São João Crisóstomo

349 - 407 DC

SOBRE O SACERDÓCIO


LIVRO PRIMEIRO

1.

Sempre tive a felicidade de contar com muitos amigos, sinceros e verdadeiros, que não somente conheciam as leis da amizade, mas também as cumpriam.

Um entre eles, porém, em sua dedicação, superava a todos os outros, esforçando-se a sobrepujá-los, na medida em que eles sobrepujavam os que não tinham relações mais íntimas comigo. Desse um pode-se afirmar que, em tempo algum, se tenha separado de mim. Pois ambos dedicávamos o nosso tempo ao estudo das mesmas ciências, desfrutando das instruções dos mesmos professores e demonstrando o mesmo interesse e o mesmo zelo pelo saber; todo o nosso zelo era um só, nascido das mesmas condições. Pois sempre tivemos perfeita concordância em nossas inclinações, não só durante o tempo da escola, mas também logo após, quando enfrentamos o problema da escolha de nosso caminho de vida.

2.

Ainda há outros fatores que tornaram a nossa união indestrutível e firme. Nenhum de nós tinha motivo para vangloriar-se, perante o outro, da importância da cidade paterna; e, conquanto eu não dispunha de riqueza exagerada, ele também não vivia em extrema pobreza, de maneira que até a medida de nossos patrimônios mais ou menos se igualava. Finalmente também os nossos ascendentes gozavam de igual estima, contribuindo, desta forma, tudo para a consonância de nossas mentalidades.

3.

Quando, porém, chegou a hora de nos dedicarmos à vida bemaventurada dos monges e à verdadeira filosofia, desequilibrou-se a balança: o braço de balança dele - como o mais leve - levantou-se. Eu, ainda algemado às cobiças deste mundo, baixei o meu braço de balança preso aos prazeres da vida, onerando o meu prato de balança com as fantasias da juventude. Assim mesmo, a nossa amizade continuava a mesma; apenas a convivência tinha terminado. Já que não mais visávamos o mesmo fim, as nossas ocupações não podiam mais ser comuns e idênticas. No momento em que emergia um pouco das ondas da vida profana, estendiame ele suas mãos, para, novamente, atrair-me a si; a antiga harmonia, porém, não mais conseguimos. Pois ele afastouse não só em tempo mas também, por ter desenvolvido um zelo extraordinário, elevara-se a uma altura bem considerável.

4.

Entretanto, estimando sobremaneira a minha amizade, em sua bondade extraordinária, abandonou as relações com todos os outros companheiros, a fim de poder estar sempre comigo. Isto também antes já tinha sido seu desejo, mas a minha leviandade lho impedira. Pois era impossível que alguém, que costumava vadiar nas praças e nos teatros, entregando-se apaixonadamente a seus prazeres, tivesse contato assíduo com quem, enterrado nos livros, nem sequer aparecia em praça pública. Assim, depois . de termos novamente reatado a antiga comunhão de amizade, amadurecia de imediato o desejo longamente alimentado, pois não conseguia ficar afastado de mim nem por um instante. Insistia sempre comigo para que, tendo abandonado as nossas casas, morássemos juntos. Conseguira convencer-me, e faltou pouco para que o plano se realizasse.

5.

Somente as contínuas admoestações de minha mãe conseguiram impedir-me de atender-lhe o desejo, ou melhor, de aceitar este presente de suas mãos. Pois ela, notando o meu propósito, tomou a minha mão e conduziu-me ao aposento a ela reservado. Sentou-se ao lado do leito em que, com dores, me dera a vida, verteu rios de lágrimas, balbuciando palavras que tocaram os meus sentimentos mais profundamente ainda do que as próprias lágrimas. Entre choros e queixas me falava o seguinte: Não foi por muito tempo, meu filho, que pude, conforme a vontade de Deus, gozar da companhia de teu excelente pai. Às dores do parto, que por ti sofri, seguiu logo sua morte, que muito cedo te deixou órfão e a mim viúva, submetendo-me a todos os sofrimentos da viuvez, que somente podem aquilatar aqueles que tiveram que suportá-los. Não existem palavras capazes descrever as tempestades e as ondas, às quais se vê exposta a mulher jovem, que, apenas tendo saído da casa paterna, sem experiência das coisas do mundo, repentinamente se vê presa de indizível dor e de problemas que ultrapassam a capacidade de sua idade ,e sexo: deve conjurar as negligências da criadagem, censurar suas maldades, desviar as intrigas maldosas dos parentes e suportar, com sangue frio, o rigor vexatório dos coletores, na arrecadação dos impostos. Caso o esposo ao morrer tenha deixado filho, sendo menina, exigirá da mãe muitos cuidados, mas sem grandes despesas e ansiedades. Um menino, porém, cotidianamente a enche de angústias e preocupações, sem pensar nas despesas pecuniárias, que não deve poupar, caso queira educá-lo e dar-lhe sólida formação. Não obstante tudo isso, nenhum desses problemas me levou o contrair novas núpcias, introduzindo um novo marido na casa de teu pai; perseverei firme na tempestade e no ímpeto das ondas não fugindo da crisol da viuvez.

Em primeiro lugar recebi força da Providência divina. Além disto, era grande consolo, nesta minha triste situação, poder contemplar em teu rosto a imagem fiel do esposo falecido. Já como criança, antes de falar, na idade, portanto, em que os filhos costumam ser motivo das maiores alegrias para os pais, tu me eras causa de muita e profunda consolação. Tampouco poderás acusarme de que, se bem que tenha suportado corajosamente a viuvez devido às necessidades, tenha diminuído tua herança paterna, o que costuma acontecer a muitos que prematuramente se tornam órfãos. Conservei intacto o teu património e, apesar disso, de maneira nenhuma deixei faltar o necessário para tua boa e sólida educação. Custeei tudo com o meu próprio patrimônio e com o que tinha trazido de minha casa paterna. Não creias que estou citando isto para te censurar. Oh não! Por tudo isto apenas te peço um único favor: não me deixes enviuvar pela segunda vez, não despertes de novo a dor apenas adormecida, mas espera até o meu fim! Provavelmente morrerei em breve. Para a mocidade ainda acena a esperança de chegar a uma idade bem avançada; a nós, idosos, não resta mais outra esperança senão a morte.

Tão logo me tiveres entregue à terra, juntando o meu corpo ao de teu pai, estarás à vontade para empreender longas viagens e singrar os mares; ninguém to impedirá. Todavia, enquanto estiver viva, não desprezes morar em minha casa; não peques levianamente e sem motivo contra Deus, entregando-me inocente a tal desgraça! Se tiveres motivo para censurar-me por te envolver demasiadamente em coisas mundanas e obrigar-te a assumir a administração de meus bens, então não consideres a lei da natureza, nem a educação recebida, nem a longa convivência comigo, nem qualquer outra coisa, mas foge de mim como de tua inimiga mais traiçoeira! Se, porém, estiveres convencido de que eu sempre te tenha deixado o tempo mais que suficiente para os teus afazeres, nunca tenha interferido em teu modo de vida, então, sem qualquer outro motivo, pelo menos este fato te segure junto a mim. Pois, mesmo que, como dizes, milhares te recebessem calorosamente em suas casas, ninguém poderia deixar-te liberdade tão vasta como eu. Pois não pode existir homem nesta terra a quem o teu bem-estar fosse tão caro como a mim, tua mãe.

6.

Isto e mais outros motivos minha mãe me apresentou. Transmitindoo a meu nobre amigo, este não se deixou convencer. Insistiu ainda mais, repetindo sempre seu velho pedido. No meio desta ambigüidade, ele continuando a insistir e eu negando-me obstinadamente, eis que um rumor repentino nos preocupou: a notícia de que queriam elevar-nos a ambos à dignidade episcopal. Ouvindo esta notícia, medo e hesitação começaram a tomar conta de mim; principalmente o medo de ser sagrado bispo contra a minha vontade; hesitação, cada vez que procurava saber por que os eleitores teriam escolhido justamente a mim. Pois, considerando o meu comportamento, não achava nada em mim que merecesse tal dignidade.

Aí veio o meu amigo, impulsionado por sua grande nobreza, para transmitir-me os tais rumores, pensando, naturalmente, que eu ainda nada soubesse; insistiu que também nisto procurássemos unanimidade no pensar e no agir. Pois ele, de boa vontade, me seguiria em qualquer caminho que andasse: no de fuga ou no de aceitação. Sentindo, desta forma, sua disposição e achando que, para o bem da Igreja, seria um incalculável prejuízo recusar ao rebanho de Cristo homem tão predestinado, só devido à minha própria fraqueza, dissimulei-lhe minha verdadeira opinião, ainda que anteriormente me fosse impossível deixá-lo na obscuridade sobre o meu modo de pensar. Declarei-lhe que poderíamos deixar a discussão do problema para mais tarde, já que uma resolução definitiva não urgia. Consegui convencê-lo de, no momento, não se preocupar demasiadamente; e, a respeito de minha própria pessoa, dei-lhe segurança de agir em unanimidade com ele, caso algo semelhante pretendessem conosco.

Quando, pouco depois, se apresentou alguém para nos sagrar, escondi-me. Meu amigo, porém, assumiu o cargo na certeza de que eu, conforme tinha prometido, o seguiria; caso já não o tivesse antecedido. Pois, notando sua hesitante tristeza ao quererem levá-lo à sagração, chegaram a enganá-lo. Em voz alta discutiam ser estranho que o mais insolente dos dois - pensando em mim - prontamente se tenha submetido à vontade dos Padres, conquanto ele, considerado de mentalidade mais compreensível e acessível, teimosamente tentasse eximir-se sob pretextos fúteis, procurando outras honrarias bastante duvidosas. Então ele se entregou. Tão logo, porém, soube da minha fuga, veio ao meu encontro e, totalmente desanimado, sentou-se ao meu lado. Em sua indignação procurava dizer algo, mas não conseguiu formular palavra alguma. Tentava abrir a boca, mas o desânimo cortava-lhe a palavra antes de sair dos lábios. Vendo-o assim, banhado em lágrimas, vítima do mais profundo abalo espiritual, e lembrando-me das causas de tudo isso, prorrompi em risos alegres, e, tomando-lhe a destra, afetuosamente a beijei. Dei graças a Deus por minha astúcia dolosa ter chegado a um fim tão feliz, bem conforme os meus mais íntimos desejos. Vendo-me assim tão feliz e alegre, apesar de ter sido enganado justamente por mim, tornou-se ainda mais triste, amargurado e irritado.

7.

Quando, finalmente, conseguiu superar um pouco sua irritação, começou a falar-me: Apesar de teres desprezado tudo o que me dizia respeito, sem a mínima consideração da minha pessoa - não sei por que motivo - deverias, no entanto, ter considerado tua própria fama. Agora abriste a boca de todo mundo e todos dizem que te eximiste do cargo sacro somente devido à tua ambição por honrarias profanas. Não há ninguém que te queira absolver de tal acusação. Para mim, porém, cada comparecimento em público se torna insuportável: diariamente muitos se me aproximam com censuras amargas. Ao me encontrar em qualquer canto da cidade, os amigos mais fiéis me lançam no rosto ser eu o maior culpado.

Tu conhecias a opinião dele - assim dizem - pois nenhum de seus pensamentos te era segredo. Não devias tê-los escondido perante nós; antes teria sido tua obrigação nos informar, e ele não teria conseguido eximir-se. E eu passo vergonha quando, enrubescendo, afirmo não me ter sido conhecida tua resolução, apenas para evitar que cheguem a considerar nossa amizade como mera aparência. Pois, caso o tiver sido (e realmente depois deste teu comportamento para comigo não podes negá-lo), torna-se mister esconder este fato tão desagradável perante todos aqueles que sempre nos consideravam dignos de louvores. Receio confessar-lhes a verdade e esclarecer a opinião sobre as relações entre nós dois. Em vez disso, vejo-me obrigado a continuar no silêncio, a não levantar os olhos e a fugir dos encontros. E mesmo que consiga momentaneamente escapar à acusação, no futuro, sem dúvida, me taxarão de mentiroso. Nunca me acreditarão que também Basílio esteve entre os que não partipavam de teus pensamentos mais íntimos. Mas não quero falar mais disto, já que assim o quiseste.

Todavia, como suportaremos as restantes censuras? Pois alguns te acusavam de vaidade exorbitante, outros, de excessiva ambição pelas coisas do mundo, outros finalmente ainda mais inexoráveis em suas acusações - criticavam a nós ambos pelas faltas citadas, acusando-nos de comportamento orgulhoso, justamente perante os homens que nos tinham eleito para aquela dignidade. A estes homens - assim dizem - foi bem feito. Ainda teriam merecido desprezo maior, já que, tendo preterido tantos homens mais velhos e experimentados, quiseram elevar à posição de tão alta dignidade jovens que, ontem e anteontem ainda, estavam totalmente presos aos cuidados pelas coisas profanas, não contando com isso nem em sonho. O que conseguiram foi apenas que, por algum tempo, os eleitores enrugassem as testas, vestissem roupas escuras e baixassem os olhos. Homens, porém, que, desde a mocidade até à idade bem avançada, se tinham exercido em ascese, serão seus súditos. Serão dominados pelos próprios filhos que nem chegaram a conhecer as normas, pelas quais estes cargos devem ser administrados.

Com estas e outras acusações me perseguem. Eu, porém, não sei o que responder em nossa defesa; peço, portanto, que me ajudes. Pois para mim é muita difícil crer que tenhas fugido sem motivo, como que a brincar, fazendo, desta forma, homens dignos teus ferrenhos adversários. Acho antes que tenhas dado este passo, depois de pensar e raciocinar, e que até tenhas preparado um discurso em tua defesa. Dize-me, pois, qual o motivo razoável que podemos apresentar contra teus acusadores. Pelo tratamento injusto que eu mesmo recebi de ti, pelos fatos com que me enganaste, pela traição que cometeste não pedirei contas, apesar de teres recebido de mim somente compreensão e bondade. Pois tinha colocado até a minha alma em tuas mãos. Tu, porém, usaste comigo de malícia que só se costuma usar contra inimigos. Na realidade, caso tenhas reconhecido o salutar plano, tu mesmo não deverias ter-te eximido; caso, porém, o tenhas achado prejudicial, também a mim deverias ter preservado deste mal, já que sempre declaraste ser eu entre todos o teu maior amigo. Todavia, fizeste tudo para que eu caísse na cilada, usaste até de dolo e fingimento, e tudo isso para com aquele que sempre estava acostumado a falar contigo abertamente, sem dolo, e com plena confiança.

Não obstante, como já disse, por tudo isso não te quero censurar, nem culpar-te da solidão que me causaste, findando, desta forma, a nossa convivência de que ambos, de maneira extraordinária, haurimos consolo e proveito. Tudo isso deixo de lado, suportando-o com tranqüilidade e sem amargura; não porque teu comportamento para comigo tivesse sido sem importância, mas antes porque, desde o dia em que começou minha amizade íntima contigo, tinha feito o propósito de nunca chamar-te à responsabilidade, mesmo que chegasses a me magoar. Que o teu comportamento: nos prejudicou a ambos, tu o sabes: De um lado basta lembrar o que os nossos comuns conhecidos sempre afirmaram, e, de outro lado, o que nós mesmos sempre achamos, isto é, que seria de enorme proveito para nós estarmos sempre unidos de corpo e alma, protegendo-nos mutuamente com esta amizade. Até era voz comum que esta nossa amizade seria de apreciável proveito também para outros.

Entretanto, eu de minha parte nunca julguei que a participação de minha pessoa nesta amizade pudesse ser fonte de bênção. Todavia achei sempre que esta harmonia, pelo menos para nós, seria de inestimável proveito no sentido de não termos que temer algo da parte de alguém que mostrasse um espírito hostil contra nós. Sem cessar lembrei-me de que os tempos são ruins, os adversários numerosos e verdadeira caridade não mais existe. Inveja funesta ocupoulhe o lugar. Andamos

"no meio de armadilhas e sobre as ameias da cidade".
Eclo 9, 20

Quando uma desgraça nos sobrevém muitos até mostram alegria - parece que estão à espreita, desejando que venha o infortúnio. Ninguém terá compaixão.

Cuida, portanto, que, por esta separação, não nos torne-mos objeto de escárnio geral ou, o que seria ainda pior do que escárnio, nos sobrevenha real prejuízo.

"Um irmão apoiado pelo irmão
é como uma cidade forte
e um reino bem protegido".
Pr. 18, 19

Por isso, não dissolvas esta nossa harmonia, quebrando-lhe o ferrolho de segurança.

Estas e semelhantes conversas sempre mantive contigo sem nunca suspeitar que pudesses chegar a ter tal comportamento. Pelo contrário, sempre era de opinião que as tuas intenções para comigo fossem leais, e, por conseguinte, procurei cultivar relações com um homem de saúde sem nunca imaginar, como agora parece ter acontecido, ter apenas fornecido remédio a um doente. E apesar disso tudo, lamentavelmente, não tirei nenhum proveito, nem qualquer vantagem desta minha dedicada solicitude. Pois todas as minhas palavras, tu as entregaste ao vento e, sem tomá-las em consideração, tu, como a um navio despojado de seu lastro, me jogaste à imensidão do mar, sem olhar as ondas revoltas, às quais, inexoravelmente, estaria exposto.

Se pois, alguma vez, de qualquer lado, tiver que enfrentar calúnias ou escárnios ou quaisquer outros tratamentos vergonhosos - e isto, com toda certeza, muitas vezes me acontecerá - a quem poderei recorrer? A quem poderei confiar em meu desânimo? Quem me ajudará? Quem repudiará aos que me perseguem, quem impedirá outras ofensas? Ou, por outra, quem há de consolar-me, quem me dará força de suportar as insolências dos outros? Não terei mais ninguém; pois tu fugiste da luta, de maneira que já não estás em condições de ouvir sequer o meu brado de socorro. Estás vendo agora a desgraça que provocaste? Agora, pelo menos, reconheces como este teu golpe me feriu mortalmente? Mas deixemos tudo isso de lado; pois o que aconteceu não pode ser reparado; não existe porta que leve ao inacessível. O que, porém, diremos aos que são nossos amigos? 0 que responderemos em nosso favor às acusações deles?

8.

Consola-te, respondi, pois estou pronto a dar resposta não só às tuas perguntas, mas também a todas as outras questões; inclusive tentarei prestar contas daquelas coisas de cuja responsabilidade tu mesmo já me absolveste. E, caso for de teu agrado, quero iniciar a minha defesa justamente com isso. Porque de minha parte seria absurdo e egoísta, caso, olhando só o meu prestígio junto aos menos chegados, fizesse tudo para silenciar os critiqueiros, enquanto não procurasse primeiro convencer o meu melhor amigo de não tê-lo injustiçado, sobretudo pelo fato de ele sempre ter mostrado tanta consideração para comigo que, nem sequer quis censurar-me pela suposta ofensa, mas até, sem considerar a própria honra, está cuidando apenas em zelar pela minha. Neste caso, minha indiferença para com ele seria maior do que sua dedicada preocupação por mim.

De que maneira fui alguma vez injusto contigo? Partindo deste ponto, estou resolvido a iniciar a viagem pelo mar da responsabilidade. Teria sido injusto por iludir-te, ocultando a minha verdadeira intenção? Pois foi em favor de ti, o iludido, e ainda em proveito de todos aqueles a quem dolosamente te entreguei. Porque, caso a astúcia dolosa for um mal e não for lícito usá-la nunca, nem em caso de necessidade, estou pronto a submeter-me a qualquer punição que queiras aplicar-me; ou, antes, já que nunca serias capaz de me punir, eu mesmo quero impor-me a penitência que os juízes costumam impor aos réus, cuja culpabilidade tenha sido provada. Se, porém, manipulação dolosa nem sempre for condenável, assumindo sempre a qualidade de ser boa ou má pela intenção de quem a aplica, então deixe de me acusar de te ter feito vítima e ter-te enganado; ,antes, prova que usei de astúcia para uma finalidade má. Enquanto, porém, faltar tal motivo, todos os que se consideram de bom senso, de maneira nenhuma deveriam apresentar censuras e acusações, mas, muito antes, aplaudir tal astúcia inteligentemente aplicada. Pois a astúcia dolosa, aplicada a seu tempo e em boa intenção, pode ter conseqüências tão benéficas, que muitos já tiveram que penitenciar-se por não terem recorrido a um procedimento astucioso.

Lembra-te dos generais! Constatarás que desde a antiguidade são os mais afamados aqueles que conseguiram a maioria de suas vitórias em conseqüência de dolo e astúcia, e, com justiça, são mais glorificados do que aqueles que conseguiram suas vitórias em luta aberta. Estes últimos levam a guerra a um bom fim apenas mediante altos gastos pecuniários e grandes sacrifícios de vidas humanas, de maneira que não podem tirar proveito especial destas suas vitórias: Pelo contrário, nestes casos, a situação dos vencedores costuma ser não menos precária do que a dos vencidos; os exércitos de ambos estão exaustos e os seus tesouros vazios. Acresce ainda que os vencidos não deixam nem a própria glória em sua totalidade aos vencedores. Pois também aos que caíram (no campo de batalha) deve-se uma boa parte de glória. Suas almas participaram da vitória, conquanto apenas seus corpos tenham sucumbido. Se pois fosse possível não cair - mesmo mortalmente feridos - e se a morte não os derrubasse e arrastasse, nunca teriam sido dobrados em sua bravura decidida. Quem, porém, consegue vitória por meio de astúcia, não só leva o inimigo à derrota, mas também o entrega ao escárnio. Desta forma, enquanto, de um lado, ambas as partes dividem a glória em partes iguais, conforme as forças de que dispõem, de outro, não acontece o mesmo, quando alguém vence por meio da astúcia. Neste caso, o prêmio da vitória pertence exclusivamente ao vencedor que - e isso não se deve desprezar - leva a alegria da vitória límpida para a sua pátria. Porque nem as maiores reservas de dinheiro, nem as massas de soldados terão o valor da astúcia inteligente.

Uns (dinheiro e soldados), na guerra, sendo solicitados continuamente, gastam-se paulatinamente até se perderem por completo; astúcia e dolo, porém, têm a capacidade de aumentar quanto mais solicitados e treinados. Todavia, não só na guerra, mas também em tempo de paz, muitas vezes, não se pode dispensar o uso da astúcia dolosa; e isto tanto na vida pública do Estado como na vida familiar. 0 marido faz uso dela na convivência com sua esposa, a esposa com o marido, o pai com o filho, o amigo com o amigo, até os próprios filhos em suas relações com os pais. Assim, por exemplo, a filha de Saul não conseguiu livrar o marido das mãos de seu pai a não ser enganando-o. O irmão dela, a fim de libertar o amigo, uma vez salvo, de novo perigo, usou das mesmas armas de astúcia dolosa. Mas, interrompeu-me Basílio, tudo isso não me diz respeito. Pois não sou teu adversário, nem particular, nem político. Também não participo do grupo dos que procuram injuriar-te; pelo contrário, em todas as minhas atitudes orientei-me por tua opinião, seguindo sempre fielmente o caminho que tu me mandaste percorrer.

9.

Meu admirável e fidelíssimo amigo, respondi, desta acusação já me defendi, afirmando ser útil servir-se de astúcia dolosa não só na guerra contra os inimigos, mas também na paz, e, até, contra amigos mais íntimos. E, para convencer-te agora de que a astúcia não é útil apenas aos que dela fazem uso, mas também àqueles contra os quais é usada, procura algum médico, pedindo que te informe de que maneira costuma curar os doentes. E ouvirás que os médicos não só se servem de sua arte médica, mas, muitas vezes, terão que recorrer a dolo com que conseguem então realmente restituir a saúde a seus doentes. Quando a teimosia do doente e a gravidade de seu estado tornam inúteis todos os esforços do médico, este se vê obrigado a colocar a máscara do dolo a fim de como acontece no palco poder ocultar o que realmente acontece. Caso quiseres, contarei uma das muitas manipulações dolosas que os médicos costumam empregar.

Alguém tinha sido acometido por uma febre muito virulenta; a febre elevava-se continuamente. 0 doente rejeitava todos os remédios que pudessem apagar este seu fogo interno, pedindo com grande insistência a todos que o visitavam um cálice de vinho puro. Manifestamente um desejo prejudicial. Pois se alguém atendesse ao pedido do doente, isto não só aumentaria o calor da febre, mas até poderia levar o doente ao delírio. Como neste caso a ciência viu-se em embaraço sem dispor mais de meios, sendo assim totalmente excluída, a astúcia tomou-lhe o lugar e mostrou-se tão eficiente, como logo saberás. 0 médico tomou um vaso de barro, apenas saído do forno, e imergiu-o em vinho puro. Tirando-o depois de algum tempo, vazio naturalmente, encheu-o de água. Em seguida, mandou escurecer o aposento em que se encontrava o doente, a- fim de a claridade da luz não conseguir trair o dolo. Finalmente, o médico entregou o vaso com água ao doente que o bebeu todo, pensando que fosse vinho puro; deixou-se enganar pelo aroma de vinho que o vaso exalava, não se lembrando sequer de examinar a própria bebida. Enganado pelo aroma do vaso e a escuridão do aposento, seu forte apetite o levou a tomar a bebida, que era água. Apenas satisfeito o apetite, a febre começou a baixar, afugentando o perigo iminente. Acreditas agora como o dolo pode ser de grande proveito? Se alguém quisesse enumerar todas as manipulações dolosas dos médicos, perder-se-ia no infinito.

É fácil observar como não só os médicos do corpo, mas também os que se ocupam com doenças espirituais, continuamente se servem deste tipo de remédio. Assim S. Paulo conseguiu arrebanhar milhares de judeus; nesta mesma intenção circuncidou a Timóteo, conquanto escrevesse aos Gálatas: se vos circuncidardes, Cristo de nada vos aproveitará. Por isso, sujeitou-se à lei, apesar de considerá-la prejudicial, por causa de Cristo.

A astúcia dolosa é pois uma potência considerável; somente não deve ser usada com má intenção; ou antes, esta atitude nem se deveria chamar de dolo, mas, em certo sentido, de cálculo, prudência, arte, que é a capacidade de, em situações difíceis, achar o caminho certo e corrigir erros da alma. Assim não seria capaz de chamar de assassino a Finéias, apesar de ter morta dois homens com um só golpe. Tampouco condenaria a Elias por causa daqueles cinqüenta soldados com seu chefe, ou por causa daquela outra matança que mandou aplicar aos servidores de Baal. Caso quiséssemos considerar qualquer ação em si, separada da intenção do agente, então poderíamos acusar também a Abraão como assassino de seu filho e, ainda, condenar por dolo e manipulação criminosa a seu neto e outros de seus descendentes. Assim um deles apoderou-se dos direitos de primogênito e outro tirou as riquezas dos Egípcios entregando-as nas mãos do exército israelita. Mas não é assim, não! Longe de nós tal julgamento leviano! Não só os isentamos de qualquer culpa, mas até admiramos seu procedimento. Até o Senhor Deus os achou dignos de louvor. Pois merece ser chamado de defraudador apenas aquele que se aproveita de uma situação momentânea com más intenções. Não obstante isso, muitas vezes torna-se mister fingir para com este manejo especial conseguir maiores proveitos. Quem, porém, sempre procurou suas finalidades no caminho reto, com certeza já causou grande prejuízo deixando de usar, a seu tempo, da astúcia dolosa.