Comentário ao
Cântico dos Cânticos

33b e 34




"Eu durmo,
mas o meu coração vela;
eis a voz do meu amado,
que bate, dizendo:
`Abre-me, irmã minha, amiga minha,
pomba minha, imaculada minha,
porque minha cabeça está cheia de orvalho,
e os meus anéis do cabelo
cheios de gotas da noite'".

Cant. 5, 2

A voz do amado que bate é a inspiração derramada no coração da esposa para que, amando o esposo, por causa de seu amor ame também o próximo, tomando-o sob os seus cuidados e estudando como ajudá-lo a alcançar a salvação. O esposo deseja que sua amada ensine, governe, admoeste, console e ore, preparando assim nos outros uma via para si mesma. Para que ela possa subir ainda mais a tanto, chama-a de irmã, isto é, de co-herdeira; de amiga, isto é, cônscia dos segredos; de pomba, isto é, iluminada pelo Espírito Santo; de imaculada, isto é, purificada dos pecados sórdidos, como se lhe dissesse:

`Porque tanto fiz para ti,
corresponde também tu
aos meus benefícios,
e exerce a graça de que
és especialmente dotada
sobre os meus demais membros'.

Acrescenta-lhe, então, no fim:

"Minha cabeça está cheia de orvalho,
e os meus anéis do cabelo de gotas da noite".

Esta expressão significa o mesmo que se dissesse:

"Sendo Deus,
estou repleto da misericórdia
e do orvalho da graça,
mas aqueles que a mim inerem pela fé
estão repletos da cegueira
e das gotas do pecado".

A cabeça de Cristo é Deus, e ele próprio, enquanto homem, é cabeça da Igreja, e não recebe a graça por medida (Jo. 3, 34). Ele chora, pois, a nossa miséria e, por nos macularmos de muitos modos pelo pecado, quer misericordiosamente mostrar-se misericordioso. Ele é o monte Hermon, isto é, a luz exaltada, da qual desce o orvalho da graça para o monte Sião (Salmo 132, 3), a santa Igreja, para que, onde superabundou o delito, se multiplique também a sua graça (Rom. 5, 20). Pede, portanto, à sua amada que lhe abra, sugerindo-lhe também que ela, assim como ele, queira ser misericordiosa e luz para iluminar a cegueira.

A esposa, ouvindo assim a voz do amado que bate e a exorta à salvação e ao cuidado do próximo, embora ame ao esposo e esteja pronta à obediência da vontade de seu amado, teme, todavia, afastar-se da contemplação e envolver-se novamente com os cuidados do mundo. De onde que acrescenta:

"Despojei-me de minha túnica,
como hei de vesti-la novamente?
Lavei os meus pés,
como tornarei a sujá-los?"

Cant. 5, 3

A túnica é um indumento terreno; podemos, por ela, corretamente entender a ação terrena. Teme, portanto, envolver-se com as ações terrenas, das quais se recorda te-las desprezado, e ser arrancada da contemplação celeste, caindo das coisas superiores e espirituais para ocupar-se com as inferiores. Lembra-se de ter lavado os seus pés, isto é, os seus afetos, e amedronta-se de maculá-los novamente, estes pés que ela havia colocado junto às portas de Jerusalém e ali os tinha feito permanecer. Havia-os lavado com águas vivas, isto é, pela compunção do coração, tendo-os depois disto feito permanecer pela contemplação nas coisas supremas e celestes. Teme, pois, não sem motivo, tornar a sujá-los se vier a distrair-se destas coisas, envolvendo-se com os cuidados exteriores.

Não nos deve causar espanto se quem estabeleceu os pés nas coisas celestes teme exercer o que é terreno. Assim tremendo e flutuando, seu amado a consola e a ilumina, penetrando em seu coração com uma maior graça. É isto o que significa o que se segue:

"O meu amado meteu a sua mão
pela abertura (da porta),
e as minhas entranhas estremeceram
ao seu toque".

Cant. 5, 4

A mão que entra pela porta designa a visitação da graça. O amado infunde-lhe a graça como que pela fenda, pois não perfunde com ela toda a alma, visitando-a, em vez disso, por uma certa medida da graça, e a quem visita assim em parte, não ilumina plenamente. Pela mão do amado pode entender-se esta operação e dom da graça, as entranhas sendo a própria mente na qual são cosidos os pensamentos, assim como a comida é digerida no ventre. O amado, portanto, introduz a sua mão pela abertura da porta quando sugere à alma os benefícios que lhe concedeu pelo Espírito Santo, quando lhe recorda como a redimiu pela sua morte, como lhe concedeu os dons de sua graça e como a conservou pela guarda destes mesmos dons. Concedeu-lhe, de fato, a vida e a misericórdia, e sua visita guardou-lhe o espírito. Concedeu- lhe a vida morrendo por ela e infundindo-lhe a sua misericórdia; sua visita guardou-a conservando-a da queda do pecado. Fazendo uma abertura e um caminho ao seu coração, Deus traz estas coisas à memória de sua amada. Tocada e inflamada ao amor, ela estremece e se amedronta se não corresponder a tantos benefícios o tanto quanto lhe for possível. Assim tocada e estremecida mais se inflama ao amor de Deus e do próximo, exclamando, conforme se lê em seguida:

"Levantei-me para abrir ao meu amado,
minhas mãos destilaram mirra,
meus dedos ficaram cheios
da mirra mais preciosa".

Cant. 5, 5

Levanta-se para abrir ao amado aquela que, aceitando a graça e dispondo-se a recebê-la mais amplamente, volta-se ao mais fervente amor e à mais estudada persistência com o cuidado e a salvação do próximo. Exercita-se então no amor de Deus ou contemplação e apresenta obras de misericórdia para a utilidade do próximo segundo que se lhe manifeste a necessidade e o tempo o exija. Ora por uns, consola a outros, a outros dá o conselho de salvação e, se o tempo assim o exigir, está pronta para receber o governo ou exercer o ofício de ensinar, sendo para tanto visitada pela graça e esforçando- se em corresponder e conformar-se a ela.

Inflama-se também à mortificação de tudo quanto possa depreender em si de carnal. Embora já tivesse mortificado os pecados e os vícios, pela graça mais abundantemente recebida, todavia, aumenta-se-lhe o conhecimento, encontrando em si mais a fazer do que o que já havia refeito. Mais iluminada, conhece melhor os seus defeitos e, feita melhor, mais se despreza. Condena então os pequenos defeitos que antes tolerava e, tanto pelas palavras como pelos pensamentos, entende ter cometido muitos pecados que antes considerava como menos maus. Insistindo, portanto, neste trabalho de mortificação,

"suas mãos destilaram mirra",

entendendo-se pelas mãos este trabalho e pela mirra esta mortificação.

"E os seus dedos estavam cheios
da mirra mais preciosa",

porque tudo fêz discretamente e com intenção pura. Pelos dedos entende-se a discrição, pela qual divide o que retamente oferece, isto é, faz discretamente o que bem intenciona. Pela mirra mais preciosa entende-se a pura intenção na mortificação, porque busca a Deus de tal modo que mortifica a vanglória e despreza os louvores exteriores e sempre contempla com seus olhos, isto é, com a sua intenção, a Deus e ao futuro e verdadeiro amor. Seus dedos são ditos cheios por esta mortificação, porque a exerce tanto pela mente como pelo corpo. Castiga o corpo pela abstinência, pela vigília e pelos demais trabalhos; amputa as delícias e os gozos terrenos, sabendo que não será encontrada a sabedoria, ou a graça de Deus, na terra dos que vivem suavemente (Jó 28,12-13); ao contrário, quanto mais deleitar-se nesta suavidade, tanto menos será amparada por Deus. Afasta também a visão e o ouvido da curiosidade, Salomão já no-las tendo mostrado a ambas como insaciáveis, reprimindo, por meio deles, os demais sentidos e impedindo-os do prazer. Não se regozija nos odores suaves, cuida-se do tato ilícito. Foge da familiaridade com as mulheres e também da liberdade no falar, porque desta liberdade se chega à servidão do pecado. Ocorre, de fato, às vezes, aquilo que diz o vulgo:

"O lobo teve necessidade de lã,
por causa da negligência dos que vigiavam".

Refreia, portanto, o vício da gula, retirando de si os alimentos que o paladar apetece, e concedendo-lhe apenas o que a necessidade exige. Na penúria conserva a paciência, na abundância a temperança, sabendo com o Apóstolo padecer a penúria e conviver com a abundância. Adquire, assim, méritos ali onde os maus acumulam pecados, os quais no livro de Jó são ditos

"esquálidos pela calamidade
e pela miséria",

Jó 30, 3

porque no vestir servem à soberba, e no comer à gula e à concupiscência. A alma devota, portanto, tomando o alimento com temperança e subtraindo de si algo que o apetite exige, merece e toca a Deus também no comer, e oferece a Deus uma agradável mirra, exibindo de tal modo a mortificação no corpo que a cumpre também na mente. Resiste à deleitação carnal, de tal modo que se ela a sente, nunca a consente. Resiste aos movimentos da ira, da inveja e dos demais vícios. Sendo provocada, não responde. Não é vencida pelo mal, mas vence o mal no bem, amando os inimigos e orando por eles. Arde de tanto amor por Cristo que deseja morrer por Ele ou pela salvação do próximo. Se, porém, não se lhe concede o martírio, realiza algo que ocupa o seu lugar, isto é, se algo mais a deleitar segundo a humanidade, mais o amputará e o cortará de si mesma, ferindo de morte o seu apetite. Tudo isto é tido como a mirra mais perfeita, porque oferecida a Deus com tanta perfeição.

Os dedos da esposa, portanto, estão cheios da mirra mais preciosa, pois com todo o cuidado ela guarda o seu coração, discutindo os inúmeros pensamentos e movimentos do coração, repelindo os nocivos e aceitando os úteis. Aprovando o que é puro, reprovando o que é impuro, cortando os pecados pela espada da contrição e mortificando-os, mostra ter os dedos cheios da mirra mais preciosa na medida em que os distingue e age por uma perfeita discrição.


  • Capítulo 11