Orígenes
185 - 256 DC

DE PRINCIPIIS

PRÓLOGO



1.

Todos os que crêem e estão certos de que a graça e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo (Jo. 1, 17) e que sabem Cristo ser a verdade, segundo o que Ele próprio disse:

"Eu sou a verdade",

Jo. 14, 6

buscam a ciência que exorta os homens a viver bem e bem aventuradamente em nenhum outro lugar senão nas próprias palavras e ensinamentos de Cristo.

Dizemos, porém, serem palavras de Cristo não apenas aquelas que Ele ensinou ao fazer-se homem e vivido na carne, pois, de fato, Cristo, o Verbo de Deus, estava em Moisés e nos profetas. Pois, sem o Verbo de Deus, como poderiam ter profetizado de Cristo? Se não fosse nossa intenção dar a esta obra toda a brevidade que lhe seja possível, não seria difícil demonstrar esta afirmação assinalando, nas Divinas Escrituras, como Moisés ou os profetas falaram ou fizeram tudo o que fizeram cheios do Espírito de Cristo. Julgo, para tanto ser suficiente utilizar apenas este testemunho de São Paulo, tirado da epístola que ele escreveu aos Hebreus, em que ele diz:

"Pela fé Moisés, depois de grande,
negou ser filho da filha de Faraó,
escolhendo antes ser afligido
com o povo de Deus
que gozar a delícia transitória
do pecado,
considerando maior riqueza
[os opróbrios] de Cristo
que os tesouros dos egípcios".

Heb. 11, 24-26

Paulo também nos indica que Cristo, depois de sua ascensão aos céus, falou em seus apóstolos, quando nos diz:

"Porventura quereis
por à prova Cristo,
que fala em mim?"

II Cor. 13, 3

2.

Entretanto, muitos daqueles que declaram crer em Cristo discordam entre si não apenas em coisas pequenas e mínimas como também em grandes e máximas. Discordam sobre Deus, sobre o Senhor Jesus Cristo e sobre o Espírito Santo, e não só sobre estas coisas, como também sobre as demais criaturas, como as santas dominações ou virtudes. Parece-nos necessário, portanto, estabelecer primeiro uma linha certa e uma regra manifesta para que em seguida possamos investigar também as demais coisas. Embora haja muitos entre gregos e bárbaros que afirmem possuir a verdade, depois que acreditamos que Cristo é o Filho de Deus, deixamos de procurá-la entre aqueles que a sustentam por meio de falsas opiniões, por nos termos persuadido que é do próprio Cristo que a devemos aprender. Já que muitos, porém, são os que consideram serem de Cristo e que, apesar disto, entre eles mesmos há quem pense diversamente dos que os antecederam, devemos observar a pregação da Igreja que nos foi transmitida pela ordem de sucessão desde os Apóstolos e que nela permanece até hoje, somente crendo naquela verdade que em nada discorde da tradição eclesiástica e apostólica.

3.

Importa também saber que os santos apóstolos, ao pregar a fé de Cristo, creram que algumas coisas fossem necessárias para todos, mesmo para os que parecessem os mais preguiçosos para com a investigação da ciência divina. A estas no-las quiseram transmitir de modo manifestíssimo, deixando, porém, as suas razões à investigação daqueles que, pela sua excelência, tivessem merecido os dons do Espírito, e principalmente aos que tivessem alcançado, pelo próprio Espírito Santo, os dons da palavra, da sabedoria e da ciência. Quanto ao demais, porém, mencionaram apenas a sua existência, silenciando sobre o seu modo e sobre a sua origem, certamente para que os mais dedicados e amantes da sabedoria, quaisquer que, entre os seus pósteros, estes viessem a ser, pudessem ter um exercício no qual aplicassem o fruto de seu engenho, isto é, todos aqueles que se preparassem para se tornarem dignos e capazes de acolherem a sabedoria.

4.

As coisas que nos foram transmitidas pela pregação apostólica de modo manifesto são as seguintes.

Primeiramente, que há um só Deus que tudo criou e ordenou e que, quando nada existia, fêz o Universo, Deus desde a primeira criatura e fundação do mundo, Deus de todos os justos, de Adão, de Abel, de Set, de Enós, de Enoc, de Noé, de Sem, de Abraão, de Isaac, de Jacó, dos doze patriarcas, de Moisés e dos profetas. E que este Deus, nos últimos dias, assim como havia prometido anteriormente pelos seus profetas, enviou Nosso Senhor Jesus Cristo, que primeiro haveria de chamar a Israel, depois também os gentios, após a perfídia do povo de Israel. Este Deus, justo e bom, Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, foi quem nos deu a Lei e os Profetas e o próprio Evangelho, o qual é também o Deus dos apóstolos, assim como do Velho e do Novo Testamento.

Em segundo lugar, que o próprio Jesus Cristo que veio (ao mundo) foi gerado do Pai antes de toda a criatura. Ele mesmo, que serviu ao Pai na criação de todas as coisas, e que por meio dele todas as coisas foram feitas, humilhando-se a si mesmo nos últimos tempos, encarnou-se feito homem. Sendo Deus, permaneceu sendo Deus ao fazer- se homem. Assumiu um corpo semelhante ao nosso corpo, deste diferindo apenas por ter nascido de uma virgem e pelo Espírito Santo. E também que este Jesus Cristo nasceu e padeceu de verdade, e não sofreu a morte comum a todos apenas imaginariamente, mas morrendo verdadeiramente. Verdadeiramente também ressuscitou dos mortos e, depois da ressurreição, tendo convivido com os seus discípulos, subiu aos céus.

Em terceiro lugar, os apóstolos nos manifestaram o Espírito Santo, associado em honra e dignidade ao Pai e ao Filho. Nisto, porém, já não se distingue manifestamente se o Espírito Santo é gerado ou não gerado, ou se deve ser tido também ele mesmo como Filho de Deus ou não. São estas coisas que devem ser investigadas com o melhor de nossa capacidade através de uma cuidadosa busca a partir das Sagradas Escrituras.

Prega-se também manifestamente nas igrejas que este Espírito inspirou cada um dos santos, dos profetas e dos apóstolos, e que não é outro o Espírito pelo qual foram inspirados os antigos e aqueles que viveram no tempo do advento de Cristo.

5.

Depois disto foi-nos transmitido também que a alma, possuindo substância e vida própria, ao abandonar este mundo, será remunerada de acordo com os seus merecimentos, havendo de fruir a herança da vida eterna e da bem aventurança, se a isto houver dirigido os seus atos, ou de ser entregue ao fogo e suplício eternos, se a isto houver se curvado pela culpa de seus crimes. Haverá também um tempo para a ressurreição dos mortos, quando este corpo que agora

"semeado na corrupção,
ressuscitará na incorrupção;
semeado na ignomínia,
ressuscitará na glória".

I Cor. 15, 42-43

Está também definido na pregação da Igreja que toda alma racional possui vontade e livre arbítrio, e que há também para ela uma luta a ser travada contra o demônio e seus anjos e forças adversas, já que eles trabalham para onerá-la de pecados, enquanto que nós, se vivermos retamente e com conselho, devemo-nos esforçar em nos despojarmos deste jugo. Deve-se entender, por conseguinte, que ninguém de nós está submetido à necessidade, de tal modo que, ainda que não queiramos, sejamos a qualquer custo obrigados a fazer coisas boas ou más. Se, de fato, temos nosso livre arbítrio, talvez algumas forças poderão impugnar-nos ao pecado, assim como outras também poderão ajudar-nos à salvação; certamente, porém, não seremos obrigados por necessidade a fazer o bem ou o mal, embora seja isto que julguem que aconteça aqueles que dizem que o curso e o movimento das estrelas seja a causa dos atos humanos, não apenas daqueles que ocorrem além da liberdade do arbítrio, mas também daqueles submetidos ao nosso poder.

Se a alma, porém, no-la é transmitida pelo sêmen, de tal modo que sua razão ou substância esteja contida no próprio sêmen corporal, ou se tenha algum outro início, e se este início é gerado ou não gerado, ou se é posto no corpo desde fora ou não, nenhuma destas coisas é possível ser distingüida como suficientemente manifesta pela pregação.

6.

Quanto ao demônio, seus anjos e forças adversas, a pregação da Igreja ensina que realmente existem. O que porém eles sejam, ou como sejam, não está claramente exposto. Muitos, porém, são de opinião que o demônio havia sido um anjo o qual, tornando-se apóstata, persuadiu uma multidão de anjos a caírem consigo, os quais agora são chamados de seus anjos.

7.

Faz parte também da pregação da Igreja que este mundo foi criado, que começou em um determinado tempo e que há de acabar pela sua própria corrupção. O que havia, porém, antes que este mundo existisse, ou o que haverá depois que este mundo já não existir, isto já não é tido por muitos como coisa manifesta. Não há palavra evidente sobre estas coisas na pregação da Igreja.

8.

Finalmente, também, que as Sagradas Escrituras foram escritas pelo Espírito de Deus e que possuem um sentido que não é apenas o manifesto, mas também um outro oculto para muitos. As coisas que foram escritas, de fato, são formas de certos mistérios e imagens das coisas divinas. A este respeito há uma só sentença em toda a Igreja, que toda a lei é espiritual e que as coisas que a lei espiritualiza não são conhecidas por todos, mas apenas por aqueles aos quais a graça do Espírito Santo é concedida na palavra de sabedoria e de ciência.

9.

A palavra `assomaton', isto é, `incorpóreo', é inusitada e desconhecida não somente para muitos outros, como também para nossas Escrituras. Se alguém no-la quiser apontar no livro que se chama "A Doutrina de Pedro", onde o Salvador parece dizer aos discípulos:

"Não sou um demônio incorpóreo",

deve-se-lhe responder, em primeiro lugar, que este livro não é tido como pertencente aos livros da Igreja, e deve- se-lhe mostrar que esta escritura não é nem de Pedro nem de qualquer outro que tivesse sido inspirado pelo Espírito de Deus. Mas, ainda que isto concedêssemos, o sentido da palavra `incorpóreo' neste texto não é o mesmo que se depreende dos escritos dos autores gregos e gentios, quando os filósofos disputam sobre a natureza incorpórea. Neste livro fala-se de demônio incorpóreo no sentido em que, qualquer que seja o hábito ou o invólucro do corpo do demônio, ele certamente não é semelhante a este nosso corpo grosseiro e visível. Devemos ler o que está dito segundo o sentido de quem compôs esta escritura, que é se um corpo como o que possuem os demônios é naturalmente sutil e como uma tênue aura, e por isso mesmo considerado ou dito incorpóreo por muitos, ou se se trata de um corpo sólido e palpável. De fato, segundo o costume dos homens, tudo o que for daquele modo é chamado pelos mais simples e imperitos de incorpóreo, como quando dizem que este ar que respiramos é incorpóreo, por não ser um corpo que possa ser apalpado e guardado, ou que possa oferecer resistência a quem o empurre.

Investigaremos, porém, se a própria realidade que os filósofos gregos chamam de `assomaton', isto é, `incorpóreo', se encontra nas Sagradas Escrituras com outro nome. Deve-se investigar, também, como o próprio Deus deve ser entendido, se corpóreo e dotado de alguma forma, ou se possuidor de outra natureza que não a dos corpos, o que também em nossa pregação não é manifestamente assinalado. O mesmo também deve ser investigado de Cristo e do Espírito Santo, mas não de toda alma e de toda criatura racional.

10.

Pertence também à pregação da Igreja a existência de anjos de Deus e de boas forças que o auxiliam para a consumação da salvação dos homens. Mas quando eles foram criados, ou quais e como são, não é assinalado de modo completamente manifesto. Quanto ao sol, à lua e às estrelas, se são animados ou destituídos de alma, não no- lo é transmitido manifestamente.

Importa, portanto, que use destas coisas como de elementos e fundamentos, segundo o mandamento que diz

"Iluminai-vos pela luz da ciência",

Os. 10, 2

todo aquele que deseje construir uma série e um corpo de razões de todas estas coisas, para investigar por meio de afirmações manifestas e necessárias o que haja de verdade em cada uma delas, e edificar um corpo de exemplos e afirmações a partir do que tiver encontrado nas Sagradas Escrituras ou que tiver alcançado em conseqüência de sua própria investigação e método correto.