IV

A Beleza das Criaturas



1.

Introdução.

Embora a beleza das criaturas seja perfeita de muitos e diversos modos, todavia há quatro modos principais nos quais consiste a sua beleza. Estes são a posição, o movimento, a espécie e a qualidade, os quais se alguém for capaz de investigar, encontrará neles a admirável luz da sabedoria de Deus.

Quisera eu poder discernir estas coisas com tanta delicadeza, poder narrá-las com tanta competência quanto posso ardentemente amá-las! É para mim uma doçura e uma alegria imensa tratar com freqüência destas coisas, nas quais simultaneamente o sentido é ensinado pela razão, a alma se deleita pela suavidade e o afeto é estimulado pela emulação de modo que nos maravilhamos juntamente com o salmista, e admirando clamamos:

"Quão admiráveis são as tuas obras,
ó Senhor!
Tudo fizeste com sabedoria."

Salmo 103

e também:

"Deleitaste-me,
ó Senhor,
com os teus feitos;
exulto com a obra de tuas mãos.

Quão magníficas são as tuas obras,
ó Senhor,
quão profundos os teus pensamentos!

O ignorante não conhece,
e o estulto não compreende estas coisas".

Salmo 91

De fato, todo este mundo sensível é como um livro escrito pelo dedo de Deus, isto é, criado pela virtude divina, e cada uma das criaturas são como figuras, não imaginadas pela opinião humana, mas instituídas por arbítrio divino para a manifestação da sabedoria de Deus invisível. Deste modo, assimo como um analfabeto que visse um livro aberto veria as figuras mas não conheceria as letras, assim também é o estulto e o "homem animal", que "não percebe as coisas que são de Deus" (I Cor. 2): nestas criaturas visíveis vê externamente a espécie, mas não lhes compreende internamente a razão. O homem espiritual, porém, pode julgar a todas as coisas, considerando externamente a beleza da obra, e concebendo internamente quão admirável é a sabedoria do Criador.

Por isto não há ninguém para quem as obras de Deus não sejam admiráveis. O ignorante admira nelas somente a espécie; o sábio, porém, através daquilo que vê externamente, busca o conhecimento profundo da sabedoria divina, como se em uma só e mesma Escritura um destes homens louvasse a cor e a forma das figuras e o outro louvasse o sentido e o significado.

É coisa excelente, pois, contemplar e admirar as obras divinas, mas para aquele que sabe verter a beleza das coisas corporais num uso espiritual.

Por isto é que também as Sagradas Escrituras tanto nos exortam a desejar as coisas admiráveis de Deus, para que dando crédito às coisas externas, cheguemos internamente ao conhecimeno da verdade. Por isto é que o salmista, considerando com isso já ter feito uma grande coisa, ainda promete continuar a fazê-lo, dizendo:

"Lembrei-me dos dias antigos:
meditei em todas as tuas obras,
e na obra das tuas mãos meditarei".

Salmo 142

E é por isto também que se diz em Isaías a alguns homens que ignoravam o seu Criador e ofereciam aos ídolos o culto devido a Deus:

"Quem jamais mediu as águas do mar
com côncavo da mão,
ou mensurou os céus com o palmo?
Quem suspendeu a terra inteira com três dedos,
pesou as montanhas em sua grandeza,
ou colocou as colinas em uma balança?

Aquele que está sentado sobre o globo da terra,
onde os seus habitantes parecem gafanhotos;
Ele, que desenrola os céus como uma lâmina,
e os estende como uma tenda para habitar".

Is. 40

E o salmista, novamente, em algum lugar, repreendendo os cultuadores dos ídolos, diz:

"Todos os deuses dos gentios são demônios;
o Senhor, porém, fez os céus".

Salmo 95

O que julgais que significa utilizar assim as obras de Deus como meio de afirmar a verdadeira divindade dizendo: "O Senhor, porém, fez os céus", senão que a criatura quando retamente considerada mostra ao homem o seu Criador? Consideremos, pois, quão grande são as coisas admiráveis de Deus, e pela beleza das coisas criadas busquemos aquele belo, o mais belo entre todos os belos, que é tão admirável e tão inefável que toda beleza transitória, ainda que seja verdadeira, a ele não pode ser comparada.

2.

Anuncia a ordem do que irá expor.

E porque dissemos acima que toda beleza visível consiste em quatro, vejamos agora, percorrendo-as pela ordem, como através delas se manifesta a sabedoria invisível de Deus.

Sei que tudo o que dissermos será menos, todavia não é decoroso que por isto silenciemos por completo, principalmente aqui onde se algo pode ser dito, deverá ser dito com o maior decoro.