Hugo de S. Vitor

TRATADO DOS TRÊS DIAS

I

Introdução, extraída dos
livros do Didascalicon



1.

A Sabedoria.

A sabedoria é a primeira entre todas as coisas apetecíveis, pois nela encontramos a forma do bem perfeito.

A sabedoria ilumina o homem para que se conheça a si mesmo: este mesmo homem, se não alcançar o entendimento de como foi feito além de todas as demais coisas, acabará se tornando semelhante a todas estas demais coisas. Mas a alma imortal, adornada pela sabedoria, encontra o seu princípio e conhece o quanto é indecoroso buscar qualquer coisa fora de si para quem aquilo que ela própria já é pode satisfazê-la. Estava escrito no tripódio de Apolo:

"Conhece-te a ti mesmo",

pois, de fato, se o homem não se esquecesse de sua origem, conheceria o quanto é nada tudo aquilo que está submetido à mutabilidade.

A dignidade de nossa natureza é tal que todos a possuem por igual, mas nem todos a conhecem por igual. A alma adormecida pelas paixões do corpo, seduzida e conduzida pelas formas sensíveis para fora de si esqueceu-se do que era, e nada mais se lembrando ter sido, julga também não ser nada mais do que aquilo que vê. Ela pode, porém, ser reparada pela doutrina que ensina a conhecer a nossa natureza e a não buscar nas coisas exteriores aquilo que em nós mesmos podemos encontrar.

Por estes motivos podemos dizer que a maior de todas as consolações na vida é o estudo da sabedoria; que aquele que a encontrou é feliz, e que aquele que a possui é bem aventurado.

2.

A Filosofia.

Pitágoras foi o primeiro que chamou de filosofia ao estudo da sabedoria, preferindo ser conhecido como filósofo do que como sábio, pois antes dele os homens que se dedicavam a este estudo chamavam-se sofos, isto é, sábios. Mas é belo que ele tivesse chamado aos que buscam a verdade de amantes da sabedoria em vez de sábios, porque a verdade é tão escondida que por mais que a mente se inflame em seu amor e se disponha à sua busca, ainda assim é difícil que possa vir a compreender a verdade tal como ela é. Pitágoras, porém, estabeleceu a filosofia como a disciplina daquelas coisas que verdadeiramente existem e que são, em si mesmas, substâncias imutáveis.

A filosofia é o amor, o estudo e a amizade da sabedoria; não porém desta sabedoria que trata de ferramentas, ou de alguma ciência ou notícia sobre algum método fabril, mas daquela sabedoria que, não necessitando de nada, é uma mente viva e a única e primeira razão de todas as coisas. Este amor da sabedoria é uma iluminação da alma inteligente por aquela pura sabedoria e como que um chamado que ela faz ao homem, de tal modo que o estudo da sabedoria se nos apresenta como uma amizade daquela mente pura e divina. Esta sabedoria impõe a todo gênero de almas os benefícios de sua riqueza, e as conduz à pureza e à força própria de sua natureza. Daqui nasce a verdade das especulações e dos pensamentos, e a santa e pura castidade dos atos.

3.

Diversas definições de filosofia.

A filosofia é o amor da sabedoria que, não necessitando de nada, é uma mente viva e a única e primeira razão de todas as coisas. Esta definição diz respeito mais à etimologia do nome. De fato, filos em grego significa amor em latim, e sofos sabedoria, de onde que filosofia é o amor da sabedoria. Acrescentando esta definição que

"não necessitando de nada,
é uma mente viva
e a única e primeira razão
de todas as coisas",

quer ela com isto designar a sabedoria divina que não necessita de nada, porque nada contém a menos, mas simultaneamente contempla o passado, o presente e o futuro. É uma mente viva porque aquilo que alguma vez esteve na razão divina nunca é objeto de esquecimento. É a razão primeira de todas as coisas porque à sua semelhança foram feitas todas as coisas. Dizem, de fato, alguns, que aquilo de onde as artes tiram o seu agir, sempre permanece; todas as artes, porém, agem e pretendem reparar em nós a divina semelhança, a qual é para nós apenas uma forma, enquanto que para Deus é a sua natureza, à qual quanto mais nos conformamos, tanto mais nos tornamos sábios. É então que começa a brilhar em nós aquilo que na razão divina sempre existiu, transitando em nós aquilo que nEle existe incomutavelmente.

Segundo uma outra definição, a filosofia é a arte das artes, e a disciplina das disciplinas, isto é, à qual todas as artes e disciplinas dizem respeito.

A filosofia também é a meditação da morte, definição que mais convém aos cristãos, os quais, tendo desprezado as ambições deste mundo, pelo exercício desta disciplina vivem já à semelhança da pátria futura.

A filosofia também é a disciplina que investiga as razões prováveis de todas as coisas divinas e humanas. Neste sentido a razão de todos os estudos pertence à filosofia, e, embora nem toda administração seja filosofia, a filosofia de alguma maneira parece pertencer a todas as coisas.

4.

A restauração da semelhança divina no homem.

Há duas coisas que restauram a semelhança divina no homem, e estas são a especulação da verdade e o exercício das virtudes, pois nestas coisas o homem é semelhante a Deus, o qual é justo e sábio, embora o homem seja justo e sábio mutavelmente, e Deus imutavelmente.

5.

Nem todos chegam ao conhecimento.

Mas devemos mencionar agora constatar-se que, embora haja uma multidão de aprendizes, dentre os quais diversos se sobressaem pelo engenho e se destacam pelo exercício, tão poucos e tão numeráveis encontramos que alcançam a ciência. Faço silêncio daqueles que são obtusos e tardios para o entendimento. O que mais me move e mais me parece digno de indagação é de onde se origina acontecer que duas pessoas, iguais pelo engenho e dedicam-se a uma mesma lição com igual estudo, não alcançam por um efeito semelhante o seu entendimento.

A primeira coisa que se deve considerar a este respeito é que em qualquer obra há duas coisas necessárias: a obra, e a razão da obra, as quais são tão conexas que uma sem a outra ou são inúteis ou pelo menos não tão eficazes. No sexto capítulo do Livro da Sabedoria está escrito:

"Melhor é a prudência
do que a fortaleza",

porque muitas vezes os pesos que não podemos mover com as nossas forças, podemos levantá-los utilizando a arte. Assim também acontece em qualquer estudo. Aquele que diante de uma multidão de livros não guarde o medo e a ordem da leitura, como que andando em círculos no meio de uma densa floresta, perde-se do reto caminho. É de pessoas assim que a Sagrada Escritura diz que

"estão sempre aprendendo, mas nunca
chegam ao conhecimento da verdade".

O discernimento vale tanto que sem ele todo ócio se torna torpeza, e todo trabalho se torna inútil; quem dera que todos nós o abraçássemos sempre!

6.

Três obstáculos iniciais para o estudante.

Há principalmente três coisas que costumam ser de obstáculo para os estudantes: a negligência, a imprudência e a sorte.

A negligência ocorre quando abandonamos inteiramente as coisas que devemos estudar, ou pelo menos as aprendemos com menor diligência.

A imprudência ocorre quando não observamos a ordem e o modo conveniente nas coisas que aprendemos.

A sorte ocorre nos eventos e nos acasos motivados algumas vezes pela natureza, outras pela pobreza, pela enfermidade, pela obtusidade natural da inteligência ou mesmo pela raridade dos mestres; porque se não se encontram os que ensinam, ou não se encontram os que ensinam corretamente, acamos por abandonar o nosso propósito.

Nestas coisas, portanto, a respeito da primeira, isto é, da negligência, o estudante deve ser admoestado; a respeito da segunda, isto é, a imprudência, o estudante deve ser instruído; a respeito da terceira, a sorte, o estudante deve ser ajudado.

7.

Procurar a verdade antes que o fraseado.

É necessário também que aquele que tiver iniciado este caminho procure aprender nos livros em que estudar não apenas pela beleza do fraseado, mas também pelo estímulo que eles oferecem à prática das virtudes, de tal maneira que o estudante procure neles não tanto a pomposidade ou a arte das palavras, mas a beleza da verdade.

8.

Que o estudo não seja uma aflição.

Saiba também que não chegará ao seu propósito se, movido por um vão desejo da ciência, dedicar-se às escrituras obscuras e de profunda inteligência, nas quais a alma mais se preocupa do que se edifica; e nem também se dedicar de tal maneira apenas ao estudo que se veja obrigado a abandonar as boas obras.

Para o filósofo cristão o estudo deve ser uma exortação, e não uma preocupação, e deve alimentar os bons desejos, não secá-los.

Como gostaria de mostrar àqueles que se puseram ao estudo por amor à virtude, e não às letras, o quanto é importante para eles que o estudo não lhes seja ocasião de aflição, mas de deleite! Quem, de fato, estuda as Escrituras como preocupação e, por assim dizer, as estuda para aflição do espírito, não é filósofo, mas negociante, e dificilmente uma intenção tão veemente e indiscreta poderá estar isenta de soberba.

Que direi então da lição do simples Paulo, que antes quisera cumprir a lei do que estudá-la? Este poderá ser para nós um exemplo, para que não sejamos ouvintes nem estudiosos da Lei, mas principalmente justos cumpridores diante de Deus.

9.

Como o estudo pode tornar-se uma aflição.

Deve-se considerar também que o estudo de duas maneiras costuma afligir o espírito, a saber, pela sua qualidade, se se tratar de um material muito obscuro, e pela sua quantidade, se houver demais para estudar. Em ambas estas coisas deve-se utilizar de grande moderação, para que não aconteça que aquilo que é buscado como uma refeição venha a ser utilizado para sufocar-nos. Há aqueles que tudo querem estudar; tu não contendas com eles, seja-te suficiente a ti mesmo: que nada te importe se não tiveres lido todos os livros. O número dos livros é infinito, não queiras seguir o infinito. Onde não existe o fim, não pode haver repouso; onde não há repouso, não há paz; e onde não há paz, Deus não pode habitar.

"Na paz",

diz o profeta no Salmo 75,

"fez o seu lugar,
e em Sião a sua morada".

Em Sião, mas na paz; é importante ser Sião, mas não perder a paz.

Ouve a Salomão, ouve ao sábio, e aprende a prudência:

"Meu filho",

diz ele,

"mais do que isto não busques;
não há fim para o fazer livros,
e a meditação freqüente
é aflição da carne".

Ec. 12

Onde, pois, está o fim?

"Ouçamos, pois, todos,
o fim deste discurso:
teme a Deus,
e observa os seus mandamentos,
isto é todo o homem".

Ec. 12

10.

A diferença entre principiantes e eruditos.

Ninguém julgue ter sido minha intenção repreender a diligência dos estudantes ao chamar-lhes a atenção para o que disse acima. Na verdade o que eu mais desejo é exortar os estudantes diligentes aos seus propósitos, e mostrar como aqueles que de boa vontade se dedicam ao aprender são dignos de louvor. Ocorre porém que acima eu falava aos já eruditos; agora, porém, aos que devem ser ensinados e que se iniciam na doutrina que é princípio da disciplina. O propósito dos eruditos deverá ser o exercício das virtudes; o propósito dos principiantes deverá ser o estudo, mas de tal maneira que nem os principiantes careçam de virtude, nem os eruditos abandonem inteiramente o estudo. Pois freqüentemente a obra que não foi precedida do estudo é menos prudente, assim como a doutrina à qual não se segue a boa obra é menos útil.

É necessário, portanto, e tarefa de grande importância, prevenir aos eruditos para que não ocorra talvez que voltem os seus olhos para aquilo que ficou para trás; e consolar aos principiantes se às vezes desejam já chegar onde aqueles estão.

Convém, portanto, exercitar a ambos e promover a ambos. Que ninguém volte para trás; seja permitido subir, não descer. Se, porém, tu ainda não és capaz de subir, permanece, enquanto isso, em teu lugar.

11.

Os quatro degraus para a perfeição futura.

Há quatro coisas nas quais se exerce a vida dos justos, as quais são como degraus pelos quais se elevam à futura perfeição. São estes a leitura ou doutrina, a meditação, a oração e a operação. Há ainda uma quinta que daí se segue, que é a contemplação, a qual é, de certo modo, o fruto das precedentes. Nela temos uma antecipação já nesta vida da futura recompensa da boa obra. Foi por isto que o salmista, falando dos preceitos de Deus e recomendando-os, logo em seguida acrescentou:

"Grande é a recompensa
para os que os observarem".

Salmo 18

12.

Ainda os cinco degraus.

Dos cinco degraus de que falamos, o primeiro, isto é, a leitura, pertence aos principiantes; o supremo, isto é, a contemplação, aos perfeitos. Quanto aos intermediários, será mais perfeito aquele que os tiver subido em maior número. Em outras palavras, o primeiro, isto é, a leitura, dá a inteligência; o segundo, a meditação, fornece o conselho; o terceiro, a oração, pede; o quarto, a operação, busca; o quinto, a contemplação, encontra.

Se, portanto, lês, e tens a inteligência, e conheceste o que se deve fazer, isto já é o princípio do bem, mas ainda não te será suficiente, não és perfeito ainda. Sobe, pois, na arca do conselho, e medita como poderás realizar aquilo que aprendeste que deve ser feito. De fato, há muitos que possuem a ciência, mas poucos foram aqueles que souberam de que modo era importante saber.

O conselho do homem, porém, sem o auxílio divino é enfermo e ineficiente; é necessário, pois, levantar-se à oração, e pedir o seu auxílio sem o qual nenhum bem pode ser feito; isto é, a sua graça, a qual, antes que tivesses chegado até aqui para pedi-la já te iluminava, e daqui para a frente será quem haverá de dirigir os teus passos para o caminho da paz, e de cuja única vontade depende que sejas conduzido ao efeito da boa operação.

Resta agora para ti que te prepares para a boa obra, de tal maneira que aquilo que pedes pela oração, mereças receber pela obra, se Deus contigo quiser operar. Não serás obrigado, serás ajudado. Se apenas tu operares, nada realizarás; se apenas Deus operar, nada merecerás. Opere Deus para que tu possas; opera tu para que algo mereças. O caminho pelo qual se vai à vida é a boa obra; aquele que corre por este caminho, busca a vida. Conforta-te e age virilmente. Esta via tem o seu prêmio; quantas vezes, fatigados pelos seus trabalhos, não somos ilustrados do alto pela graça, saboreando e vendo

"quão suave é o Senhor".

Salmo 33

E assim se realiza o que dissemos acima, que aquilo que a oração busca, a contemplação encontra.

13.

Como às vezes é necessário descer os degraus.

Viste portanto como subindo por estes degraus se chega à perfeição, de modo que aquele que permanecer no inferior não poderá ser perfeito.

Nosso propósito deverá ser, portanto, subir sempre; mas como a instabilidade de nossa vida é tanta, de modo que não podemos permanecer sempre no mesmo, somos freqüentemente obrigados a rever aquilo que fazemos e, para que não percamos aquilo em que já estamos, repetimos às vezes aquilo pelo qual passamos.

Em outras palavras, aquele que é vigoroso na obra, ora para que não desfaleça. Aquele que insiste nas preces, medita no que deve orar para que não ofenda ao orar. E aquele que às vezes confia menos no próprio conselho, consulta a leitura.

Assim ocorre que, embora seja a nossa vontade sempre a de subir, a necessidade nos força às vezes a descer, mas de tal maneira que nosso propósito consista na vontade, e não na necessidade. Seja nosso propósito o subir; o descer seja-lhe alheio, pois não este, e sim aquele, deve ser o principal.

14.

Interpõe uma oração.

Roguemos, pois, agora, à sabedoria, para que se digne resplandecer em nossos corações e iluminar-nos em seus caminhos, para introduzir-nos naquele banquete puro e sem animalidade.