XV

Os três dias da luz invisível



1.

Os dias do temor, da verdade e do amor.

Chegamos, o quanto Deus se dignou conceder-nos, ao conhecimento das coisas invisíveis partindo das visíveis. Retorne agora a nossa mente a si mesma e examine que utilidade possa tirar deste conhecimento.

De que nos servirá conhecer em Deus a elevação de sua majestade, se com isto não recolhermos para nós utilidade alguma?

Que poderemos, porém, trazer conosco ao retornarmos da intimidade da contemplação divina? O que traremos, ao retornarmos da região da luz, senão luz? Se viemos da região da luz, é conveniente e conveniente e necessário que tragamos conosco luz para dissolver nossas trevas. E quem poderá saber onde estivemos, se não retornarmos iluminados? Que se torne manifesto, portanto, que lá estivemos; que se torne manifesto o que lá contemplamos.

Se lá vimos a potência, tragamos a luz do temor divino. Se lá vimos a sabedoria, tragamos a luz da verdade. Se lá vimos a benignidade, tragamos a luz do amor. Que a potência incentive os tíbios ao amor; que a sabedoria ilumine os cegos pelas trevas da ignorância; que a benignidade inflame os gélidos pelo calor da caridade.

Olhai, vos peço, o que seja a luz, senão o dia; e o que sejam as trevas, senão a noite. Assim como os olhos do corpo têm os seus dias e suas noites, assim também os olhos do coração têm os seus dias e as suas noites.

Três são os dias da luz invisível, pelos quais se distingue o curso interior da vida espiritual. O primeiro dia é o temor, o segundo a verdade, o terceiro é a caridade.

O primeiro dia tem o seu Sol, e este é a potência; o segundo dia tem o seu Sol, é a sabedoria; o Sol do terceiro dia é a benignidade. A potência pertence ao Pai, a sabedoria ao Filho, a benignidade ao Espírito Santo.

Os dias que temos externamente diferem dos que temos internamente. Nossos dias exteriores, mesmo que não o queiramos, haverão de passar. Os interiores, porém, se assim o quisermos, poderão permanecer para sempre. Está escrito sobre o temor de Deus que "permanece pelos séculos dos séculos" (Salmo 18). Quanto à verdade, também, não pode haver dúvida sobre sua eterna permanência, pois, iniciando-se ainda nesta vida, alcançará em nós sua perfeição e plenitude quando Aquele que é a verdade se fizer manifesto após o término desta vida. Da caridade está escrito que "nunca passará" (I Cor. 13).

Bons dias são estes que nunca haverão de passar. Maus são os dias que não somente não permanecem para sempre, como nem sequer podemos retê-los ainda que por pouco tempo. Foi destes dias que disse o Profeta:

"O homem é como o feno,
e seus dias declinaram como a sombra".

Salmo 102

Estes são os dias merecidos pela culpa; aqueles os dias concedidos pela graça. Daqueles dias disse o profeta:

"Nos meus dias O invocarei".

Salmo 114

Este foi o mesmo que disse em outro lugar:

"Levantava-me no meio da noite
para que a ti me confessasse".

Salmo 118

O profeta o chama de seus dias, porque aos outros não tem amor. Foi assim que também disse Jeremias:

"Senhor, tu sabes que não desejei
o dia do homem".

Jer. 17

Estes são os dias de que Jó foi rico, do qual foi escrito que

"morreu velho e cheio de dias".

Jó 42

De fato, não poderia ser cheio dos outros dias, porque estes já tinham passado e já não mais eram.

Os maus conheceram somente os dias que existem externamente; quanto aos bons, que mereceram ver os interiores, estes não apenas não amam aos externos, como também os maldizem:

"Pereça",

disse o bem aventurado Jó,

"o dia em que nasci,
e a noite em que foi dito:
um homem foi concebido.
Converta-se em trevas este dia,
não o tenha em conta Deus,
lá no alto, e não o ilumine de luz".

Jó 3

Devemos, pois mais amar aqueles dias que são interiores, onde à luz não se seguem as trevas, onde os olhos interiores do coração puro são iluminados pelos esplendores do Sol eterno.

Foi também a estes dias que se referiu o salmista ao contar:

"Anunciai dia após dia
a sua salvação".

Salmo 95

O que é a sua salvação, senão o Jesus? Pois assim se traduz o nome de Jesus, ele significa o Salvador. Ele é dito o Salvador, porque por ele o homem é regenerado, para a salvação. Dele falou João, dizendo:

"A Lei foi dada por Moisés,
a graça e a verdade foram feitas
por Jesus Cristo".

Jo. 1

Ademais, Paulo Apóstolo chama Cristo Jesus de

"virtude de Deus
e sabedoria de Deus".

I Cor. 2

Se, pois, Jesus Cristo é a sabedoria de Deus, e por Jesus Cristo veio a verdade, conclui-se que a verdade provém da sabedoria divina. O dia, pois, da sabedoria é a verdade.

A própria sabedoria fala deste seu dia aos judeus, dizendo:

"Vosso pai Abraão exultou
por ver o meu dia,
viu-o e rejubilou".

Jo. 8

A verdade de Deus é a redenção do gênero humano, a qual foi primeiramente prometida. Ao manifestar-se posteriormente, o que mais fez senão mostrar-se veraz? Esta verdade foi cumprida, pois, de modo conveniente pela sabedoria, de quem provém toda verdade. Não foi enviado para cumprir a verdade outro senão aquele em quem reside toda a plenitude da verdade. Com justa razão Abraão exulta pelo dia da verdade, pois deseja que se cumpra a verdade, tendo visto este dia em espírito ao ter conhecido a vinda na carne do Filho de Deus para a redenção do gênero humano.

Que se diga, pois:

"Anunciai dia após dia
a sua salvação".

O dia segundo, do dia primeiro ao dia terceiro; o dia da verdade, do dia do temor ao dia da caridade.

O primeiro dia era o dia do temor; vem depois o outro dia, o dia da verdade. E dissemos que vem, não que o sucede, porque o anterior não cessa. Eis, então, já dois dias; o mesmo ocorre com o dia terceiro, com o dia da caridade, pois vindo este, aos anteriores não expulsa.

Bem aventurados sejam estes dias, que podem fazer a riqueza dos homens; onde chegando os futuros, os presentes não passam; onde aumentando o número, multiplica-se o resplendor.

2.

Os três dias na história da salvação.

Os homens compreenderam, em primeiro lugar, terem caído sob o jugo do pecado ao ter-lhes sido dada a Lei, tendo daí começado a temer a Deus como juiz por conhecerem suas iniqüidades. Temê-lo já era conhecê-lo, porque de maneira alguma poderiam temê-Lo se dEle nada conhecessem. Este conhecimento já era alguma luz; já era dia, mas não era dia claro, escurecido que estava pelas trevas do pecado.

Veio então o dia da verdade, o dia da salvação, que destruiria o pecado, iluminaria a claridade do dia anterior, e não tiraria o temor, mas o mudaria para melhor.

Mas esta claridade não seria ainda plena até que a caridade não se acrescentasse à verdade. De fato, foi a própria Verdade que disse:

"Muito tenho ainda para vos dizer,
mas não o poderíeis suportar.
Quando vier o Espírito da verdade,
vos ensinará toda a verdade".

Jo. 14

Toda a verdade, pois, para que removesse o mal e restaurasse o bem.

Eis o que são os três dias: o dia do temor, que manifesta o mal; o dia da verdade, que remove o mal; o dia da caridade, que restitui o bem.

O dia da verdade clarifica o dia do temor; o dia da caridade clarifica o dia do temor e o dia da verdade; até que a caridade se torne perfeita e toda verdade seja perfeitamente manifestada e o temor da pena se transforme no temor da reverência.

3.

Os três dias na morte e ressurreição de Cristo.

"Anunciai",

pois,

"dia após dia,
a sua salvação".

Salmo 95

Destes dias falou o profeta Oséias, ao dizer:

"Vivificar-nos-á depois de dois dias;
no terceiro dia nos reerguerá".

Os. 6

Ora, todos nós ouvimos como Nosso Senhor Jesus Cristo, ao ressuscitar no terceiro dia, vivificou-nos e re-ergueu-nos da morte, e com isto exultamos. Justo é agora que o recompensemos pelo seu benefício. De uma certa forma já tínhamos ressuscitado nEle ao ter ressurgido no terceiro dia; resta agora que nós, por causa dele e por Ele, ressuscitemos também no terceiro dia fazendo com que ele ressuscite em nós.

Não é de se crer que não queira ser retribuído naquilo que antes quis nos dar. Assim como ele quis ter três dias para realizar em si e por si a nossa salvação, assim também nos concedeu três dias para que realizemos, por meio dele, a nossa salvação. Aquilo, porém, que se realizou nele não foi apenas remédio, mas também exemplo e sacramento; foi necessário, pois, que se realizasse externamente e de modo visível, para que significasse aquilo que em nós deveria realizar-se de modo invisível. Seus dias foram exteriores; nossos dias devem ser buscados internamente.

Temos, portanto, três dias interiores pelos quais nossa alma se ilumina. Ao primeiro dia pertence a morte; ao segundo, a sepultura; ao terceiro, a ressureição. O primeiro dia é o temor, o segundo a verdade, o terceiro dia é a caridade.

O dia do temor é o dia da potência, é o dia do Pai; o dia da verdade é o dia da sabedoria, dia do Filho; o dia da caridade é o dia da benignidade, dia do Espírito Santo.

O dia do Pai, o dia do Filho e o dia do Espírito Santo, no resplendor da divindade são um só dia; mas na iluminação da nossa mente, o Pai, o Filho e o Espírito Santo têm como que dias distintos; não para se crer que a Trindade, inseparável na sua natureza, possa ser separada em sua operação, mas para que a distinção das pessoas possa ser compreendida na distinção das obras.

Quando, pois, nosso coração exulta ao considerar com admiração a onipotência de Deus, é o dia do Pai. Quando a sabedoria de Deus, examinada pelo conhecimento da verdade, ilumina nosso coração, é dia do Filho. Quando se nos apresenta a benignidade de Deus a inflamar o nosso coração, é dia do Espírito Santo.

A potência faz tremer, a sabedoria ilumina, a benignidade alegra.

No dia da potência morremos pelo temor. No dia da sabedoria somos sepultados pela contemplação da verdade da pompa deste mundo. No dia da benignidade ressuscitamos pelo amor e pelo desejo dos bens eternos.

Foi por isto que Cristo morreu no sexto dia da semana, no sétimo ficou no sepulcro e ressuscitou no oitavo. É de modo semelhante que no seu dia a potência nos mata pelo temor para os fortes desejos da carne; em seguida a sabedoria no seu dia nos sepulta no esconderijo da contemplação; finalmente, em seu dia a benignidade, vivificando-nos pelo desejo do amor divino, nos faz ressuscitar; pois o dia sexto pertence ao trabalho, o sétimo ao repouso, e o oitavo à ressurreição.

Hugo de São Vítor