UMA CONCLUSÃO SOBRE A HISTÓRIA DA
FORMAÇÃO
DA PROBLEMÁTICA DO ABORTO




A história da formação da problemática do aborto nos mostra haver, na primeira metade do século XX, com exceção principal do caso da União Soviética, um grande atraso na legislação referente ao problema nos países do mundo ocidental. Proibiam-se, de modo geral, todos os tipos de aborto. Em muitos lugares, como na Inglaterra e, mais explicitamente, em alguns estados da América do Norte, permitia-se o aborto apenas quando realizado para salvar a vida do feto. Apesar da aparente contradição de termos, a intenção do legislador, em uma época em que ainda não havia antibióticos, era a de permitir uma intervenção cesariana para salvar a vida do feto, não incriminando a conduta do médico mesmo que esta cesariana colocasse em risco a vida da mãe.

Com a exceção principal da União Soviética, os primeiros desenvolvimentos da legislação referente ao aborto surgiram como resultado direto do trabalho empreendido por grupos feministas, principalmente na Europa, obtendo-se por meio deles a despenalização do aborto em casos de estupro. Mas entre as primeiras legislações permitindo o aborto em casos de estupro e uma revogação mais ampla das restrições a outros casos de aborto, como na Inglaterra, houve um período de diversas décadas em que pouca coisa ocorreu.

No entanto, a permissão do aborto em casos de estupro já continha implicitamente em si a existência de uma discriminação sancionada por lei. O feto de que a vítima de estupro estava grávida era genetica e fisiologicamente idêntico ao de que a gestante também estaria se a relação sexual que tivesse dado origem ao feto não tivesse sido imposta de forma violenta. A natureza deste feto era idêntica à de qualquer outro feto de mesma idade gestacional. Se o aborto é legal apenas em casos de estupro, na hipótese do feto ser dotado de natureza e individualidade humanas, estaremos diante de uma discriminação de direitos contra o nascituro, ao qual se nega a vida que se concede e tutela a qualquer outro ser humano em idênticas condições. Este aborto não seria mais do que uma discriminação do direito à vida, fundamentada no tipo de relação sexual que lhe deu origem, assim como a escravidão era uma discriminação do direito à liberdade, fundamentada no tipo de pele que reveste o indivíduo. Se o feto é realmente um ser humano, o aborto em caso de estupro não difere essencialmente de qualquer outra das formas de discriminação de direitos fundamentais condenadas pelas constituições dos países modernos, como as discriminações de cor, sexo e raça.

Na hipótese, porém, do feto não possuir natureza e individualidade humanas, quem estará sendo submetida a uma discriminação em seus direitos é a gestante, à qual se concede o direito ao aborto em caso de estupro que lhe é negado arbitrariamente em qualquer outro caso.

Deste modo, a convicção pessoal do legislador quanto à natureza e à individualidade humana do feto originário do estupro neste caso não fará diferença quanto à conclusão de que há uma atitude discriminatória da legislação: qualquer que seja a convicção do legislador, qualquer que seja a hipótese verdadeira, o aborto legalmente permitido apenas em casos de estupro será sempre uma forma de discriminação de direitos que todas as constituições modernas claramente se empenham em extingüir.

O estado geral da legislação referente ao aborto ficou neste impasse até a década de 60, quando se desencadeou um amplo movimento pela sua legalização em grande parte dos países do primeiro mundo. Nos Estados Unidos este movimento iniciou-se com a primeira lei permissiva do aborto no Estado de Colorado em 1967 e chegou a um máximo em 1973 por ocasião da decisão do caso Roe versus Wade pelo qual a Suprema Corte de Justiça obrigou todos os estados americanos a adotarem a prática do aborto a pedido durante todos os nove meses da gravidez.

Logo após esta decisão da Suprema Corte propuseram-se nos Estados Unidos alguns projetos de lei no sentido de legalizar o direito dos pais à interrupção da vida neonatal durante a semana seguinte ao nascimento, alegando-se para isto os muitos defeitos do feto que somente poderiam ser diagnosticados após o nascimento e a injustiça envolvida em obrigar os pais a criarem uma criança que eles não haviam desejado. Tais projetos contaram desde o início com o apoio público de diversas personalidades importantes. Significativas foram a este respeito as declarações do prêmio Nobel de Medicina James Watson, o descobridor da estrutura do DNA na década de 50. Em maio de 1973, apenas quatro meses decorridos após a decisão da Suprema Corte no caso Roe versus Wade, ele afirmou na revista da Associação Médica Americana:

"Devido aos limites impostos atualmente
pelos métodos para se detectar deficiências
em bebês ainda não nascidos,
as mesmas só vêm a ser descobertas
por ocasião do nascimento.
Se fosse possível até os três dias de vida
o recém nascido não ser reconhecido como tal,
então os pais poderiam ter direito à escolha.
O médico poderia deixar a criança morrer,
caso os pais assim escolhessem,
evitando muita desgraça e sofrimento".

Apesar do prestígio dos proponentes destas idéias, nenhum dos projetos de lei apresentados para torná-las realidade jurídica foi aprovado até o momento, e não parece provável que venham a sê-lo, pelo menos a curto prazo. Uma boa pergunta, porém, é a seguinte: por que?

O motivo fundamental não está no fato de que o povo americano seja maciçamente contra estas propostas. Elas podem parecer chocantes para grande parte do povo brasileiro, cuja legislação sequer reconhece o direito ao aborto, e são também chocantes para uma parte do povo americano. Mas ali o aborto já é legal até o momento do parto, e o modo de pensar em relação à interrupção da vida neonatal pode modificar-se facilmente com dinheiro, um pouco de tempo e um bom trabalho de base, assim como vimos ter sido feito com a questão do aborto. Este não é o aspecto relevante na improbabilidade de que a despenalização da interrupção da vida neonatal seja aprovada a curto prazo.

Tampouco é o fato de que uma parte da população teria chegado à conclusão de que o aborto é justo mas há algum erro de caráter ético ou jurídico fundamental especificamente na interrupção da vida neonatal. Se o aborto é permitido na semana anterior ao nascimento, não há nenhum argumento ético ou jurídico sólido que possa justificar que não possa vir a ser também permitida a interrupção da vida na semana posterior ao nascimento. Do ponto de vista da técnica jurídica, existe o obstáculo do texto constitucional americano, que afirma em sua décima quarta emenda que a pessoa nascida nos Estados Unidos é um cidadão americano, mas pode-se sempre emendar a Constituição mediante algum artifício legal de exceção. Neste sentido, outro famoso prêmio Nobel de Medicina, o Dr. Francis Crick, que também entrou na discussão pública iniciada logo após o caso Roe versus Wade, sugeriu que fosse introduzido um dispositivo legal mediante o qual não se considerasse a criança legalmente viva até que tivesse dois dias de vida e sua saúde atestada por examinadores médicos. Sob este ponto de vista, não há dificuldades legais tecnicamente insuperáveis. As dificuldades fundamentais envolvidas na questão se referem principalmente a um processo de alteração dos costumes; já tivemos a oportunidade de considerar a pergunta do presidente do Conselho Populacional ao analisar os aspectos éticos do planejamento familiar:

"Quanto em valores éticos estaria uma sociedade
disposta a renunciar em favor da solução
de um grande problema social?
Isto depende não apenas de sua filosofia ética,
mas também da seriedade
com a qual se encara
o problema a resolver".

O que realmente está dificultando ou atrasando a aprovação desta e de outras novas legislações sobre a interrupção da vida é principalmente o fato de que, mesmo levando em conta que elas ainda não se tornaram prioridades máximas para o movimento demográfico, após o caso Roe versus Wade em 1973 levantou-se nos Estados Unidos uma forte reação de grande parte da população, inclusive, e isto é muito significativo por ser um fenômeno até o momento inédito na história, de médicos que viviam até então exclusivamente da prática do aborto. Todas estas pessoas afirmam que não há nenhum erro essencial na interrupção da vida neonatal. Se foi cometido algum erro, este erro foi cometido muito tempo antes, quando foi legalizado o aborto para os casos de estupro. A criança cuja mãe foi vítima de estupro é, no segundo mês de gestação, de idêntica natureza à criança no nono mês de gestação e à criança que vive a sua primeira semana após o nascimento. Não há diferenças anatômicas, fisiológicas e genéticas essenciais nos três casos, e a comunidade médica sabe muito bem disso. Permitir o aborto e retirar-lhe a tutela legal porque houve uma violência sexual quando a criança sequer existia é uma forma de discriminação de direitos, inexistente na maioria, senão mesmo em todas as legislações até a primeira metade do século XX, idêntica à discriminação contra os negros, por serem eles filhos de pais de raça negra. Não há como se negar isto. O feto da gestante estuprada é exatamente idêntico ao feto da não estuprada. Todo mundo sabe disso. Mas, se ainda assim se nega que isto seja uma discriminação do direito à vida, admite-se automaticamente então que a discriminação é contra a mulher, em qualquer interrupção da maternidade, antes ou depois do nascimento, e se não se chega social e juridicamente de modo imediato às conseqüências práticas deste fato é apenas porque uma parte da população insiste em admitir que o aborto por causa de estupro é uma forma de discriminação do direito à vida idêntico a todas as formas de discriminação que as sociedades modernas também insistem em condenar. A História revela que onde não foi possível mostrar claramente isto à sociedade chegou-se efetivamente e de forma muito rápida a todas as conseqüências a que se devia logicamente ter chegado. Na Alemanha a luta pelo aborto iniciou-se em 1920; em 1933 foi aprovada a sua legalização; mal havia irrompido a segunda guerra mundial, com a conseqüente precariedade da utilização dos meios de comunicação social, por iniciativa da comunidade médica passou-se à interrupção da vida neonatal e, antes do fim da guerra, já se havia tornado legal interromper a vida de crianças alemãs que, ao entrarem na idade escolar, fossem consideradas por uma junta médica como "difíceis de educar". Na China, quando fazíamos a revisão deste trabalho, o aborto já se havia tornado obrigatório; a mulher que é surpreendida pelo Estado em sua segunda gravidez é levada coativamente para o hospital para fazer o aborto. Para reforçar esta obrigação, em dezembro de 1993 o governo chinês condenou à morte os funcionários de alguns hospitais que haviam ajudado as mulheres a evitar o aborto compulsório.

No Brasil a legislação não reconhece e está ainda incerta quanto à validade da pena de morte até para os cidadãos culpados pela práticas de crimes hediondos. No entanto há hospitais em que tornou- se uma rotina a pena de morte para seres humanos inocentes, não por algum crime hediondo que lhes esteja sendo injustamente imputado, mas porque terceiras pessoas cometeram uma violência sexual antes mesmo que eles tivessem sido concebidos. Por um estranho paradoxo, o Código de Ética Médico vigente na época em que estava sendo escrito este texto dizia que

"é vedado ao médico discriminar o ser humano
de qualquer forma ou sob qualquer pretexto".

Art. 47

Dizia também que

"o médico deve guardar absoluto respeito
pela vida humana,
jamais utilizando seus conhecimentos
para o extermínio do ser humano",

Art. 6

e igualmente que

"é vedado ao médico fornecer conhecimento
ou participar,
de qualquer maneira,
na execução da pena de morte" .

Art. 54

Ninguém duvida da ética e do acerto de tais disposições. Mas, apesar do Código também afirmar como sendo o primeiro de seus princípios fundamentais aquele segundo o qual

"a Medicina é uma profissão
a serviço da saúde do ser humano
que deve ser exercida sem discriminação
de qualquer natureza" ,

Art. 1

ninguém sabe dizer por que razão tão pouco se tem falado para explicar porque todos estes princípios deixam de valer para a vida humana quando uma terceira pessoa cometeu uma violência sexual. Em vez disso, estes serviços são continuamente apresentados através de uma falsa imagem de que o que está sendo feito representa a aspiração de todo o povo. Na realidade eles estão sendo instrumentalizados desde o início pelos partidos políticos brasileiros para a construção de plataformas eleitorais e pelos políticos estrangeiros para a introdução de programas populacionais dos quais ainda não é possível fazer uma idéia correta de quão inesperado possa vir a ser o seu desfecho se continuarem a ser conduzidos por quem o tem feito e do modo como o tem sido. É um ensinamento deduzido da própria História que não atenta contra a sua imparcialidade afirmar que se isto não foi levado mais longe é apenas porque, ao contrário da China e da Alemanha, ainda há pessoas que insistem em dizer bem claro que estas práticas não são mais do que assassinato com instrumentalização política.

A História foi feita para que com ela se possam adquirir os frutos de experiências pelas quais pretender passar seria um atestado de subdesenvolvimento cultural.

São Paulo, 4 de julho de 1994