NOTAS SOBRE A
PROFECIA DE ISAÍAS



1. Introdução.

Isaías é o principal, o mais extenso e o mais profundo dos profetas do Antigo Testamento. Em seu livro ele se refere diversas vezes a uma série de eventos que tomariam lugar, após a vinda do Messias, no Monte Sião e em Jerusalém, a cidade sagrada edificada sobre este monte.

Em uma destas profecias, Isaías afirma o seguinte:

"Naquele dia soará uma grande trombeta,
e virão os que tinham ficado perdidos
na terra dos Assírios
e os que se achavam desterrados
na terra do Egito,
e adorarão o Senhor
no monte santo de Jerusalém".

Is. 27,13

A grande trombeta, conforme veremos mais adiante, significa a pregação do Messias, e o monte santo de Jerusalém, segundo uma interpretação implícita do próprio Cristo, é aquilo que na tradição cristã ficou conhecido sob o nome de contemplação. De fato, o Evangelho de São João nos conta o episódio de uma Samaritana que, ao recolher água de um poço, iniciou uma conversa com Jesus que estava ali sentado e o reconheceu como sendo um profeta. Em um determinado momento desta conversa, diz então a Samaritana a Jesus:

"Senhor, vejo que és profeta.
Responde à minha pergunta:
os samaritanos adoram sobre este monte,
mas os judeus dizem que é em Jerusalém
o lugar onde se deve adorar a Deus.
Quem está certo?"

Respondeu-lhe Jesus:

"Mulher,
crê-me que é chegada a hora
em que não adorareis o Pai nem neste monte,
nem em Jerusalém.
A salvação vem dos judeus,
mas vem a hora, e já chegou,
em que os verdadeiros adoradores
adorarão o Pai em espírito e verdade,
porque é destes adoradores que o Pai deseja".

Disse-lhe a mulher:

"Eu sei que deve vir o Messias
que se chama Cristo.
Quando, pois, ele vier,
nos anunciará todas as coisas".

Respondeu-lhe ainda Jesus:

"Sou eu, que falo contigo".

Jo 4, 19-26

Nesta passagem percebe-se claramente que o santo monte de Jerusalém sobre o qual Isaías profetizou que os povos adorariam o Senhor quando viesse o Messias é interpretado pelo próprio Messias não como sendo a cidade de Jerusalém, mas a adoração a Deus em espírito e verdade. Esta expressão é uma forma de se designar aquilo que tem sido chamado na tradição cristã também de contemplação. Por espírito entende-se a atuação dos dons do Espírito Santo, que é causa da contemplação nas almas que, pela fé em Cristo, vivem em estado de graça e se purificaram através da vida das virtudes; pela verdade entende-se o próprio objeto da contemplação.

Nos escritos dos santos padres interpreta-se efetivamente muitas vezes o monte Sião ou a Jerusalém de que fala Isaías como sendo a contemplação; aparentemente com mais freqüência, porém, encontra-se também a interpretação segundo a qual esta mesma expressão como se referiria à Igreja. Ambas estas interpretações não conflitam uma com a outra, pois o que produz a contemplação é o Espírito Santo mediante a ação de seus dons e a Igreja, por sua vez, nasceu no dia de Pentecostes pelo derramamento do Espírito Santo que une, em um organismo sobrenatural, Cristo aos fiéis e estes entre si como num corpo a cabeça está unida aos seus demais membros, formando o que se denomina de Corpo Místico de Cristo, do qual se diz que o Espírito Santo é a sua alma. Tanto a contemplação como a Igreja são, portanto, realidades causadas pelo mesmo Espírito Santo, e a profecia que anuncia o surgimento de uma delas implica no anuncio do surgimento da outra.

Ademais, se atentarmos para as palavras de São Pedro, a própria Igreja parece ordenar-se à contemplação como a um fim:

"Vinde",

diz S. Pedro na sua Primeira Epístola,

"aproximai-vos de Cristo, pedra viva,
eleita e estimada por Deus, também vós,
como pedras vivas.

Vinde formar um templo espiritual para
um sacerdócio santo, afim de oferecer
sacrifícios espirituais, agradáveis a
Deus por Jesus Cristo.

Sois uma estirpe eleita, sacerdócio
real, gente santa, povo trazido à
salvação, para tornardes conhecidos os
prodígios dAquele que vos chamou das
trevas para a luz admirável".

1 Pe. 2, 4-5

Os próprios santos padres com bastante freqüencia mostram também terem compreendido, e inclusive com maior amplitude de vistas, a simultaneidade destas múltiplas interpretações possíveis que, na realidade, considerados os seus fundamentos, são como que uma só interpretação. Assim, por exemplo, o Sermão nº 39 de Hugo de S. Vitor é dedicado ao comentário daquela passagem de Isaías 52 onde se diz:

"Levanta-te, ó Sião,
reveste-te de tua fortaleza;
reveste-te com os vestidos de tua glória,
Jerusalém, cidade do Santo".

Is. 52,1

Ora, as primeiras palavras com que se inicia este sermão, logo após ser feita a citação a Isaías, são estas:

"Historicamente,
Jerusalém é uma cidade terrena;
alegoricamente, é a Santa Igreja;
moralmente, trata-se da vida espiritual;
anagogicamente,significa a pátria celeste.

Deixando por ora de lado três
destes sentidos possíveis,
vamos considerar apenas
o que ela significa do ponto de vista moral,
para que, pela sua descrição,
possamos edificar-nos no bem".

Sermo 39/PL 177, 999

2. Vaticínios diversos de Isaías sobre o Monte Sião.

Nós, porém, passaremos agora a considerar primeiro algumas das muitas outras profecias contidas no livro de Isaías a respeito das coisas que sucederiam no Monte Sião quando viesse o Messias.

A.

Os povos subirão ao monte do Senhor onde Deus os ensinará Ele próprio em seus caminhos; deixarão suas espadas e lanças e não farão mais guerra.

"Acontecerá nos últimos dias
que o monte da casa do Senhor
terá os seus fundamentos no cume dos montes,
e se elevará sobre os outeiros,
e concorrerão a ele todas as gentes.
E irão muitos povos, e dirão:
vinde subamos ao monte do Senhor,
e à casa do Deus de Jacó,
e Ele nos ensinará os seus caminhos,
e nós andaremos pelas suas veredas,
porque de Sião sairá a Lei,
e de Jerusalém a palavra do Senhor.
E julgará as nações,
e convencerá de erro a muitos povos;
os quais das suas espadas
forjarão relhas de arados,
e das suas lanças foices;
uma nação não levantará a espada
contra outra nação,
nem daí para diante
se adestrarão mais para a guerra".

Is. 2, 1-4

B.

No Monte Sião os povos serão povos de alegria e Deus os ouvirá prontamente; o lobo e o cordeiro pastarão juntos e não haverá mais quem faça o mal.

"Eu vou criar céus novos,
e uma terra nova,
e não persistirão na memória
as antigas calamidades,
nem voltarão mais ao espírito.
Porque vou fazer de Jerusalém
uma cidade de júbilo,
e de seu povo
um povo de alegria.
E terei as minhas delícias em Jerusalém,
e a minha alegria no meu povo,
e não se ouvirá mais nele a voz do choro,
nem a voz do lamento.
Não haverá ali mais menino
que viva poucos dias,
nem velho que não encha os seus dias;
porque o menino morrerá de cem anos,
e o pecador somente aos cem anos será amaldiçoado.
Não lhes sucederá edificarem casas
e ser outro quem as habite;
nem plantarem para que outro coma,
porque os dias do meu povo
serão como os dias das árvores
e as obras das suas mãos envelhecerão.
Os meus escolhidos não trabalharão debalde,
nem gerarão filhos para a turbação;
porque serão uma estirpe de benditos do Senhor,
eles e os seus netos com eles.
E acontecerá que antes que eles clamem,
eu os ouvirei;
estando eles ainda a falar,
eu os atenderei.
O lobo e o cordeiro pastarão juntos,
o leão e o boi comerão palha;
e o pó será para a serpente o seu alimento.
Não haverá quem faça o mal,
nem cause mortes em todo o meu santo monte,
diz o Senhor".

Is. 65, 17-25

C.

No Monte Sião não haverá necessidade de Sol ou de Lua, pois ali o Senhor servirá de luz eterna, e todo o povo será um povo de justos.

"Não se ouvirá mais falar de iniqüidade na tua terra,
nem haverá assolação nem ruína dentro de tuas fronteiras;
a salvação reinará dentro dos teus muros,
e o louvor dentro de tuas portas.
Tu não terás mais Sol para luzir de dia,
nem o resplendor da Lua para te iluminar,
pois o Senhor te servirá de luz eterna,
e o teu Deus será a tua glória.
Não mais se porá o teu Sol,
e a tua Lua não minguará,
porque o Senhor te servirá de luz eterna,
e terão acabado os dias de teu pranto.
Todo o teu povo será um povo de justos;
eles possuirão a terra para sempre,
como vergônteas que eu plantei,
e como obras que a minha mão fêz
para me glorificarem.
Eu, o Senhor, a seu tempo
farei isto subitamente".

Is. 60, 18-22

D.

As trevas cobrem a face da terra, mas do Monte Sião surgirá a luz sob cujo resplendor caminharão reis e nações.

"Levanta-te, recebe a luz,
Jerusalém,
porque chegou a tua luz,
e a glória do Senhor nasceu sobre ti.
Porque eis que as trevas cobrirão a terra,
e a escuridão os povos;
mas sobre ti nascerá o Senhor,
e a sua glória se verá em ti.
E as nações caminharão à tua luz,
e os reis ao resplendor da tua aurora.
Levanta em roda os olhos e vê:
todos estes se congregaram, vieram a ti;
teus olhos filhos virão de longe
e tuas filhas surgirão de todos os lados".

Is. 60, 1-4

E.

Os filhos de Deus que se congregarão no Monte Sião surgindo de todos os lados, de países remotos e das extremidades da terra, são todos aqueles que invocam o nome do Senhor.

"Eu direi ao Aquilão e ao Meio dia:
Traze os meus filhos de países remotos,
e as minhas filhas das extremidades da terra,
porque todos aqueles que invocam o meu nome,
Eu os criei, os formei
e os fiz para a minha glória".

Is. 43, 6-7

F.

Sobre o Monte Sião Deus fará um banquete para todos os povos, quebrará as cadeias que os ligam e aniquilará a morte para sempre.

"E o Senhor dos exércitos fará neste monte
para todos os povos
um banquete de majares deliciosos,
de vinho, de carnes gordas e cheias de medula,
e com um vinho sem mistura.
E neste monte quebrará a cadeia
que tinha ligado todos os povos,
e as redes estendidas contra todas as nações.
Aniquilará a morte para sempre;
e o Senhor Deus enxugará as lágrimas
de todas as faces,
e tirará de cima de toda a terra
o opróbio de seu povo,
porque o Senhor falou".

Is. 25, 68

3. O papel do Messias nas profecias sobre o Monte Sião.

Nas profecias que acabamos de citar fala-se apenas sobre o Monte Sião, ou de Jerusalém. Há, porém, uma série de outras em que estes mesmos fatos que foram aí anunciados são vinculados ao aparecimento do Messias.

Assim, em Is. 25 (o ítem F acima), o profeta diz que no Monte Sião Deus quebraria a cadeia que tinha ligado todos os povos, as redes estendidas contra todas as nações e o opróbio de seu povo sobre toda a terra. Em Is. 9 o mesmo profeta diz que isto aconteceria graças a um menino que nasceria e se sentaria sobre o trono de Davi, cujo reino não teria fim e teria o título não só de Príncipe da Paz, mas também de Deus Forte:

"O povo, que andava nas trevas,
viu uma grande luz;
aos que habitavam na região da sombra da morte
nasceu-lhes o dia.
Tu quebraste o pesado jugo que o oprimia
e a vara que lhe rasgava as espáduas
e o cetro de seu exator,
como o fizeste na jornada de Madian.
Porque um menino nasceu para nós,
e um filho nos foi dado
e foi posto o principado sobre o seu ombro,
e será chamado Admirável, Conselheiro,
Deus Forte, Pai do Século Futuro,
Príncipe da Paz.
O seu império se estenderá cada vez mais,
e a paz não terá fim;
sentar-se-á sobre o trono de Davi
e sobre o seu reino,
para o firmar e fortalecer
pelo direito e pela justiça,
desde agora e para sempre".

Is. 9, 2-7

Vimos também que em Is. 65 (o ítem B acima), o profeta diz que no Monte Sião o lobo e o cordeiro pastarão juntos, o leão e o boi comerão palha e que não haveria ali quem fizesse o mal. Em Is. 11 o mesmo profeta diz que tudo isto aconteceria quando uma flor brotasse da raíz de Jessé. Jessé, para os que não se lembram, foi o pai de Davi. Esta flor, que será o Messias, será um homem, pois sobre ela esta profecia diz que repousarão os sete dons do Espírito Santo que o profeta passa a enumerar, e então sucederão todas as coisas que em Is. 65 se havia afirmado que haveriam de suceder no Monte Sião, porque, nas palavras de Isaías, graças à vinda do Messias, "a terra estaria cheia da ciência do Senhor":

"E sairá uma vara do tronco de Jessé,
e uma flor brotará de sua raíz.
E repousará sobre ele o Espírito do Senhor,
espírito de sabedoria e de entendimento,
espírito de conselho e fortaleza,
espírito de ciência e de piedade,
e será cheio do espírito de temor do Senhor.
Ferirá a terra com a vara de sua boca,
e matará o ímpio com o sopro de seus lábios.
O lobo habitará com o cordeiro
e o leopardo se deitará ao pé do cabrito;
o novilho, o leão e a ovelha viverão juntos,
e um menino pequeno os conduzirá.
O novilho e o urso irão comer às mesmas pastagens;
as suas crias descansarão umas com as outras;
o leão comerá palha com o boi,
a criança de peito brincará sobre a toca do áspide
e na caverna do basilisco meterá a sua mão
a que já estiver desquitada.
Eles não farão dano algum,
nem matarão em todo o meu santo monte,
porque a terra estará cheia da ciência do Senhor,
assim como as águas do mar que a cobrem".

Is. 11, 1-9

Em Is. 60 e 43 (ítens D e E acima), o profeta afirmou que os filhos de Jerusalém surgiriam de todos os lados e que Deus chamaria os seus filhos de países remotos e das extremidades da terra. Na continuação da profecia de Is. 11 que acabamos de citar, o profeta diz que isto acontecerá quando o rebento da raíz de Jessé, que já vimos ser uma expressão que o profeta usa para referir-se ao Messias designando sua descendência de Davi, for posto como estandarte diante de todos os povos. Então Deus reunirá os dispersos de Judá dos quatro cantos da terra:

"Naquele dia o rebento da raíz de Jessé,
que está posto por estandarte dos povos,
será invocado pelas nações,
e será glorioso o seu sepulcro.
E o Senhor levantará o seu estandarte
entre as nações,
e juntará os fugitivos de Israel,
e reunirá os dispersos de Judá
dos quatro cantos da terra".

Is. 11, 10-12

Quase a mesma coisa o profeta repete em Is. 49:

"Isto diz o Senhor Deus:
Eis que levantarei para as nações a minha mão,
e arvorarei entre os povos o meu estandarte.
E então trarão os teus filhos nos braços,
e levarão as tuas filhas sobre os ombros,
e serão tirados ao homem forte
os que ele tiver feito cativos
e ao valente os que ele tiver tomado".

Is. 49, 22-25

Em Is. 18 o profeta ainda afirma que todos os habitantes da terra veriam este estandarte, ouviriam o som da trombeta e então levariam oferendas ao Senhor no Monte Sião. Como o estandarte é o Messias, subentende-se que a trombeta seja a sua manifestação ou pregação, conforme haviamos dito na introdução a estas notas:

"Ide, mensageiros velozes,
a uma nação dividida e despedaçada;
a um povo terrível, o mais terrível de todos;
a uma nação que está esperando,
cuja terra é cortada pelos rios.
Vós todos, habitantes do mundo,
que morais sobre a terra,
quando for levantado o estandarte sobre os montes,
vós todos o vereis, e ouvireis a som da trombeta.
E então naquele tempo
serão levadas oferendas ao Senhor dos exércitos
por um povo dividido e despedaçado,
por um povo terrível, o mais terrível de todos,
por uma nação que está esperando,
e que é calcada aos pés
e cuja terra é cortada pelos rios,
ao lugar do nome do Senhor dos exércitos,
ao monte Sião".

Is. 18, 2-3, 7

Em Is. 32 o profeta também afirma que o Messias não reinará sozinho, mas terá prícipes que reinarão com retidão. Cada um deles seria como arroios de águas na sede e, através deles, o coração dos insensatos entenderia a ciência. Encontramos afirmações semelhantes a estas no Apocalipse, quando Cristo afirma que aos que praticassem suas obras até o fim, Ele lhes daria poder sobre as nações, como também o próprio Cristo o havia recebido de seu Pai (Apoc. 2, 26-27) . Segundo uma interpretação muito bela de Ricardo de São Vitor no seu Comentário ao Apocalipse, isto significa que

"No Apocalipse Cristo promete que

`Àquele que praticar as minhas obras até ao fim',

isto é, até o fim da vida
ou até o fim da consumação da justiça,

`lhe darei poder sobre as nações',

isto é, sobre as gentes, os gentios,
ou aqueles que vivem como os gentios,
afastados da graça e da santidade,
porque os que vivem como os gentios
inevitavelmente ou serão inteiramente condenados
pelos juízos daqueles que são consumados na justiça
ou serão transformados em melhores pela sua palavra.
Aquele que cuida de alcançar a perfeição da santidade,
este é, pois, de fato,
digno de reger aos demais.
Cristo porém acrescenta:

`Como eu também o recebi de meu Pai',

porque do Pai Cristo recebeu,
segundo a sua humanidade,
o poder de reger,
e isto que Ele possui em plenitude,
os eleitos também o possuem
por uma participação desta plenitude".

PL. 196, 727-8

Ora, esta interpretação nada mais é do que aquilo que o próprio Isaías profetizava no trigésimo segundo capítulo de seu livro:

"Eis que um rei reinará com justiça,
e os seus príncipes reinarão com retidão.
E cada um deles será
como um refúgio contra o vento,
e um abrigo contra a tempestade.
Serão como arroios de águas na sede,
e como a sombra de uma alta rocha em terra árida.
Não se ofuscarão os olhos dos que vêem,
e os ouvidos dos que ouvem escutarão atentamente.
O coração dos insensatos entenderá a ciência,
e a língua dos tartamudos se exprimirá
com prontidão e clareza.
Não mais se dará ao insensato
o nome de príncipe,
nem ao fraudulento o de grande,
porque o insensato diz loucuras
e seu coração pratica a iniqüidade,
para deixar vazia a alma do faminto
e tirar a bebida ao que tem sede.
Mas este príncipe terá pensamentos
dignos de um príncipe,
e ele mesmo estará vigilante sobre os chefes".

Is. 32, 1-8

Em consonância com o afirmado em Is. 32, em Is. 66 o profeta diz que quando Deus estebelecesse entre os homens o seu estandarte, enviaria os seus eleitos como mensageiros a todas as nações do mundo para que anunciassem a glória de Deus àqueles que nunca tivessem ouvido falar dela. Note-se que, segundo Isaías, a glória do Senhor procede do Monte Sião (Is. 60, 1), onde o próprio Senhor habita (Is. 8, 18). Estes mensageiros, ao anunciarem aos povos longínquos a glória do Senhor, trariam em seguida estes mesmos povos carregados em liteiras ao monte santo de Jerusalém como uma oferta a Deus:

"E porei entre eles um estandarte,
e os que dentre eles forem salvos,
eu os enviarei às nações de além mar,
à África, à Lídia,
cujos povos atiram com setas,
à Itália e à Grécia,
às ilhas longínquas,
àqueles que nunca ouviram falar de mim,
nem viram a minha glória.
E eles anunciarão a minha glória às gentes
e farão vir todos os vossos irmãos
convocados de todas as nações
como um presente para o Senhor,
em cavalos, e em carros, e em liteiras,
e em machos, e em carretas,
ao meu santo monte de Jerusalém,
diz o Senhor,
como quando os filhos de Israel
levam uma oferta num vaso puro
à casa do Senhor.
E eu escolherei dentre eles
para sacerdotes e levitas,
diz o Senhor".

Is. 66, 19-21

Como será feito o anúncio da glória do Senhor às nações por parte daqueles que forem salvos onde Deus levantar o seu estandarte é algo descrito em Is. 31:

"Descerá o Senhor dos exércitos
para pelejar sobre o monte Sião
e sobre a sua colina.

E naquele dia cada um lançará fora
os seus ídolos de prata,
e os seus ídolos de ouro,
que vós fabricastes com as vossas mãos
para pecardes.

E Assur cairá ao fio da espada,
mas não da espada de um homem,
pois a espada que o há de transpassar
será espada,
mas não de nenhum homem.

Assim disse o Senhor,
que tem o seu fogo em Sião,
e a sua fornalha em Jerusalém".

Is. 31, 4-9

Para entender esta última passagem de Isaías, temos que entender primeiro as suas partes.

Assur são os assírios que destruíram o Reino de Israel e ameaçaram depois fazer o mesmo, no tempo em que vivia Isaías, com o Reino de Judá, onde na época vivia o profeta (II Reis 18, 13-37), só não o conseguindo por causa de uma intervenção miraculosa de que participou o próprio Isaías (II Reis 19). O décimo capítulo da profecia de Isaías é dedicado inteiramente aos assírios; sua leitura mostra que, para este profeta, os assírios eram a personificação do orgulho:

"Assur, diz o Senhor,
é a vara e o bastão de meu furor;
na sua mão está a minha indignação.
Eu o enviarei a uma nação pérfida,
e lhe ordenarei que marche
contra um povo que eu olho com furor,
para que leve dele os despojos,
o ponha a saque e o calque aos pés
como a lama das ruas.
Mas ele não o julgará desta maneira,
nem o seu coração pensará assim.
O seu coração somente pensará
em destruir e exterminar numerosas nações.
Mas quando o Senhor tiver cumprido
todas as suas obras
no monte Sião e em Jerusalém,
visitará o fruto do orgulhoso coração do rei Assur,
e a arrogância dos seus olhos altivos.
Porque ele disse:
Foi pelo esforço de minha mão que eu fiz isso,
e foi com a minha sabedoria que o entendi,
como se a vara se levantasse contra o que a maneja,
e como se o bastão se orgulhasse,
ele que não é mais do que um pau".

Is. 10, 5-7, 12, 15

Assur, pois, é para Isaías a personificação do coração orgulhoso, da arrogância dos olhos altivos, da soberba que se levanta contra Deus. Por extensão, é toda a vida de pecado, cuja raíz é o orgulho, assim como a humildade é a raíz da vida da virtude.

A espada que será espada mas não será espada de homem é um símbolo comum nas Sagradas Escrituras para significar a palavra de Deus. Ao dizer Isaías que não será espada de homem o profeta quer mostrar explicitamente que quer entender por este termo seu sentido figurativo. Na própria profecia de Isaías a palavra de Deus e a pregação do Messias é tomada como sendo uma espada:

"O Senhor me chamou",

diz o futuro Messias pela boca de Isaías,

"desde o ventre de minha mãe
e tornou a minha boca como uma espada afiada".

Is. 49, 2

"Uma flor brotará sobre a raíz de Jessé,
sobre quem repousará o Espírito do Senhor.
Ele ferirá a terra com a vara de sua boca
e o ímpio com o sopro de seus lábios".

Is. 11, 1-4

Este símbolo é recolhido no Novo Testamento com a tranqüilidade de quem menciona alguma coisa já há muito bem conhecida. Na Epístola aos Hebreus São Paulo diz que

"a palavra de Deus é viva,
eficaz e mais penetrante
do que qualquer espada de dois gumes";

Heb. 4, 12

e na Epístola aos Efésios ele aconselha aos cristãos que tomem

"a espada do Espírito,
que é a palavra de Deus".

Ef. 6, 17

A espada de que fala Isaías, uma espada que não é de homem, cujo fio levará Assur à queda, é, portanto, a espada de Deus, isto é, a pregação da palavra realizada pelo Messias e por aqueles a quem ele enviasse.

A menção do fogo e da fornalha que estão em Sião, de onde desceria o Senhor para pelejar contra Assur pela espada da palavra é também outro símbolo bem conhecido nas Escrituras. Trata-se do fogo da caridade, aquele fogo do qual Jesus disse:

"Vim espalhar um fogo sobre a terra,
e que mais desejo eu
senão que se acenda?"

Luc. 12, 49

Este fogo e esta fornalha são mencionados por Isaías como estando em Sião, de onde desceria a palavra de Deus como uma espada, porque trata-se de um fogo que se acende no Monte Sião pela contemplação, e será através da pregação destes homens inflamados pela caridade que, enviados às nações para anunciarem a glória do Senhor, farão Assur cair ao fio da espada. Então, diz ainda Isaías:

"A Lua se tornará vermelha
e o Sol se obscurecerá,
quando o Senhor dos exércitos reinar
no Monte Sião e em Jerusalém,
e quando for glorificado na presença de seus anciãos".

Is. 24, 23

A Lua se torna vermelha, como se estivesse manchada de sangue, quando ela principia a sair de um eclipse total, isto é, quando sua luz está bastante enfraquecida. A Lua e o Sol são as luzes pelas quais o homem se norteia no comum de sua vida. Quando a luz de Deus começar a reinar em Sião, portanto, esta luz será tão intensa que as luzes com que o homem costuma se orientar em sua vida natural parecerão fracas e obscurecidas.

Então, diz ainda Isaías,

"Jerusalém não será chamada
dali em diante `A Desamparada',
e a sua terra não será mais chamada `A Deserta',
mas serás chamada `Querida Minha',
e a tua terra `A Habitada'.
Porque assim como o jovem habita com a donzela
(que escolheu para esposa),
assim também habitarão em ti os teus filhos,
e assim como a esposa é alegria do esposo,
assim tu serás a alegria de teu Deus".

Is. 62, 4-5

Este texto não pode deixar de nos fazer pensar imediatamente naquele outro da Epístola aos Efésios, onde São Paulo diz:

"Maridos, amai as vossas mulheres,
como também Cristo amou a Igreja
e por ela se entregou a si mesmo,
para apresentar a si mesmo a Igreja gloriosa,
sem mácula, santa e imaculada.
Este mistério é grande;
refiro-me a Cristo e à Igreja".

Ef. 5, 25-27, 32

O texto de Isaías também não pode deixar de nos fazer pensar imediatamente em todo o livro do Cântico dos Cânticos, aquele livro em que, através de uma poesia de amor entre dois esposos, corretamente se pode ver tanto o mistério da união entre Cristo e a Igreja como uma descrição do amor envolvido na contemplação. Quando ali, por exemplo, se diz:

"Tu feriste o meu coração,
irmã minha esposa,
tu feriste o meu coração
com um só dos teus olhares,
e com um cabelo do teu pescoço",

Cant. 4, 9

não será isto a mesma coisa do que Isaías quer dizer quando profetiza

"E terei as minhas delícias em Jerusalém,
e a minha alegria no meu povo;
e acontecerá que,
antes que eles clamem,
eu os ouvirei,
e estando eles ainda a falar,
eu os atenderei"?

Is. 65, 19/24

No Cântico dos cânticos o autor sagrado nos quer mostrar, através da imagem do amor humano, o quanto Deus ama àqueles que habitam em Jerusalém.

Por isto é que também, nos Salmos, lemos passagens como esta:

"Quão amável é a tua morada,
Senhor dos exércitos.

A minha alma suspira, desfalece,
desejando os átrios do Senhor;
o meu coração e a minha carne
exultam pelo Deus vivo.

Até o pássaro encontra uma casa,
e uma andorinha um ninho
onde possa por os seus filhinhos:
bem aventurados, Senhor,
os que moram na tua casa,
eles te louvam sem cessar.

Em verdade, é melhor um só dia
nos teus átrios,
do que milhares,
fora deles.

Prefiro deitar-me
no limiar da casa de Deus,
a morar nas tendas dos pecadores.

Senhor Deus dos exércitos,
bem aventurado o homem
que em ti confia".

Salmo 84

4. Primeira conclusão.

Como uma primeira conclusão deste apanhado de notas queremos colocar uma das muitas que Ricardo de São Vitor espalhava em seus comentários às Sagradas Escrituras:

"Irmãos caríssimos,
não tenhamos ouvidos apenas para ouvir,
mas para entender.
Verdadeiramente possui ouvidos
aquele que possui a capacidade de entender
e o afeto de amar as coisas
que por Deus nos são prometidas.
Cabe agora a nós sermos diligentemente atentos
às coisas que estão aqui escritas.
Procuremos na Sagrada Página
não apenas a erudição,
mas a edificação,
para que possamos alcançar
aquele prêmio que nos é proposto".

5. Segunda conclusão.

Todas as coisas anunciadas por Isaías se cumprem em botão sempre que alguém, renunciando ao pecado, pela fé em Cristo e pelo amor, recebe a graça do Espírito Santo e se incorpora à sua Igreja.

Elas passam a se cumprir de uma maneira mais manifesta diante dos homens quando, pelo auxílio da graça que nos chega através de Cristo, pela perfeita renúncia a si mesmo, por uma profunda e contínua prática das virtudes, pelo estudo, pela reflexão e pela oração, é concedida ao homem a graça da contemplação, que nada mais é do que o exercício intenso e simultâneo na alma humana das virtudes teologais da fé, esperança e caridade. Quando ocorre isto, verifica-se então no homem a sétima bem aventurança de que nos fala Jesus no Evangelho de Mateus:

"Bem aventurados os pacíficos,
porque serão chamados filhos de Deus".

Mat. 5, 9

O texto, efetivamente, não diz `porque serão filhos de Deus', mas porque `serão chamados filhos de Deus', isto é, porque a condição de sua filiação divina se manifestará de modo tão evidente diante dos homens que eles próprios espontaneamente passarão a chamá-los de filhos de Deus. Era a estes que Jesus se dirigia, quando pediu:

"Assim brilhe a vossa luz diante dos homens,
para que vejam as vossas boas obras,
e glorifiquem o vosso Pai, que está nos céus".

Mat. 5, 16

Que se pode concluir destes ensinamentos?

"Nosso Criador",

dizia Santo Antão em suas cartas,

"em sua bondade,
quiz reconduzir-nos a nosso estado original,
que jamais deveria ter desaparecido.
Ele não se poupou,
mas visitou suas criaturas para salvá-las todas.
Verdadeiramente nada nos faltou
em tudo o que Ele empreendeu por nossa miséria.
A seus profetas ordenou que nos instruíssem,
a seus apóstolos prescreveu
que nos evangelizassem.
Mais ainda, pediu a seu Filho único que tomasse,
por nossa causa, a condição de escravo.
Ele se entregou por todos nós;
já Criador dos homens,
vem ainda curá-los.
É preciso, pois,
que o homem dotado de razão
se examine e se interrogue
sobre o que poderia retribuir a Deus
por todos estes bens dEle recebidos".

Cabe agora a nós, graças à vinda de Cristo, fazer com que a profecia de Isaías se manifeste de maneira evidente sobre a terra.

São Paulo, 19 de setembro de 1995