditação.
Quão doces são as tuas palavras
ao meu paladar!
São mais doces do que o mel
à minha boca".

Salmo 118, 97-9/103

Ora, esta atitude preceituada por Moisés e descrita pelo salmista conduz à contemplação de que falam os profetas. Ela nos é descrita, por exemplo, quando Isaías faz uma profecia a respeito do Messias que haveria de vir, dizendo que ele teria uma língua erudita para ensinar porque todas as manhãs ouviria o Senhor como a um mestre:

"O Senhor me deu
uma língua erudita",

diz o futuro Messias por meio de Isaías,

"para eu saber sustentar com a palavra
o que está cansado.
Ele me chama pela manhã,
pela manhã chama aos meus ouvidos
para que eu o ouça como a um mestre.
O Senhor Deus abriu-me o ouvido,
e eu não o contradigo;
não me retirei para trás".

Is. 50, 4-5

Esta mesma atitude que haveria de ser encontrada em toda a sua perfeição no Messias é encontrada também no profeta Jeremias, que diz aí ter encontrado o seu alimento, e apresenta este fato diante de Deus como prova de seu amor para com Ele:

"Tu sabes tudo, Senhor",

diz Jeremias dirigindo-se a Deus,

"lembra-te de mim e visita-me,
e defende-me dos que me perseguem,
pois é por amor de ti
que tenho sofrido afrontas.
Achei a tua palavra,
e alimentei-me com ela;
e a tua palavra foi para mim
o prazer e a alegria do meu coração".

Jer. 15, 15-16

Neste mesmo sentido, depois de quarenta dias de jejum, quando foi tentado pelo demônio no deserto para que transformasse algumas pedras em pão, Jesus respondeu-lhe dizendo que não precisava disto, pois seu alimento consistia em bem outra coisa. Citando Moisés, e à semelhança de Jeremias, Jesus responde ao demônio dizendo:

"Não só de pão vive o homem,
mas de toda a palavra
que sai da boca de Deus".

Mt. 4, 4

Com isto cumpria-se a profecia de Is. 50. Porém, é igualmente de grande interesse saber a respeito da proveniência desta citação que Jesus faz de Moisés. Ela está em Deuteronômio 8, onde Moisés pede ao povo judeu que não se esqueça de que Deus havia libertado o povo do Egito, símbolo da escravidão, por conseqüência símbolo dos vícios e do pecado, para passar quarenta anos no deserto antes de entrar na terra prometida, alimentando-se durante estes longos anos unicamente do maná que descia diariamente do céu,

"para te mostrar",

diz Moisés,

"que o homem não vive só de pão,
mas de toda a palavra que sai
da boca de Deus".

Deut. 8, 3

O maná com que Deus alimentava os judeus no deserto antes de entrarem na terra prometida era, deste modo, uma figura da própria palavra de Deus, com que o Senhor quer que nos alimentemos. O deserto é, por sua vez, a figura do silêncio interior com que Deus quer que deixemos de escutar e inclinar nossa atenção aos nossos próprios pensamentos e às paixões da nossa alma, para poder passar a nos alimentar de sua palavra, conforme nos diz o Eclesiastes:

"As palavras dos sábios
são ouvidas em silêncio,
mais do que o clamor do príncipe
entre os insensatos".

Ec. 9, 17

Esta é, por sua vez, a mesma atitude que Jesus elogiou em Maria, irmã de Marta, a qual, sentada aos pés de Jesus, ouvia-lhe as suas palavras. É de se notar nesta passagem que, ao contrário do que muitos supõem por inadvertência, o Evangelho não diz que Maria estava rezando aos pés de Jesus, mas apenas que o ouvia. No entanto, mesmo assim, Jesus a elogia e diz dela que

"uma só coisa é necessária,
e Maria escolheu a melhor parte,
que não lhe será tirada".

Lc. 10, 41-2

Ao elogiar Maria dizendo que ela havia escolhido a melhor parte, Jesus reconhece e elogia em Maria aquilo mesmo que o profeta Isaías havia visto realizar-se no próprio Jesus, quando diz que toda manhã Ele "ouviria o Senhor como a um mestre". Como se estivesse entrevendo as muitas Marias que haveria na história, Isaías também se pergunta, logo a seguir:

"E qual de vós teme o Senhor,
qual de vós ouve a voz do seu Servo?"

Is. 50, 10

Vemos assim que Jesus e Jeremias dizem de si mesmos que se alimentavam da palavra de Deus. A mesma coisa também o diz Isaías, convidando a todos os homens a que façam o mesmo, isto é, que abandonem os seus próprios pensamentos, inclinem o seu ouvido e se alimentem da palavra de Deus, a qual ele compara com um manjar substancioso. Pode-se notar, no capítulo 55 de sua profecia, que ao chamar os homens, ele os está exortando fundamentalmente ao ouvir a Deus com atenção:

"Todos vós que tendes sede",

diz o Senhor por meio de Isaías,

"vinde às águas;
e os que não tendes dinheiro,
apressai-vos,
comprai e comei;
vinde,
comprai sem dinheiro
e sem nenhuma troca,
vinho e leite.
Por que motivo empregais o dinheiro
em coisas que não são alimento,
e o vosso trabalho
no que não pode saciar-vos?
Ouvi-me com atenção,
e comei do bom alimento,
e a vossa alma se deleitará
com manjares substanciosos.
Inclinai o vosso ouvido
e vinde a mim;
ouvi,
e a vossa alma viverá,
e farei convosco um pacto eterno,
concedendo-vos as misericórdias
que prometi a Davi".

Is. 55, 1-3

Nesta passagem Isaías nos indica o modo pelo qual é possível ao homem abandonar seus próprios pensamentos, que não são pensamentos. O homem pode fazer isto passando a uma forma de pensamento mais elevada, à qual Isaías chama de "inclinar o ouvido". Inclinando o ouvido, Isaías pede ao homem que abandone seus próprios pensamentos e se volte para o Senhor.

Vemos esta mesma doutrina ser ensinada pelo próprio Deus ao profeta Jeremias quando este pediu que o Senhor se lembrasse dele, pois o profeta havia achado sua palavra e se alimentado com ela. Deus então lhe responde:

"Se te converteres,
eu te converterei,
e estarás diante de minha face.
Se afastares o precioso do vil,
serás como a minha boca,
e voltar-se-ão eles para ti
e não tu para eles".

Jer. 15, 19

"Se te converteres", ou "se te voltares para Deus", significa aqui o mesmo que o "inclinar o ouvido" do profeta Isaías ou o "alimentar-se da palavra de Deus" de que havia acabado de falar Jeremias; esta atitude é já uma predisposição para que Deus nos dê a sua graça, designada pela expressão "e eu te converterei", a qual, com a perseverança, acaba produzindo a presença de Deus ("estarás diante de minha face"). Isto se inicia, diz o Senhor a Jeremias, quando pelo esforço do homem, não sem o auxílio da graça, este "afasta o precioso do vil", isto é, volta a sua atenção para a escuta da palavra de Deus, que é o precioso, e abandona a atenção aos seus próprios pensamentos, que é o vil.

Qual é, porém, o efeito que isto causa na alma do homem? São os mesmos, afirma Isaías, que os que anteriormente afirmamos serem produzidos pela contemplação. Diz, efetivamente, a continuação da profecia contida em Is. 55:

"Porque assim como desce do céu
a chuva e a neve,
e não voltam mais para lá,
mas embebem a terra,
e fecundam a terra,
e fecundam-na e fazem-na germinar,
a fim de que dê semente ao que semeia
e pão ao que come,
assim será a minha palavra
que sair da minha boca,
diz o Senhor;
não tornará para mim vazia,
mas fará tudo o que eu quero,
e produzirá os efeitos para os quais a enviei".

Is. 55, 10-11

A mesma coisa o afirma Jeremias, quando, através dele, Deus mostra um critério para distinguir a verdadeira palavra de Deus:

"Se um profeta disser
que tem a minha palavra",

diz o Senhor por meio de Jeremias,

"anuncie a minha palavra
com toda a verdade",
(e veremos a diferença entre ela
e uma palavra qualquer).

"Que diferença há
entre a palha e o trigo?, diz o Senhor.
Não são as minhas palavras como um fogo,
diz o Senhor,
e como um martelo que quebra a pedra?"

"Qual, porém, destes profetas,
assistiu verdadeiramente
ao conselho do Senhor,
viu e ouviu a sua palavra?
Quem considerou a sua palavra
e a ouviu?
Se tivessem assistido ao meu conselho
eu os teria certamente desviado
do seu mau caminho
e dos seus tão depravados pensamentos".

Jer. 23, 28-29/18/22

A mesma coisas também o ensina o Eclesiastes, ao dizer que as palavras dos sábios provém na verdade de um único pastor que é Deus, que elas produzem um efeito na alma diverso do que as palavras contidas em todos os outros livros e que é a estas que devemos prestar atenção:

"As palavras dos sábios",

diz o Eclesiastes,

"são como aguilhões,
e como pregos afixados no alto,
que por meio do conselho dos mestres
nos foram comunicadas
por um único Pastor.
Não busques, pois,
meu filho,
mais coisa alguma além destas.
Não se põe termo
em multiplicar os livros,
e a meditação freqüente
é a aflição da carne".

Ec. 12, 11-12

Note-se que estas palavras aparecem no Eclesiastes pouco depois dele ter afirmado, conforme vimos, que as mesmas palavras dos sábios devem ser ouvidas em silêncio, isto é, no silêncio produzido pela contemplação, em que aprendemos, pela escuta da palavra de Deus, a não mais dar ouvidos às nossas paixões e aos pensamentos que delas derivam.

Todas estas passagens mostram que pertence aos ensinamentos das Sagradas Escrituras a afirmação de que existe uma operação da alma, relacionada com o ouvir a palavra de Deus, que é autêntico alimento para a alma e que produz notáveis efeitos de transformação na mesma.

Esta operação da alma, dizem as Escrituras, floresceria entre os homens com o advento do messias, cuja obra foi prefigurada no retorno dos exilados judeus, espalhados por todas as nações da terra, assim como hoje os homens estão espalhados por todas as paixões da carne, à terra santa de Israel, com a conseqüente reconstrução de Jerusalém. "Naquele tempo reunir-se-ão todas as nações em Jerusalém em nome do Senhor, e não andarão mais após a maldade de seu péssimo coração", diz Jeremias, atribuindo a esta época um efeito que em todo o seu livro ele atribui claramente à contemplação entendida sob as expressões da escuta da palavra de Deus (Jer. 3, 17). É o mesmo que afirma Isaías ter ouvido Deus pedir-lhe, quando lhe ordenou que preparasse o retorno dos exilados:

"Ouvi uma voz que me dizia",

diz Isaías,

"`Clama'.
E eu disse:
`Que hei de clamar?'
`Clama que toda a carne é feno,
e que toda a sua glória é como a flor do campo.
Secou-se o feno,
e caíu a flor,
mas a palavra de nosso Senhor
permanece para sempre'".

Is. 40, 6-8

Que significa Isaías ser chamado a preparar a vinda do messias clamando ao povo que tudo passa, que as coisas do mundo secam como o feno e caem como a flor e só a palavra de Deus permanece? Não há dúvida que é o mesmo que Jesus ensinaria pessoalmente, ao dizer a Maria que somente havia uma única coisa necessária, que nunca lhe seria tirada. Seus frutos não secam como o feno, nem caem como a flor do campo, mas permanecem para sempre.

"Sentada aos pés do Senhor
com os ouvidos atentos",

diz Hugo de S. Vitor,

"Maria nos oferece um exemplo muitíssimo evidente
da virtude da contemplação.
Em sua sede pelas palavras que lhe dizia,
o próprio Senhor foi testemunha
de haver escolhido a melhor parte,
exemplo louvável e admirável
que observamos em muitos outros que,
com este mesmo empenho,
com o auxílio da graça de Cristo,
abandonaram uma vida de depravação
e alcançaram tanta bondade na virtude
e tão grande honestidade nos costumes
que em sua luz podemos conhecer mais claramente
ter sido realizado o que estava escrito no Salmo:

`Enviou o Senhor a sua palavra,
e os curou,
e os livrou da ruína'.

Salmo 106, 20"

Sermones Centum,
Prólogo