III



Compreender a natureza do que se denomina sacrifício é, atualmente, uma empresa difícil, conseqüência, em grande parte, do ritmo intensamente artificial que se tenta imprimir à vida humana. Não fosse isto, seria mais facilmente evidente que a atitude sacrificial, da qual a missa é um exemplo, é algo do que há de mais natural e fundamental no homem; algo que expressa perfeitamente em um só todo muito do que pertence à essência de qualquer ensino religioso, seja da religião natural, seja da revelação mosaica, seja da cristã. Onde quer que a atitude sacrificial floresça espontaneamente e de uma forma sadia, é indício certo de que o homem vive de um modo que lhe permite uma compreensão espontânea de sua própria natureza, de sua posição dentro da criação, da existência de um Criador e de sua transcendência, e de sua relação, enquanto criatura, para com o Criador.

Com razão Santo Tomás de Aquino observou na Summa Theologiae que em qualquer idade, entre todos os homens e entre todas as nações, sempre houve oferta de sacrifícios (III Q.85 a.1). Os relatos históricos sobre quase todos os assuntos, escritos na idade antiga, qualquer que seja a sua proveniência, citam abundantemente a existência desta prática em todo lugar. Ponderando que o que existe sempre e entre todos deve ser algo natural, daí conclui Santo Tomás que a existência de sacrifícios pertence ao direito natural.

É muito significativa esta afirmação que a oferta de sacrifícios pertence ao direito natural. Com ela quer-se dizer que não se trata de fruto de leis ou convenções humanas; quer-se dizer também que trata-se de algo que não necessita de promulgação por parte da lei divina para sua legítima existência, e nem mesmo sequer exige necessariamente o auxílio da graça para que possa ser compreendida.

O sacrifício é, ademais, um símbolo, e nisto é caracteristicamente algo humano, pois sendo o homem um composto de natureza espiritual e material, é seu modo natural de expressão a utilização de sinais sensíveis para significar o que é apreendido pela inteligência; é, também, o seu modo natural de intelegir fazê-lo por meio de sinais sensíveis.

Externamente considerado, o sacrifício é uma oferta feita a Deus de alguma coisa material, acompanhada de alguma alteração desta coisa, em reconhecimento da majestade divina e da submissão humana à mesma. Mas o ato material do sacrifício por si só nada tem que possua esta valor que acabamos de lhe atribuir; ao contrário, por ser um símbolo, o ato material do sacrifício só adquire todo aquele valor se for uma significação externa de um "sacrifício interior espiritual, pelo qual a alma própria se oferece a Deus" (ST. III Q.85 a.2). Visto desta maneira, o sacrifício é uma atitude natural no homem, no mesmo sentido em que é natural o beijo, o abraço e todas as diversas demonstrações de afeto e de respeito com que através de sinais sensíveis significamos nossa atitude interior para com nossos semelhantes. O sacrifício, porém, difere destes exemplos pelo fato de que um beijo ou um abraço se dão entre iguais e, pelo menos do ponto de vista estritamente natural, a relação que existe entre o homem e Deus não é comparável à que existe entre iguais mas à que existe entre um servo e seu senhor. De onde que o sacrifício pode ser comparado aos sinais de submissão e honra que os súditos oferecem aos senhores em reconhecimento de sua soberania. Entendido desta maneira, o sacrifício é também um ato de justiça.

Em concórdia com o que foi dito, as Sagradas Escrituras também descrevem a oferta de sacrifícios como uma prática universal por parte dos homens desde o início da história. E sem citar, - é importante notar isto - , nenhum mandamento prévio dado por Deus para que se procedesse assim. Caim e Abel (Gen. 4) apresentaram ambos uma oferta a Deus dos produtos de seus trabalhos: Caim, dos frutos da terra; Abel, dos primogênitos de seu rebanho. Quando, acabado o dilúvio, Noé saíu da arca (Gen. 8), erigiu um altar e ofereceu a Deus um holocausto de animais e aves. Também Abraão em várias ocasiões erigiu altares para oferecer sacrifícios a Deus (Gen. 12, 8; 13, 18). Quando ele voltou vitorioso de uma expedição militar contra Codorlaomer, dizem as Escrituras ter vindo ao seu encontro Melquisedec, rei de Salém, com

"pão e vinho,
pois era sacerdote
do Deus altíssimo".

Gen. 14, 18

Temos também a história do sacrifício de Isaac, que Deus pediu a Abraão para prová-lo, dizendo-lhe:

"Abraão!
Toma teu filho único,
que tanto amas,
Isaac,
e vai à terra de Moriá,
e oferece-mo ali em sacrifício
sobre um dos montes
que Eu te indicarei".

Gen. 22, 1-2

O qual sacrifício foi interrompido no último momento, pela voz de um anjo que disse a Abraão:

"Não estendas a mão contra o menino,
porque agora sei que temes a Deus,
pois por amor de mim
não poupaste o teu filho unigênito".

Gen. 22, 12

Dissemos que do ponto de vista do direito natural o sacrifício é um ato de justiça, e que exprime uma reverência e submissão que o homem deve a Deus, comparável à de um servo para com seu senhor. A esta relação deve-se acrescentar que, em virtude da redenção merecida por Cristo, estabeleceu-se no Cristianismo uma nova aliança entre Deus e o homem pela qual foi dito aos Apóstolos:

"Já não vos chamo
mais de servos,
mas de amigos".

Jo. 15, 15

E também:

"Nossos pais nos educaram
segundo sua própria conveniência,
mas Deus o faz para o nosso bem,
para nos comunicar a sua santidade".

Heb. 12, 10

Isto ocorre pela graça, pela qual o homem é elevado à participação da natureza divina e é chamado a participar de sua própria felicidade, de onde que nasce aquela mútua amizade entre Deus e o homem a que chamamos de caridade. A vida cristã é a própria vida desta amizade, e isto tem como conseqüência uma elevação de todos os preceitos do direito natural ao plano sobrenatural. O sacrifício, com isto, não deixará de ser um ato de justiça, mas passará a ser motivado por esta amizade e será, neste sentido, também um ato desta amizade. Continuará sendo um símbolo pelo qual se expressa o sacrifício interior com que a alma se oferece a Deus; mas este oferecimento passará a ser também um sinal da total entrega de si mesmo, por parte do homem, por amor, ao Criador. E, em nosso parecer, não podemos deixar de ver na imolação da vítima um sinal da imolação interior que o homem também tem que realizar para poder amar a Deus mais intensamente, pois Jesus ensinou que ninguém poderia ser seu discípulo se primeiro não renunciasse a si próprio e, consoante a isto, uma experiência milenar tem demonstrado o quanto é verdadeira a sentença segundo a qual quanto mais nos afastamos do amor das coisas terrenas e de nós mesmos, tanto mais nos formamos no amor de Deus, e que a própria diminuição da cobiça do que é terreno já é alimento para a caridade. Este é o motivo, pois, pelo qual Cristo haver estabelecido que não poderia segui-lo quem primeiramente não renunciasse a si mesmo, e disto, na imolação da vítima do sacrifício, temos um símbolo do que o próprio oferente deve fazer se quiser oferecer-se a Deus com aquele amor que já nada mais retém para si próprio a não ser o próprio Deus.