OS PRESSUPOSTOS DO
APRENDIZADO

- Sétima Parte -




40.

A Evangelização.

Antes de prosseguirmos em nossa exposição, vamos, ainda que brevemente, relembrar o motivo ou a finalidade destas explicações. Pois o homem prudente sempre

"faz tudo com conselho",

diz o livro de Provérbios (Prov. 13,16), e o primeiro de todos os conselhos é a constante recordação do fim a que eles se ordenam (Lam. 1, 9).

O fim que tem nos norteado em nossas considerações é a busca da verdade. Estamos em busca da verdade, não da verdade entendida de um modo qualquer, mas daquela verdade à qual se ordena o Evangelho, aquela da qual Jesus afirma ter vindo ao mundo para dela dar testemunho, e da qual Jesus também ensina ser aquilo que pode tornar o homem livre. Esta verdade é algo que por sua natureza se ordena a Deus e se alcança pela contemplação, conforme o atesta o profeta Baruc, quando diz:

"Deus é quem vos alimenta,
e Jerusalém é vossa nutriz".

Baruc 4, 8

Ora, diz Santo Tomás de Aquino que o trabalho de governar e ordenar as coisas ao seu fim compete àqueles a quem comumente se dá o nome de sábios. Para fazer isto, a principal consideração do sábio, seu principal estudo,

"o mais perfeito, o mais sublime,
útil e feliz de todos os estudos
a que o homem pode se dedicar",

ao qual chama-se simplesmente de sabedoria, deve dizer respeito ao fim do qual devem derivar as regras pelas quais todas as demais coisas deverão ordenar-se e serem governadas (Summa contra Gentiles, L.1, l. 1-3).

Deste modo, sendo a verdade aquilo para o qual tende o Evangelho, pode-se dizer que ela é também a fonte de onde se origina o autêntico trabalho de evangelização, no qual está inserido o cumprimento do preceito de ensinar, que Jesus Cristo pediu como prova de amor aos seus discípulos. A verdade, porém, à qual se ordena o Evangelho é algo que não possui este nome num sentido metafórico. Chama-se à mesma simplesmente de a verdade porque é algo que possui mais plenamente tudo aquilo que também possuem em grau menor todas aquelas coisas às quais usualmente damos o nome de verdade. Neste sentido a verdade é, em primeiro lugar, algo que prima por converter-se com a realidade, e significa, para o homem, uma tomada de consciência do real no seu sentido mais pleno possível.

Sendo tudo isto assim, porém, a evangelização difere dos trabalhos a que estamos habituados a observar serem empreendidos pelos homens porque estes últimos dependem, em sua maior parte, principalmente de condições estruturais que em si são inconscientes e que, em sua relação com os homens, dependem de graus de consciência muito pequenos por parte daqueles que deles se utilizam. São exemplos destas condições estruturais os recursos materiais, a boa propaganda, a disponibilidade de recursos humanos utilizados, porém, de um modo não essencialmente diverso de como se utilizam os próprios recursos materiais. A evangelização difere profundamente de todos estes trabalhos porque, se deve ser entendida como algo capaz de apresentar aos homens e de conduzí-los ao fim que lhes é proposto por Cristo, subsiste fundamentalmente em função de altíssimos níveis de consciência do real daqueles ou pelo menos de uma parte daqueles pelos quais é empreendido. O caminho pelo qual se alcançam estes níveis de consciência foge completamente ao padrão a que o mundo está habituado a seguir quando decide empreender qualquer atividade; eles não podem ser comprados com dinheiro, e não há nenhum programa de investimento de recursos econômicos que possam ser capazes de desenvolvê-los. O mais freqüentemente os recursos econômicos, em vez de ajudar, costumam impedir a obtenção do fim que se deseja. De qualquer forma, uma coisa não depende de outra e o fato de se pensar seriamente o contrário já costuma ser indício da ausência deste bem que se busca.

Outra ilusão possível ainda é o pensamento de que o trabalho de evangelização depende fundamentalmente de boa legislação ou da existência de regras promulgadas com sabedoria. Há, efetivamente, uma relação entre a evangelização e ambas estas coisas que não existia no caso dos recursos materiais, mas, mesmo aqui, a legislação sábia só funciona se, para além dela, houver sido providenciado o modo pelo qual possam sempre subsistir um certo número de pessoas, tantas quantas forem verdadeiramente possíveis, que detenham em si mesmas estes elevados níveis de consciência do real. Disto é testemunha o próprio Deus quando Ele mesmo declara, no Antigo testamento, que realizaria no futuro uma nova aliança com os homens, diversa da anterior por não estar mais escrita em tábuas de pedra, "aliança que os homens violaram" (Jer. 31, 32), e não puderam cumprir. Em vez disso, diz o Senhor,

"Farei uma nova aliança
com a casa de Israel e com a casa de Judá,
não como a aliança que eu fiz com os seus pais
no dia em que os tomei pela mão
para os tirar da terra do Egito.
Imprimirei, depois daqueles dias,
diz o Senhor,
a minha lei nas suas mentes,
e a escreverei nos seus corações".

Jer. 31, 31-33

Quando isto acontecer, profetiza ainda Jeremias,

"Eu vos darei pastores segundo o meu coração,
os quais vos apascentarão
com a ciência e com a doutrina.
Naquele tempo chamarão a Jerusalém
de o trono do Senhor,
e todas as nações se reunirão em Jerusalém
em nome do Senhor,
e não andarão mais após a maldade
de seu péssimo coração".

Jer. 3, 15-17

Naquele tempo, lemos ainda em Isaías,

"A terra estará cheia
da ciência do Senhor,
assim como as águas do mar
que a cobrem".

Is. 11, 9

"Não se dará mais ao insensato
o nome de príncipe,
nem ao fraudulento
o nome de grande.
Não se ofuscarão os olhos
dos que vêem,
e o coração dos insensatos
entenderá a ciência".

Is. 32, 3-5

O Messias, responsável por estas maravilhas, será alguém que

"Não julgará
segundo as aparências,
nem condenará
somente pelo que ouve dizer".

Is. 11, 3

Estas palavras, utilizadas por Isaías para descrever a pessoa do Messias, são muito mais impressionantes do que parecem ao seu primeiro exame. Pois nós, efetivamente, estamos tão submersos na prática oposta àquela que se quer descrever com estas expressões que ela se torna para nós uma segunda natureza. Nós julgamos tudo segundo as aparências, num grau muito maior do que usualmente temos o discernimento de alcançar, e tudo quanto fazemos é movido pelo que ouvimos dizer. Poucos são os que se dão conta da luta que significa até mesmo principiar a agir guiados pela luz do entendimento, muito menos pela luz da revelação e da graça. Supõe-se que o entendimento seja aquilo que é capaz de penetrar na realidade por trás das aparências; mas, se a realidade é diversa do que ouvimos dizer, na maioria das vezes só este fato nos torna cegos à realidade. Não é a busca da realidade ou da verdade que dita nosso comportamento, muito menos o fundamento sobre o qual se constrói a nossa vida, e se alguém principia a agir à luz destas coisas, assim que percebe que sua conduta difere da que ouve dizer, apaga-se como que por uma condenação a própria luz que nele o guiava. Do Reino do Messias, porém, alicerçado sobre o fundamento oposto, Isaías também nos diz:

"O seu reino se estenderá cada vez mais,
e a paz não terá fim".

Is. 9, 7

Vemos, assim, que nas profecias do Antigo Testamento está descrito o modo pelo qual se realizaria o trabalho de evangelização, que se iniciou efetivamente no dia de Pentecostes, quando Deus imprimiu sua lei nas mentes dos Apóstolos e a escreveu em seus corações, através do Espírito Santo, o qual, cumprindo a promessa de Cristo, "ensinou-lhes toda a verdade" (Jo. 16, 13). Não há no Evangelho nenhum registro de que Jesus tenha se preocupado com a organização de recursos materiais, nem com a promulgação de uma legislação explícita para dar início ao trabalho de salvação dos homens. Este se iniciou, ao contrário, conforme acabamos de ver, através do conhecimento da verdade, num grau tão alto que, antes da paixão de Cristo, no próprio dizer de Jesus, os apóstolos ainda "não o teriam sido capazes de suportar" (Jo. 16, 12).

Não é, portanto, pelo investimento econômico nem pela legislação que se alcançam os níveis de consciência do real de que depende o trabalho de evangelização. O primeiro de todos os requisitos para isto é a vocação evidente para a consciência das pequenas realidades, assim como para se buscar uma grande verdade é preciso demonstrar-se habilidoso em alcançar primeiro as pequenas verdades.

Ora, o primeiro de todos os movimentos de tomada de consciência do real por parte do homem é precisamente aquilo a que denominamos de humildade. Quem não é capaz da humildade está inteiramente fora da realidade; ainda que seja tido como homem inteligente pelos seus semelhantes, possuidor de uma extensa cultura e capaz de associar idéias com brilhantismo, não passa de um iludido que imagina ser e age como se fosse um deus.

A pedagogia vitorina, ao pretender conduzir o homem à contemplação e com ela a um plano mais elevado de consciência do real, afirma que a realização deste objetivo consiste essencialmente em ampliar, com o auxílio da graça, aquilo que já estava presente na virtude da humildade. Se o homem não estiver disposto, conseqüentemente, a abraçar primeiramente esta virtude, nada pode ser feito por ele neste sentido, pois a verdade a que se refere a humildade é a primeira e a menor de todas as verdades que se convertem com a realidade e que implica, por parte do homem, em uma queda na mesma. A humildade é, neste sentido, um grãozinho de contemplação, a menor parte psicologicamente possível daquilo que se chama de contemplação. Aquele que, persistentemente, se mostra incapaz dela, obviamente será incapaz da contemplação em toda a sua extensão.

Examinemos, pois, mediante os três sinais com que descrevemos as manifestações fundamentais da humildade, qual é o nosso grau de vivência desta virtude e qual é o nosso grau de consciência da realidade. Examinemos qual é a reverência para com o sagrado que nos move, se somos capazes de reconhecer efetivamente a existência sobre nós de algo muito maior do que nós. Examinemos se esta reverência é capaz de nos mostrar a grandeza das coisas de Deus, e o quanto temos a aprender para nos aproximarmos dEle. Examinemos também se o desejo de aprender a que esta reverência nos move é suficientemente profundo para nos mover à busca do aprendizado ainda que não se nos ofereça nenhuma oportunidade para isto. Examinemos também se este desejo de aprender é suficientemente real para nos tornar alheios às querelas humanas que envolvem a busca de uma superioridade pela posição e pelo prestígio, fazendo-nos ver que somos todos igualmente essencialmente indigentes do espírito. Examinemos também qual é o grau de reverência que temos para com nosso semelhante, se somos capazes de tratá-lo com a dignidade com que se trata a um igual, seja ele quem for. Examinemos se não apenas somos capazes de nos governar para não destratá-lo, mas se também somos capazes de ouvi-lo, como se costuma fazer quando se considera a alguém como a um igual. Se formos capazes de ouvir qualquer irmão movidos pela dignidade que reconhecemos nele, com muito mais razão seremos capazes de ouvir com atenção reverencial a Deus quando Este nos fala, pelos múltiplos canais que Ele efetivamente disseminou na natureza e entre os homens para deles se poder fazer ouvir. Jamais caia em nosso esquecimento a radicalidade com que Jesus exige o respeito ao nosso próximo e, se não observamos em nós a habitualidade deste respeito, não procuremos apenas controlar as manifestações destes nossos maus impulsos, mas sobretudo procuremos renunciar ao pedestal imaginário sobre o qual nos colocamos e que nos move a tal atitude:

"Pensam erroneamente",

diz João Cassiano nas Instituições dos Cenobitas,

"os que julgam que basta
moderar a ira em seus efeitos,
e que não é necessário arrancá-la
do mais íntimo do coração.

Possuídos deste mau espírito,
como poderemos ser templos do Espírito Santo?
Os antigos pais não permitiam
que esta paixão penetrasse um só instante
em seus corações
e observavam em toda a sua plenitude
aquela palavra do Evangelho:

`Quem se irar contra seu irmão
será réu de julgamento'.

Mt. 5, 22

Se, pois, desejamos obter
aquela plenitude das recompensas divinas
das quais está escrito:

`Bem aventurados os puros de coração,
porque verão a Deus',

Mt. 5, 8

é necessário extirpar a ira
não apenas de nossos atos,
mas também das mais internas raízes da alma,
crendo firmemente que de modo algum
nos é permitido entregar-nos a este veneno mortífero,
pelo qual perderemos a luz do discernimento,
a firmeza do reto conselho,
a honestidade e a moderação da justiça,
a perseverança na verdadeira luz espiritual,
e a participação na vida,
pois, conforme nos diz o Evangelho,
somente pela ira e pelo ódio
já nos são prometidos
pelo Juiz de todas as coisas
os suplícios eternos".

Inst. Cen. L. 8

"Apressemo-nos, pois,
em aniquilar inteiramente este animal ferocíssimo
que é o orgulho,
devorador de todas as virtudes.
Estejamos certos que enquanto habitar
este vício em nosso peito
não apenas careceremos de todas as virtudes
como também,
ainda que nos pareça possuir alguma delas,
até mesmo destas aparências seremos espoliados
por causa deste veneno.
O edifício das virtudes não pode
de modo algum ser levantado em nossa alma
se não tivermos levantado primeiro em nosso coração
o fundamento da verdadeira humildade,
a única coisa que,
firmemente estabelecida,
é capaz de sustentar
os cimos da perfeição e da caridade.
Exibamos, assim, em primeiro lugar,
aos nossos irmãos,
o afeto de uma verdadeira humildade
proveniente do íntimo do coração,
jamais consentindo em amargurá-los
ou agredí-los em nada.
Não se pode, porém,
conseguir isto senão através da verdadeira renúncia,
do despojamento e da nudez de nossas faculdades,
fundamentadas no amor de Cristo.
Depois disto, entretanto,
poderemos reter firmissimamente
esta mesma humildade também para com Deus".

Inst. Cen. L. 12, 32-33