LIVRO TERCEIRO

1.

Por conseguinte, sobre o que diz respeito ao meu presumido comportamento contra os que me tinham reservado esta dignidade, ainda que não me tivesse esquivado, na intenção de insultá-los, chega o que acabo de dizer.

Em seguida, quero ainda tornar bem claro, enquanto isso me for possível, que o meu procedimento esteve bem longe de qualquer presunção e soberba. Pois, no caso de mostrar o mesmo procedimento, quando me fosse apresentada a escolha entre o posto de general ou rei, com razão poderiam suspeitar disso; mas, nesse caso, ninguém me acusaria de soberba, mas, muito pelo contrário, de loucura. Agora, oferecendo-me o sacerdócio - dignidade que supera a realeza muito mais do que o espírito supera a carne - vão acusar-me de soberba? Porventura não seria absurdo taxar de loucos os homens que recusam dignidades inferiores, acusando, ao mesmo tempo, de soberba os que agem da mesma maneira com relação a dignidades muito mais altas? Isto seria mais ou menos o mesmo, como se considerássemos não soberbo, mas louco um homem que recusasse ser pastor de gado, - entretanto, consideraríamos não louco, mas soberbo, quem recusasse o domínio sobre o mundo e o comando supremo sobre todos os exércitos da terra.

Não é assim, e, os que o afirmam, injuriam menos a mim do que a si próprios. Só o pensamento de ser possível à natureza humana desprezar tal dignidade j á condena a todos os que assim opinam. Por isto se não considerassem o sacerdócio uma coisa bastante comum, nunca lhes teria surgido tal suspeita. Por que - com relação à dignidade dos anjos - nunca ninguém afirmou que o homem só por soberba não aspira a essa dignidade?- Temos conceitos bem elevados sobre aquelas potências, e é justamente isso que nos impede de imaginar que um mortal possa aspirar a algo tão alto como essa dignidade. Por conseguinte, com muito mais razão, poderíamos acusar de soberba aqueles que a mim me acusaram. Pois jamais teriam julgado outros, se antes não tivessem considerado tudo isso de somenos importância.

Caso, porém, afirmarem que eu tenha agido assim por pura ambição, contradizem-se a si mesmos. Por isso não posso imaginar que outras razões pudessem ter aduzido, ao querer libertar-me da culpa de ambição.

2.

Pois é claro, se tivesse sido vitima dessa ambição, deveria ter aceito a dignidade, muito antes de ter fugido dela. Por quê? Por ter-me trazido muitas honras. Pois o fato de eu - nesta idade tão jovem e tendo saído apenas recentemente das atividades profanas - lhes parecer tão estimável que preferiram a mim, dando-me mais votos do que a homens que já tinham dedicado toda uma vida à comunidade, teria criado para mim uma estima extraordinariamente grande e até a posição de um homem importante e digno de honra. Agora, porém, - fora alguns poucos - a grande maioria da Igreja nem me conhece de nome. Portanto, nem todos sabem que recusei o cargo,; apenas alguns poucos, e, como me parece, nem todos destes têm conhecimento da realidade. Muito pelo contrário, é provável que a maioria ache que eu não tenha sido eleito, ou, uma vez eleito, tenha sido rejeitado por incapacidade, mas nunca que voluntariamente me tenha esquivado.

3.

Mas, objetou Basílio, causará surpresa àqueles que têm conhecimento da realidade.

Respondi: Justamente destes afirmaste que me acusariam de ambição e soberba. De que lado então poderei esperar algum louvor? - Da grande maioria? - Mas esta não tem conhecimento da realidade. - Da minoria? - Não pode ser, porque junto a eles tudo se virou ao contrário.

Não tinhas outro motivo de procurar-me senão para saber como nos poderíamos defender contra esses últimos. Afinal, para que vou entrar em pormenores por causa deles? Pois ainda que todos conhecessem a realidade, nunca poderiam acusar-me de ambição e soberba. Tem mais um pouco de paciência e verás, com toda clareza, que se põem em perigo não só os que acusam os outros - caso os houver, o que me é difícil de crer - mas também os que apenas suspeitam dos outros.

4.

Sobre o que diz respeito ao sacerdócio, embora seja exercido na terra, possui ele contudo o caráter de instituição' celeste. E isso com toda razão. Pois nenhum homem, nenhum anjo, nenhum arcanjo, nenhum outro poder criado, senão o próprio Paráclito instituiu esta função, encarregando homens de carne e osso a exercerem o serviço de anjos. Por isso é mister que, quem for sagrado sacerdote, seja puro como se estivesse no céu e no meio dos anjos. Talvez mesmo as instituições de antes do tempo da graça já tenham incutido temor e tremor, assim como as campainhas, as pedrarias e anéis no peitoral e nos ombros, o "efod" e o Santuário em seu silêncio. Examinando, porém, o que a graça nos trouxe, constatamos que tudo isso perde de importância verificando-se, também nisso, o que Paulo dissera sobre a Lei:

"E diante desta glória eminente,
o esplendor do primeiro ministério
já não é mais glória".
II Cor. 3, 10

Pois, vendo o Senhor deitado como vítima e, em frente dele, o sacerdote rezando e tingindo a todos com este sangue precioso, porventura ainda pensas estar entre homens e nesta terra? Não te sentes, antes, ser arrebatado para dentro do céu? Acaso não atiras para longe qualquer pensamento carnal e não contemplas estas coisas celestiais com o espírito puro e o coração sincero? Oh aspecto admirável! Oh imenso amor de Deus para com os homens! Quem está sentado ao lado do Pai nas alturas, naquela hora, é tocado pelas mãos de todos. E Ele mesmo voluntariamente se entrega a todos os que o queiram receber. Porventura, tudo isso te parece despeitável de tal modo que achas que alguém possa sentir-se tão orgulhoso a ponto de fugir disso?

Ainda queres ver em outro milagre a incomensurável santidade deste sacrifício? - Lembra-te de Elias! Em redor dele, grande multidão! A vítima está em cima da pedra! Todos em grande silêncio! Só o profeta orando! - Repentinamente cai fogo do céu, consumindo o holocausto. Foi um milagre que despertou o espanto em todos.

Agora vê o que acontece entre nós! Não verás apenas coisas espantosas, mas algo que supera de longe todo e qualquer espanto. Pois aqui está o sacerdote, chamando não um simples fogo, mas o próprio Espírito Santo. Reza a grande prece, não para chamar fogo do céu que consuma a vítima, mas para que venha a graça de Deus e, por meio das ofertas do sacrifício, incendeie as almas de todos, a fim de que cheguem a brilhar mais claras do que prata purificada pelo fogo.

Quem, porventura, ousaria desprezar orgulhosamente tal mistério? Não deveria estar fora de j uízo e totalmente louco?

Ou não sabes que alma humana alguma suportaria o peso deste sacrifício, caso o próprio Deus com sua graça poderosa não a fortalecesse?

5.

Se alguém tomar em consideração a graça extraordinária de que um homem composto de corpo e sangue pode aproximar-se tão intimamente daquele ser santo e puro, deverá convencer-se da honrosa e alta dignidade que a graça do Espírito Santo confere aos sacerdotes. É por intermédio deles que o sacrifício se realiza e são distribuídas graças para a nossa salvação eterna. São homens que vivem neste mundo e nele encontram sua ocupação, a quem se confiou a administração de tesouros celestiais dando-lhes, com isto, poderes que Deus não conferiu nem a anjos nem a arcanjos. Pois é a estes que foi dito:

"Tudo que ligardes na terra terá sido ligado no céu,
e tudo o que desligardes na terra, terá sido desligado no céu".
Mt. 18, 18

Também os soberanos desta terra têm poder de ligar, mas apenas no que diz respeito aos corpos. O vínculo dos sacerdotes, porém, liga também as almas e se estende até os céus. O que os sacerdotes realizam aqui na terra, Deus o confirma nos céus, selando o julgamento de seus servidores. Desta forma, que outra coisa lhes conferiu senão o poder sobre o próprio céu? Pois ainda declarou:

"Àqueles a quem perdoardes os pecados, ser-lhes-ão perdoados;
àqueles a quem os retiverdes, ser-lhes-ão retidos".
Jo. 20, 23

Existe poder superior a esse? O juízo o Pai o entregou ao Filho; e este, como vês, o Filho o entregou aos sacerdotes. Como se j á estivessem no céu, como se já estivessem despojados da natureza humana, como se j á estivessem livres de nossas paixões, tão alto foram elevados, de tal dignidade foram incumbidos! Caso um rei cedesse a um dos seus súditos o direito de prender e libertar a quem quisesse, tal homem seria objeto de admiração e inveja de todos. Agora, quem de Deus recebeu o poder que deve ser considerado mais alto do que o céu sobre a terra, a alma sobre o corpo, a este - conforme a opinião de certa gente - concedeuse dignidade que possa ser objeto de menosprezo? - Longe de nós tamanha loucura! Pois manifestamente é loucura despeitar esta dignidade sem a qual ninguém poderá participar da salvação e das promessas de Cristo.

Por conseguinte, se ninguém entrará no reino de Deus sem nascer da água e do Espírito, e, se for excluído da vida eterna todo aquele que não comer a Carne do Senhor e não beber o seu Sangue, e se estas condições não puderem ser cumpridas a não ser por meio dessas mãos sagradas -refiro-me às mãos do sacerdote - como é que alguém, sem elas, poderá escapar ao fogo eterno ou conseguir a coroa que lhe é reservada?

6.

São os sacerdotes que sofrem

"as dores de parto"
Gl. 4, 19

e a quem se confiou o poder de gerar nova vida por meio do Batismo; por intermédio deles nos revestimos do Filho de Deus e, ligando-nos a Ele, nos tornamos membros de Cristo. Por isto convém que respeitemos os sacerdotes mais do que os soberanos e reis, e que eles de nós mereçam veneração maior do que nossos próprios pais. Porque estes nos fizeram nascer de sangue e da vontade carnal e aqueles nos deram o renascimento de Deus para a verdadeira liberdade dos filhos de Deus.

Os sacerdotes dos judeus possuíam o poder de curar a lepra corporal, ou, antes, não de curar, mas apenas de declarar o doente purificado. E sabes como o sacerdócio, naquele tempo, era ambicionado! Os nossos sacerdotes, por sua vez, receberam o poder de não apenas declarar purificados, mas de purificar realmente não corpos, mas até almas acometidas da lepra.

Por isso, todos os que desprezam os sacerdotes têm culpa muito maior do que Datã e seus cúmplices, merecendo punição mais dura. Eles aspiravam a um cargo que não lhes competia. Todavia o tinham em alta estima, o que prova o zelo com que o ambicionavam. E agora, depois de o nosso sacerdócio ter recebido tamanho enriquecimento e aperfeiçoamento, há quem se atreva a fazer coisa pior do que Datã. Pois o grau de desprezo não é o mesmo se alguém aspira a uma dignidade que não lhe compete ou se alguém simplesmente a rejeita. O menosprezo demonstra um comportamento censurável, pois gera ao mesmo tempo despeito e admiração. Qual a alma tão miserável que possa despeitar estes bens tão admiráveis? Quero afirmar que não existe, a não ser que esteja possessa pelo demônio.

Em seguida, quero voltar ao ponto de partida. Não com relação ao poder de punir, mas também ao de distribuir benefícios. Deus revestiu os sacerdotes de encargos superiores aos dos próprios pais. Entre ambos existe diferença tão grande como a existente entre a vida presente e a futura. Estes geram a vida presente, aqueles a futura. E conquanto estes não consigam preservar seus filhos da morte e de qualquer doença sequer, aqueles, muitas vezes, já salvaram almas do perigo de se perderem. E isso, uma vez usando de suave censura, outra vez usando da força da punição e da oração. Pois não só por ocasião de nos fazerem renascer, mas também em seguida possuem o poder de perdoar-nos os nossos pecados.

"Há entre vós algum doente?"

assim lemos,

"Que mande chamar os presbíteros da Igreja,
e estes orem sobre ele,
ungindo-o com óleo em nome do Senhor.
E a oração da fé salvará o doente
e o Senhor lhe dará alívio.
E se ele tiver cometido pecados,
ser-lhe-ão perdoados".
Tg. 5, 14-15

Ainda mais. Os pais não conseguem salvar os filhos do castigo, quando os mesmos ofenderam superiores ou soberanos. Entretanto os sacerdotes, muitas vezes, apaziguaram a ira, não de reis e soberanos, mas do próprio Deus.

Depois de tudo isso, porventura ainda haverá alguém que ouse acusarme de soberba? Acho que considerando o exposto, em vez de acusar de soberba e de temeridade aos que se eximem do cargo, muito antes deveriam censurar aos que o ambicionam e dele dolosamente se apoderam. Pois, se já aconteceu que homens a quem se confiara a administração de Estados, não mostrando bom senso e energia, conseguiram arruiná-los, de que força - própria e divina - não deverá dispor quem assumiu a incumbência de vigiar e guardar a Esposa de Cristo?

7.

Ninguém mostrou mais amor ao Cristo do que Paulo; ninguém teve zelo maior do que ele; ninguém foi considerado digno de maiores graças do que ele. E, apesar de tudo isso, ainda hesita e treme diante desta responsabilidade pelas pessoas que lhe foram confiadas. Diz ele:

"Temo que, como a serpente, com sua astúcia,
seduziu a Eva, também vossa mente seja corrompida
e se desvie da sinceridade para com Cristo".
II Cor. 11, 2

E em outro lugar:

"Apresentei-me fraco, tímido e todo trêmulo diante de vós".
I Cor. 2,3

Assim fala o homem que foi arrebatado até o terceiro céu; o homem que foi arrebatado ao paraíso e ouviu palavras inefáveis, impossíveis a um homem de pronunciar, que, de convertido, sofreu tantos perigos, até de morte, quantos dias tinha sua vida, que, para evitar que alguém de seus fiéis se escandalizasse, deixou até de fazer uso dos direitos que o próprio Cristo lhe outorgara.

Se, portanto, aquele que fez mais do que exigem os mandamentos de Deus, que nunca buscou o seu próprio interesse, mas só o dos outros, foi tomado de temor diante da dignidade do cargo, o que diremos nós que tantas vezes procuramos os nossos próprios interesses, em que não somente negligenciamos os mandamentos de Deus, mas até os transgredimos?

"Quem",
diz Paulo,

"é fraco, que eu também não seja fraco?
Quem é seduzido, que eu não arda?"
II Cor. 11, 29

Assim deve ser constituído o sacerdote, ou antes, não só assim; pois isto seria pouco, ou até nada comparado com o que pretende destacar. O que será isto? Paulo declarou:

"Quisera eu, em pessoa, ser separado da comunhão com Cristo
em favor de meus irmãos de raça".
Rm. 9, 3

Quem é capaz de falar nesses termos, quem possui uma alma capaz de tais anelos, com razão mereceria censura, caso quisesse fugir. Quem, porém, estiver longe de tal magnanimidade - como acontece comigo - merece despeito, não quando foge do cargo, mas quando o aceita. Da mesma forma, tratando-se de escolha digna para a chefia militar, e escolhessem para isso um ferreiro ou um sapateiro ou outro artífice semelhante, na verdade, nunca louvaria tal coitado se não fugisse e não fizesse tudo para escapar desta sua desgraça certa.

Sim, se for suficiente levar apenas o nome de pastor e administrador o cargo de qualquer maneira sem correr perigo, neste caso, qualquer um poderia acusar-me de ambição. Entretanto, se quem assumir tal cargo deve possuir um extraordinário bom senso, deve receber graças divinas especiais, deve dispor de caráter sincero, levar vida ilibada, ter competência além da normal, então não poderás negarme teu perdão pelo fato de ter evitado perder-me, assumindo o cargo. Pois se receber a incumbência de levar um navio gigantesco, com grande número de remadores, carregado de carga preciosa, através do mar Egeu ou Tirreno, logo me esconderia e, se alguém perguntasse "por quê", responderia: para não levar a culpa pela perda do navio.

8.

Assim, pois, tratando-se da perda de bens terrestres com o perigo de morte apenas corporal, ninguém censura a quem usar de prudência e de extraordinários cuidados; quando, porém, existe a ameaça de afundar-se não no mar terrestre, mas no abismo daquele fogo, onde não nos espera a morte que separa a alma do corpo, mas aquela que leva a alma e o corpo à condenação eterna, quereis acusar- me e desprezarme?

Não, de maneira alguma; peço e imploro com grande insistência. Conheço a minha alma, sei como ela é fraca e pusilânime. Conheço a dignidade do sacerdócio e as dificuldades de exercê-lo. Pois mais numerosos do que os ventos que revoltam o mar, são as ondas que inquietam a alma do sacerdote.

9.

Em primeiro lugar devo mencionar a ambição como o recife mais perigoso entre todos, mais funesto do que os recifes de que falam os poetas. Muitos já tiveram a felicidade de conseguir evitar este recife e escapar incólumes; para mim, no entanto, a ambição representa perigo tão grande que nem agora, livre do cargo, consigo vencê-la totalmente. Se me entregassem esta alta dignidade, isso significaria mais ou menos o mesmo como se, com as mãos amarradas nas costas, me expusessem à voracidade dos animais ferozes que vivem naquele antro.

Quais são estes animais? Ira, desânimo, inveja, rixa, calúnias e outras incriminações; mentira, fingimento, perseguições insidiosas, maldições contra homens que nenhum mal nos causaram, satisfação pelo comportamento inconveniente de outros sacerdotes, tristeza, vendo a felicidade dos outros, avidez de glória, ambição - e é esta principalmente que faz perder a alma humana - , doutrinações que só visam prazeres profanos, adulações servis, bajulação indigna, desprezo dos pobres, lisonja servil aos ricos, homenagens imprudentes e benevolências nocivas que são perigosas tanto para os que as recebem, quanto para os que as prestam, temor servil que apenas convém aos escravos mais miseráveis, supressão da sinceridade, chocante aparência de humildade que na realidade não existe. Omitem tomar atitude ou censurar quando necessário, e quando o fazem, fazemno apenas contra o povo simples, ultrapassando ainda a justa medida. Tratando-se de ricos e poderosos, nem sequer ousam abrir a boca.

Todas estas feras - e outras mais da mesma espécie - naquele esconderijo são nutridas: caindo-se em suas presas, inexoravelmente tornar-se-á vítima de seus tentáculos, agindo de tal maneira que agrade todos, inclusive mulheres, fazendo coisas que nem convém sejam citadas. Embora a Lei Divina tenha excluído do serviço eclesiástico todas as mulheres, estas procuram infiltrar-se de qualquer maneira. E o que elas mesmas não conseguem pelas próprias forças, procuram-no por intermédio de outros. Assim chegam a possuir até o poder de instituir e destituir sacerdotes como bem entendem, de forma a se inverter o superior com o inferior, realizando-se o que diz o provérbio: os súditos conduzem seus senhores. Se, pelo menos, ainda se tratasse de homens! Mas são mulheres a quem nem é permitido ensinar. Que digo? De ensinar? Nem de abrir a boca na assembléia, Paulo lhes permitiu. Entretanto já ouvi dizer que concederam às mulheres tal liberdade de falar que estas até chegaram a criticar e censurar os chefes das Igrejas com mais veemência do que os senhorios costumam censurar seus escravos.

10.

Entretanto, ninguém acredite que queira onerar a todos os sacerdotes com as referidas acusações. Pois muitos há que conseguiram escapar a estas redes; e estes até são em número maior do que os que se tornaram presas das mesmas. Muito menos quero incutir a culpa de todos estes males ao próprio sacerdócio. Nunca serei tão insensato. Pois todos os homens razoáveis consideram culpados somente os que abusaram destes dons de Deus e por isso os punem só a eles. Ninguém de bom senso responsabilizará o ferro pelos assassínios, o vinho pelas bebedeiras, o poder pelos atos de terror ou a bravura pela temeridade. Ao contrário, o próprio sacerdócio nos acusará, e isto com toda a razão, se não o administrarmos corretamente. Pois não é o sacerdócio que leva a culpa pelos males por mim citados, mas nós de nossa parte o manchamos, entregando-o aos primeiros que se oferecem. Estes sim o aceitam avidamente porque não se conhecem a si mesmos, nem o cargo pesado da função. Tão logo tenham que enfrentar a prática, tateiam na escuridão de sua inexperiência, causando entre os fiéis a eles confiados males indizíveis.

Tudo isso quase teria acontecido comigo, se Deus, em tempo, não me tivesse salvo deste perigo, tanto para salvaguardar sua Igreja, quanto para garantir a salvação de minha alma. Ou dize-me donde, na tua opinião, aparecem tamanhas desordens nas comunidades da Igreja? Eu, de minha parte, estou convencido de que a causa não é outra senão a negligência na escolha dos candidatos, deixando-se a seleção necessária ao acaso. É mister que a cabeça esteja sã e forte para distribuir e evitar adequadamente todas as atividades do resto dos membros do corpo. Caso, porém, a cabeça esteja demasiadamente fraca para isso, aos poucos ela perder-se-á e com ela tudo mais. E, para que isso não aconteça comigo, Deus providenciou para que eu permanecesse nesta posição que ora ocupo.

Enfim, meu caro Basílio, além das qualidades citadas, o sacerdote carece ainda de muitas outras que também não possuo. Principalmente as que seguem. Ele deve excluir por completo qualquer ambição por esse cargo. Caso ele se deixar prender por um desejo desordenado à dignidade, uma vez na posse dela, atiçará ainda mais a chama e, por ela arrebatado, somente para fortalecer sua posição, chegará a submeter-se aos perigos mais variados, quer seja obrigado a lisonjear e admitir alguma ação indigna e desonrosa, quer seja levado a gastar significativos recursos financeiros. Não quero mencionar os fatos de que alguns, só para conseguir o cargo de chefe da Igreja, cometeram até assassínios dentro das comunidades e devastaram cidades inteiras. Não quero mencioná-los para não parecer contar coisas incríveis. Na minha opinião todos deveriam ter tal respeito perante posição tão elevada que sua primeira atitude deveria ser procurar eximir-se dela. Uma vez assumida a função, porém, não deveriam aguardar o julgamento dos outros no caso de práticas que exigissem deposição, mas, de livre e espontânea vontade, deveriam abandoná-la. Neste caso, pelo menos da parte de Deus, poderiam esperar o perdão. Prendendose, porém, inconvenientemente ao cargo, privam-se de toda a benevolência e provocam a ira de Deus, acrescentando ao primeiro um segundo erro ainda mais grave.

11.

Mas isso ninguém há de querer. Pois, na realidade, é perigoso ambicionar tal dignidade. Não o afirmo em contradição a S. Paulo, mas em pleno consentimento com as palavras dele. O que diz ele?

"Se alguém aspira ao episcopado,
deseja excelente trabalho".
I Tm. 3, 1

Eu não afirmei ser perigoso aspirar ao cargo em si, mas ambicioná-lo por causa de sua reputação e seu poder. E é esta ambição, assim acho, que deveria ser banida para bem longe de nossa alma; desde o início não se deve permitir que ela tome conta de nós a fim de não restringir-nos a liberdade de ação. Pois quem não aspira ao cargo para se colocar em evidência, também não precisa temer ser destituído do mesmo. E quem não precisa temer isso, poderá sempre e em toda parte agir livremente como convém ao cristão, filho de Deus.

Entretanto, os que hesitam e tremem perante a possibilidade de serem destituídos do cargo, cairão numa escravidão amarga, de conseqüências funestas, sendo obrigados, muitas vezes, a ofender a Deus e aos homens.

Esta não deve ser a intenção de nossa alma; mas ela deve procurar ser como os bravos soldados na guerra, que aceitam combater ou morrer bravamente. Esta mesma deve ser a intenção dos que conseguiram este cargo: estarem sempre prontos tanto para administrá-lo, quanto para entregá-lo assim como convém a homens cristãos convictos que tal resignação traz uma coroa não menos preciosa do que o próprio exercício do cargo. Pois caso alguém for destituído do cargo, sem que o tenha merecido por comportamento inconveniente ou má administração, essa atitude causará punição aos que injustamente o afastaram, dando-lhe um prêmio maior. Pois está escrito:

"Felizes sereis quando vos ultrajarem, perseguirem e,
mentindo,disserem todo mal contra vós, por causa de mim.
Alegrai-vos e exultai, porque grande será a vossa recompensa no Céu".
Mt. 5, 11-12

Tal deve ser o comportamento de quem for afastado do cargo, quer por inveja, quer para agradar aos poderosos, quer por ódio ou outra razão injusta qualquer. No entanto, caso esta injustiça lhe for feita por parte de seus adversários, acho que não vale a pena nem sequer falar para mostrar o grande lucro que lhe provém da malícia dos mesmos.

Por conseguinte torna-se mister uma circunspecção e pesquisa rigorosa para verificar se, em algum recanto de nossa alma, não exista ainda alguma faísca daquela ambição perniciosa. Porque pelo menos é desejável que também os que conseguiram manter-se livres daquela paixão no início consigam dela escapar depois de ter assumido o cargo. No entanto, caso alguém antes de assumir o honroso cargo já esteja alimentando essa fera perigosa e feroz, não há palavras para descrever o forno em que ele se precipitará tão logo tenha conseguido seu fim.

Eu mesmo possuo a referida paixão em alto grau. E não penses que te queira mentir por pura modéstia. Além de outras razões, também esta, amedrontando-me, levou-me a fugir. Pois como acontece aos que, amando a beleza corporal, sofrem por causa de sua inclinação enquanto estiverem perto da pessoa amada, mas se libertam de sua loucura tão logo consigam afastar-se bem longe do objeto de seus anseios, acontece também aos que anseiam uma dignidade eclesiástica. Sentindo-se ao alcance da mesma, seus anseios tornam-se sempre mais ardentes; perdida a esperança, sufocam junto com esta também a ambição.

12.

Esta é uma das minhas razões, e, como vês, não pequena. E mesmo que fosse a única, já seria suficiente para excluir-me daquela dignidade. No entanto, há uma segunda razão, não menos importante. Que razão é esta? O sacerdote deve ser circunspecto e perspicaz. Deve possuir mil olhos, voltados para todos os lados, porque não vive só para si, mas para uma grande multidão de povo. No entanto, que eu sou indiferente e negligente, descuidando até mesmo de minha própria salvação, tu mesmo deves admiti-lo, ainda que tentes cobrir, com o manto de tua amizade, todas as minhas fraquezas.

Não me fales do jejum, das vigílias, do dormir no chão e de todas as outras mortificações corporais! Pois sabes muito bem como sempre fugi de tudo isso. E mesmo que, nessas coisas, tivesse conseguido a perfeição, nem isso poderia ser-me útil para o cargo devido à minha total inércia espiritual. Admito que os mencionados exercícios corporais possam ser sumamente proveitosos para quem, fechando-se em seu cubículo, só cuida de si e de seus afazeres pessoais; quem, no entanto, deve dividir-se para atender tão grande multidão, assumindo cuidados especiais para com cada um dos que lhe foram confiados, como é que ele conseguirá resultados respeitáveis se não tiver uma alma cheia de energia e extraordinária fortaleza?

13.

Não te admires se, em seguida, exigir outra prova de alma viril, além da fortaleza extraordinária já citada. Porque dispensar comidas e bebidas deliciosas, desprezar leitos macios, para muitos isso nem é sacrifício, principalmente para gente de vida campestre que, desde a infância, foi educada nesse modo de vida; nem para os que, devido à robustez corporal, tais mortificações constituem um hábito.

Mas suportar desprezo e tratamento malicioso, palavras desaforadas e escárnios por parte de dependentes, quer nos atinjam na vida cotidiana, quer nos levem perante o juiz, suportar censuras e acusações - em parte gratuitas, em parte injustas - levantadas contra nós por parte de superiores ou súditos, são muito poucos os que o conseguem. Pode-se observar até que muitos daqueles que, nas mortificações corporais, mostram grande fortaleza, nesses últimos casos se enraivecem tanto que mais parecem feras do que homens.

Tais homens de modo todo especial devem ser afastados do sacerdócio. Pois, se o bispo não desprezar comidas e bebidas, se não andar descalço, não o será em prejuízo do bem de sua comunidade. O caráter irascível, porém, é pernicioso, é uma desgraça para ele próprio e para toda a comunidade. Também não existe ameaça divina contra os que omitem aqueles exercícios corporais; no entanto, aos de fácil irascibilidade Deus ameaçou com o fogo eterno. Como aquele que aspira à vanglória, tão logo a consiga, começa a alimentar esta chama adicionando-lhe combustível sempre mais abundante, assim aquele que não consegue dominar sua ira em suas relações com poucos homens, tão logo lhe seja confiada a chefia de uma comunidade, não mais encontrará tranqüilidade, mas, como um animal feroz, acossado de todos os lados por milhares de pessoas, levará sua comunidade inexoravelmente para a desgraça.

14.

Não há nada que possa turvar mais a pureza da alma e a clareza do espírito do que a ira desenfreada que irrompe com grande ímpeto. Como numa batalha noturna, escurecem-se os olhos da alma. Ela não consegue mais discernir amigos e inimigos, superiores e súditos, tratando a todos da mesma maneira, , e, mesmo que tenha que suportar ela mesma sofrimentos e prejuízos, aceita tudo de boa vontade somente para satisfazer esta espécie de volúpia. Pois a mente excitada pelo calor da ira é realmente uma espécie de volúpia; a ira até chega a dominar a alma mais intensamente do que a própria volúpia, porque consegue perturbar completamente a constituição mais ordenada da alma. Leva facilmente à imprudência, provocando rixas gratuitas e ódio absurdo. E encontra sempre motivos para ofender os outros sem razão e injustamente. Finalmente pressiona o homem para palavras e ações tão insensatas que a pobre alma, sacudida no delírio da paixão, já não encontra ponto de apoio para resistir a essas pressões.

Agora chega - disse Basílio -, já não suporto mais os teus subterfúgios; pois quem não o saberia quão longe te encontras dessa doença? ó meu felizardo amigo! - retruquei - por que queres arrastar-me para tão perto do forno, despertando em mim aquela fera já domada? Ou, porventura, não sabes que não o consegui por esforço, mas apenas em conseqüência de minha preferência por uma vida retirada? Para alguém predisposto desta forma realmente é desejável que fique só, contentando-se com apenas um ou dois amigos, conseguindo assim evadir-se facilmente do fogo ameaçador, o que jamais conseguiria, precipitando-se ao abismo de tantos cuidados e obrigações, acabando por levar consigo muitos outros, tornando-os relaxados no exercício da mansidão. Aqui também vale a característica das massas observar sempre o comportamento dos superiores como ideal, procurando imitá-los e tornar-se semelhantes a eles.

Como pois conseguiria abrandar a irritação apaixonada das massas aquele que estivesse pessoalmente irritado? Quem dentre a multidão se sentiria levado a não passar da medida, vendo seu superior totalmente tomado pela ira? Sabemos que é absolutamente impossível esconder alguma falta do sacerdote; até as mínimas rapidamente se revelam. Um atleta, enquanto ficar escondido em casa, conseguiria encobrir seus lados fracos; uma vez na arena, porém, facilmente é desmascarado. Até mesmo os homens que levam uma vida solitária, livres dos afazeres da vida pública, na solidão encontram esconderijo para seus deslizes; tão logo entram na vida pública serão obrigados a sair de sua reserva. Por seu comportamento desvendarão o seu verdadeiro caráter. Da mesma forma como suas boas ações são úteis para muitos, por se sentirem convidados a imitá-las, seus deslizes levam a outros a serem negligentes e relaxados no exercício das virtudes.

Por causa disso, a alma do sacerdote deve irradiar sua beleza para todos os lados, a fim de que possa edificar e iluminar ao mesmo tempo os corações de todos quantos a observam. Pois os pecados comuns da gente simples, cometidos na escuridão, só fazem perecer os que os cometem, ao passo que os erros de um homem superior e conhecido a todos trazem prejuízo para toda a comunidade. Aos que já caíram, deixam imprestáveis para a luta pelo bem e seduzem os vigilantes a ficarem negligentes e perecer. Além disso, os deslizes da gente simples, mesmo cometidos publicamente, não costumam causar prejuízo notável. Os outros, porém, no alto da dignidade do cargo que ocupam, estão em evidência para todos. Assim, mesmo os pequenos erros, aos olhos da multidão, parecem crimes graves, porque as ações não costumam ser medidas por sua gravidade, mas pela dignidade de quem as praticou.

Portanto, o sacerdote deve munir-se de armas resistentes como diamante, mostrando zelo inesgotável, vigilância infatigável, cuidando assiduamente de suas atitudes, a fim de que ninguém possa encontrar nele qualquer fraqueza, qualquer negligência por onde o possa ferir mortalmente. Pois todos em redor dele estão prontos a feri-lo. Não só adversários e inimigos, mas muitos dos que se dizem amigos.

Por conseguinte, para o sacerdócio devem-se escolher almas semelhantes àqueles jovens que experimentaram a graça de Deus na fornalha ardente da Babilônia. Aqui a alimentação do fogo não são gravetos, nem piche, nem estopa, mas algo muito mais perigoso do que tudo isso. Aqui não se trata de fogo perceptível aos nossos sentidos, mas da chama devoradora da inveja que ameaça o sacerdote. Esta levantase de todos os lados e, aproximando-se, atravessa-o, iluminando sua vida com maior claridade do que o conseguiu a fornalha ardente em relação aos corpos daqueles jovens da Babilônia. E esta chama, encontrando o menor graveto, avidamente o devora, envolvendo, além disso, tudo em densa fumaça, de maneira que, o que parecia mais claro do que o sol, torna-se completamente escuro. Só enquanto a vida do sacerdote aparece como um livro aberto, em todos os sentidos perfeitamente regulamentada, será inatingível por qualquer ataque; tão logo, porém, se permite a mínima falta o que é bem natural no homem sujeito aos caminhos enganosos do mar da vida - já não lhe vale seu comportamento impecável mostrado até então, para escapar das línguas maliciosas de seus acusadores. Cada qual considera-se juiz sobre o sacerdote, como se ele já não possuísse natureza humana, mas a dos anjos, livre de qualquer fragilidade.

Com o sacerdote procede-se da mesma forma como com o tirano. Enquanto o tirano mantiver o poder, todos o temerão e adularão, por não conseguirem derrubá-lo. Tão logo verificam que começa a enfraquecer, retiram-se, abandonando o papel de aduladores; os que até há pouco eram amigos, repentinamente transformam-se em adversários e inimigos. E notando nele algum lado fraco, agridem-no até derrubá-lo do poder. O mesmo acontece com o sacerdote. Os que o honravam, dandolhe toda a espécie de atenções e gentilezas, de momento em que descobrem a mínima fraqueza empregam todos os esforços possíveis para afastá-lo do cargo, não como se fosse tirano, mas um malfeitor muito mais perigoso. E, em seguida, assim como o tirano se enche de medo até dos próprios guardas, também o sacerdote deve temer mais os que lhe estão próximos, inclusive os colegas de cargo. Isso porque ninguém aspira com mais ardor ao seu cargo, ninguém conhece melhor suas condições do que eles. Como se encontram sempre em redor dele, percebem, muito antes do que qualquer outro, falhas eventuais, encontrando crédito fácil ao espalhar calúnias, exagerando pequenas falhas e faltas graves com a única finalidade de covardemente derrubar o caluniado. É a perfeita inversão daquela palavra apostólica que diz:

"se um membro sofre, todos os membros se alegram;
e, se um membro é honrado, sofrem todos os outros",
I Cor. 12, 26

a não ser que alguém, devido à sua extraordinária virtude, consiga resistir a todos os ataques.

Porventura, pretendes jogar-me em tal luta? E, por acaso, achas realmente que minha alma possa resistir ao emaranhado multiforme destes ataques? E donde é que sabes isso? Acaso Deus to revelou? Então mostra o mandado divino e eu obedecerei. Caso, porém, não tiveres nada disso, mas julgares por simples opinião humana, liberta-te deste erro! Pois é sumamente conveniente que, no que diz respeito às minhas atitudes, acredites mais em mim do que nos outros, porque

"ninguém conhece as coisas do homem,
senão o espírito do homem que nele habita".
I Cor. 2, 11

Que eu, aceitando o cargo, teria levado ao ridículo a mim mesmo e aos meus eleitores, prejudicando-me gravemente por voltar a este meu modo costumeiro de viver, disto, creio eu, consegui finalmente convencer-te plenamente. Pois não só a inveja, mas - o que é ainda pior - ambição por esta dignidade, costuma fornecer armas a muitos contra quem a ocupa. E assim, como para a cobiça dos filhos, a idade avançada dos pais se torna um fardo pesado, acontece a muitos deles. Vendo que alguém ocupa por muito tempo a dignidade sacerdotal - não se conseguindo removê-lo sem assassinato - empregam todos os meios possíveis para destituí-lo do cargo. Todos aspiram ocupar-lhe o lugar, esperando cada um a sua vez.

15.

Desejas que te apresente esta luta ainda sob outro aspecto, que também inclui inúmeros perigos? Então vai assistir a alguma das assembléias em que, conforme o costume, se procede às eleições para os cargos eclesiásticos e verás. Quanto maior o número de eleitores tanto mais numerosas as acusações levantadas contra os sacerdotes. Os autorizados a votar dividem-se em muitos partidos, podendose observar que não existe unanimidade entre os presbíteros entre si, nem em relação ao candidato para o episcopado; cada qual persiste em sua opinião, dando seu voto a candidato diferente. A causa dessa situação é que nem todos se orientam por aquilo que deve ser o único critério, isto é, a virtude da alma. Em vez desta qualidade consideram muitos outros fatores que, conforme eles, deveriam decidir a eleição. Assim, por exemplo, um acha que deveria ser eleito quem fosse de descendência nobre, outro que se deveria preferir quem possuísse grandes riquezas, para, em seu sustento, não depender das receitas da comunidade; um terceiro ainda é de opinião que se deveria eleger alguém que veio do campo adversário. Ou ainda: um prefere um amigo, outro um parente, outro um adulador. A pessoa realmente apta, porém, não é nem questionada, porque todos se omitem a considerar apenas as qualidades da alma.

Assim, eu estou tão longe de aceitar tais motivos que nem ouso votar em alguém só por causa de seu senso de responsabilidade - mesmo que seja uma das qualidades essenciais - se, junto com a responsabilidade, não tiver um alto grau de sabedoria. Conheço muitos homens que durante toda sua vida se afastaram da sociedade, consumindo-se em jejuns e penitência. Enquanto viviam sós, cuidando apenas dos próprios afazeres, eram agradáveis a Deus, progredindo dia a dia na verdadeira sabedoria. Tão logo, porém, entraram na vida pública e enfrentaram a necessidade de participar da instrução da massa de ignorantes, imediatamente se mostraram incapazes de tal atividade; alguns até, obrigados a perseverar no cargo, esmoreceram em seu zelo, chegando a prejudicar a si mesmos e a comunidade. Outros há que passaram a sua vida no serviço da Igreja, chegando a idade bem avançada. Também a estes, só por respeito a sua idade, não gostaria de ver elevados a tão alta dignidade. Pois o que aconteceria, se, apesar de sua idade e experiência no serviço da Igreja, não tivessem as outras aptidões exigidas para o cargo? Não digo isso, como se quisesse desprezar os cabelos brancos, muito menos para estabelecer como regra a exclusão de todos os eremitas (pois de fato, já por muitas vezes, homens provenientes do estado de eremita se comprovaram brilhantemente), mas para mostrar que, nem conscienciosidade, nem idade constituem provas de aptidão para o cargo, muito menos os motivos acima enumerados.

Outros há que apresentam razões ainda mais absurdas. Uns são aceitos entre o clero a fim de não debandarem para o lado dos adversários, por causa de seu mau caráter, a fim de não causarem maiores prejuízos, caso fossem preteridos. Porventura pode existir algo mais absurdo do que tal atitude? Homens infames, dotados de toda espécie de maldade, são premiados por motivos pelos quais mereceriam ser punidos, e, por razões que deveriam impedi-los até de passar a soleira da igreja, chegam até a dignidade do sacerdócio!

Dize-me: Ainda podemos perguntar pelos motivos da ira divina quando entregamos cargos santos, dignos de respeito e temor, a homens infames que só os desonram e aniquilam? Entregando cargos de responsabilidade a quem deles não são dignos ou a outros homens incapazes de administrá-los, consegue-se colocar a Igreja em situação que não se distingue de um estreito marítimo.

Há algum tempo eu escarnecia dos poderes públicos, dizendo que distribuíam seus cargos não baseados na capacidade, mas orientando-se pelas posses materiais, pela idade e por recomendações. Depois de ter verificado que esses métodos conseguiram infiltrar-se também em nossas atividades, nem mais me admiro. Porventura, é de se admirar vendo que homens profanos, ambiciosos da benevolência das massas, fazendo tudo por dinheiro, não procedam de maneira diferente dos homens que querem parecer perfeitos e livres de todas essas motivações? Quando se trata de promover coisas celestes procedem da mesma maneira como quando tratam de uma nesga de terra ou outra coisa semelhante! Sem mais nem menos tiram homens do meio da grande massa, colocam-nos à frente de coisas tão respeitáveis, que mereceram que o próprio Filho Unigênito de Deus, despojando-se de sua glória, por elas se tornasse homem, assumisse a forma de servo, fosse cuspido, açoitado e finalmente morresse de morte tão vergonhosa!

E não se contentando com isso, acrescentam ainda coisas mais absurdas. Não só elegem homens indignos, mas excluem a todos os que seriam capazes. Assim, como se houvesse necessidade de solapar a segurança da Igreja de dois lados, já não bastando um único motivo para provocar a ira de Deus, acrescentam um segundo não menos nefasto! De fato é minha opinião ser igualmente desastroso, tanto excluir os homens aptos quanto aceitar os ineptos.

Tudo isso acontece de modo que o rebanho de Cristo não pode achar segurança para respirar tranqüilamente. Porventura tal procedimento não mereceria inúmeros raios (da ira divina)? Não mereceria um inferno ainda mais terrífico do que o ameaçado? E mesmo assim, Aquele que não quer a morte do pecador, mas que se converta e viva, aceita e suporta tamanha monstruosidade! Como é admirável sua bondade para com os homens! Como é incomensurável sua misericórdia! Os próprios seguidores de Cristo dilaceram o Corpo de Cristo de maneira mais cruel do que os inimigos e adversários! E mesmo assim, Deus ainda mostra sua bondade, convidando-nos à penitência. Louvado sejas, Senhor! Louvado sejas! Como é incomensurável a tua bondade, como é imensa a plenitude de tua paciência! Homens tirados de sua baixeza, e, em teu nome elevados à honra e dignidade, abusam delas indo contra quem lhas concedeu, e ousam violar o santuário, afastando homens dignos e admitindo indignos que conseguem criar as maiores confusões!

Caso queiras conhecer as causas desta situação desastrosa, verificarás que são semelhantes às citadas anteriormente. Têm a mesma raiz, e, como se costuma dizer, a mesma mãe, isto é, a inveja, mesmo que esta não se apresente sempre da mesma forma. Um, assim dizem, deve ser excluído por ser muito jovem, outro por não saber adular; este porque ofendeu alguém, aquele outro para que não aconteça que alguém se sinta ofendido por não ter sido eleito seu favorito; este por ser muito bondoso e compreensivo; ainda outro porque afugenta os pecadores, ou por outro motivo semelhante. É muito fácil achar pretextos. Até o grande número dos que já ocupam um cargo eclesiástico tornase pretexto, caso não achem outro. Ouve-se afirmar ainda que ninguém deve ser elevado a tal dignidade de repente, mas com vagar e gradativamente. Assim inventam inúmeras razões, tantas quantas quiserem.

Agora gostaria de apresentar-te a pergunta: o que deverá fazer o bispo na luta contra tal anarquia? Como é que poderá ficar firme no meio de vagalhões tão violentos? Como é que deverá enfrentar todos estes ataques? Caso proceda com senso justo, por ocasião das eleições, todos se levantarão contra ele e os eleitos como inimigos e adversários, causando, por suas intrigas, toda espécie de males. Dia após dia inventam algum motivo para perseguirem os eleitos, entregando-os ao escárnio, até que consigam afastá-los e colocar em seu lugar os próprios favoritos. Aqui acontece algo semelhante como ao comandante do navio com piratas a bordo, que continuamente representam perigo de vida para ele, para a tripulação e os passageiros. Caso, porém, o bispo tiver mais consideração para com eles do que pela própria salvação, aceitando (para os cargos eclesiásticos) homens que de maneira alguma deveriam ser aceitos, tornar-se-á adversário não deles, mas de Deus.

Pode haver mal maior do que este? E, com relação aos eleitos, perderá sua autoridade, uma vez que estes, unindose, ganham força contra ele. E assim, como ventos contrários, unindo-se, revoltam o mar, pondo os navegantes a soçobrar, assim também a Igreja, tendo muitos homens perigosos unidos, dentro de sua segurança e tranqüilidade, será sacudida por tempestades, sofrendo inúmeros naufrágios.

16.

Considera em seguida quais devem ser as qualidades de quem se submete a enfrentar tal tempestade e afastar habilmente todos os impedimentos contrários ao bem comum. É mister que seja ao mesmo tempo digno e soberano sem ser presunçoso; que seja respeitável e, ao mesmo tempo, amigável, enérgico e assim mesmo condescendente, incorruptível e, ao mesmo tempo, solícito, modesto mas não servil, rigoroso e bondoso a fim de que consiga vencer facilmente todas as dificuldades mencionadas. Deve empregar toda a sua autoridade em colocar nos cargos só quem for apto, mesmo que todos discordem; deve empregar a mesma autoridade para afastar com energia a quem não for apto, mesmo que todos estejam a favor do mesmo. Somente um deve ser o fim de todas as suas atividades: promover a edificação de sua comunidade não fazendo nada por inimizade, nada por bajulação.

Ainda não chegas a convencer-te de que tive razão em eximir-me deste cargo? E ainda não é tudo que tenho a apresentar. Só peço que não canses em escutar um amigo verdadeiro que pretende provar-te que são injustas as tuas acusações. Pois estas minhas explanações não são úteis apenas para a minha defesa, mas podem ser de grande vantagem para tua administração do cargo episcopal. Porque é absolutamente necessário a quem for chamado para essa dignidade assumir o cargo só depois de rigoroso exame. E para quê? para que conhecendo bem a situação não seja surpreendido, se por acaso tiver que enfrentar tais dificuldades.

E agora, desejas que trate primeiramente da direção das viúvas ou dos cuidados pelas virgens ou dos encargos do poder judicial? Pois cada um desses encargos exige empenho especial.

Para começar, como de costume, com o que se apresenta, mais fácil, parece que a vigilância sobre as viúvas oferece menos trabalho, abstração feita da administração do dinheiro a ser distribuído a elas. Mas apenas parece, pois j á o simples cadastramento das viúvas exige um exame rigoroso. A inscrição delas sem mais nem menos já causou uma infinidade de males. Muitas vezes já tem acontecido que as viúvas destruíram famílias, dissolveram matrimônios, e foram surpreendidas com furtos e encontradas em tabernas ou em outras práticas e desordens semelhantes. Manter tais criaturas com o património eclesiástico provoca, certamente, o castigo de Deus e a desaprovação dos homens, deixando os que tencionam fazer o bem em situação bem delicada. Pois quem iria assumir a responsabilidade de gastar o dinheiro que lhe foi confiado em nome de Cristo em favor de pessoas que desonram esse nome? Por isso deve-se fazer um exame bem rigoroso e cuidadoso para que não se prejudique a mesa dos pobres por causa de viúvas quer indignas quer em condições de elas mesmas se manterem. A estas pesquisas seguem problemas não menores, a saber, que as fontes para a manutenção das viúvas sejam suficientes e nunca se esgotem. Pois a pobreza involuntária é um dos maiores males, gerando continuamente descontentamento e ingratidão.

Precisa-se de prudência e de zelo fora do comum para refrear a língua dessas viúvas removendo qualquer motivo de queixa.

Há muitos considerados aptos para administrar o cargo somente porque se mostraram peritos em lidar com dinheiro. Acho, porém, que generosidade não é suficiente. Mesmo que seja a primeira entre as demais virtudes postuladas porque sem ela seria antes destruidor do que administrador, lobo antes que pastor - deve-se investigar se vem acompanhada por outra virtude importante. Refiro-me à paciência, fonte de todos os bens para a humanidade, virtude esta que, por assim dizer, leva a alma para um porto seguro, onde tranqüila possa ancorar.

As viúvas geralmente costumam usar de uma liberdade desenfreada de falar; em parte por causa de sua pobreza, em parte por causa da idade e em parte por sua própria natureza; ou, para expressar-me ainda mais claramente, elas costumam abrir a boca em tempo inoportuno, acusar sem motivo, lamentar-se 64 quando deveriam agradecer, queixarse de coisas pelas quais deveriam manifestar contentamento.

Tudo isso o bispo deve suportar magnanimamente, não se mostrando vexado, e, muito menos, deixando provocar sua ira pelas acusações injustas. Pois esta pobre gente, devido à situação infeliz, antes merece compaixão do que maus tratos. Por conseguinte, seria sinal da maior crueldade querer ainda maltratá-las em sua desgraça, aumentando seu sofrimento causado pela pobreza, com a dor de ter que suportar insultos. É por isso que diz o Sábio que conhece a natureza humana em sua inclinação para a ganância e o egoísmo, vendo os perigos causados pela pobreza que, muitas vezes, dobra a alma mais nobre, arrebatandoa para um comportamento vergonhoso:

"Dá ouvidos ao pobre de boa vontade,
dá-lhe com doçura uma resposta apaziguadora".
Eclo. 4, 8

Esta exortação, ele a dá, para que ninguém se deixe dominar pela ira ao ser solicitado pelos pobres; para que ninguém mostre animosidade ao ser provocado por suas contínuas insistências. Muito pelo contrário, cada qual deveria sentir-se obrigado a ajudar e mostrar-se amigo acessível aos indigentes. Pois o Sábio não se dirige a um pobre insolente e provocador, prostrado em sua desgraça, mas a um homem que deve mostrar compreensão e benignidade antes mesmo de dar sua esmola, para com a sua afabilidade levantar o pobre, dandolhe coragem e confiança. Assim quando alguém - mesmo não se apoderando do dinheiro destinado às viúvas - começa a censurá-las com mil acusações, as maltrata, deixandose enfurecer contra elas, não só deixa de ajudá-las a se levantarem de sua depressão, mas aumenta a desgraça delas com seus insultos. Porque, mesmo que alguma vez a necessidade sentida em seu estômago as leve a comportar-se inconvenientemente, são sensíveis a tal tratamento. Portanto, caso se vejam obrigadas a pedir esmolas para satisfazerem sua fome e, por causa de sua insistência, sejam obrigadas a suportar vexames, suas almas cairão em completo desânimo, como em trevas.

Por conseguinte, a quem for entregue o cuidado pelas viúvas, deverá possuir tamanha paciência que não só evite aumentar o desânimo delas por expressões de mau humor, mas consiga tranqüilizá-las, demonstrando-lhes sua benevolência. Assim como quem recebe esmola acompanhada de maus tratos não chega a ver a vantagem oriunda desse dom, sentir-se-á animado e alegre quem receber a esmola acompanhada de palavras benevolentes e consoladoras de maneira que, para esta, o valor da esmola até se duplica. Não digo isso por mim mesmo, mas em conformidade com palavras daquele Sábio de quem mais acima já citei aquela exortação. Diz ele:

"Meu filho, não mistures a repreensão com o benefício,
não acrescentes nunca palavras duras e más às tuas dádivas.
Porventura o orvalho não refresca o calor ardente?
Assim, uma palavra doce vale mais do que o presente.
A doçura das palavras não prevalece sobre a própria dádiva?
Mas uma e outra coisa se encontram no homem justo".
Eclo. 18, 15-17

Entretanto, para quem cuida das viúvas não é suficiente ser compreensivo e paciente; deverá mostrar também capacidade administrativa. Carecendo desta qualidade a caixa dos pobres novamente sofrerá prejuízos. Certo homem a quem se tinha confiado tal administração conseguiu amontoar muito dinheiro. Não só não o gastou para si mesmo, mas também não o empregou - com pequenas exceções - em benefício dos indigentes; em vez disso enterrou a maior parte até que as circunstâncias infelizes o fizeram cair nas mãos dos inimigos. Exige-se, por conseguinte, grande circunspecção para que o patrimônio eclesiástico não seja amontoado em demasia, nem seja esbanjado em futilidades. Ao contrário, seja distribuído entre os indigentes tudo o que for coletado, sendo obrigação dos membros da comunidade cuidar que sempre entrem novas somas para os pobres.

De quanto dinheiro, achas, deve-se dispor para garantir boa acolhida aos estranhos e para o cuidado dos doentes? E quanta deve ser a solicitude e a prudência dos administradores? Os gastos para isto nunca costumam ser menores do que os empregados no sustento das viúvas; muitas vezes até os superam. E o responsável por estas despesas, com cuidado e prudência, deve conseguir o necessário, sabendo levar os abastados a repartir sua riqueza de boa vontade e sem murmuração. E não é fácil evitar ofender os doadores quando o zelo pelos indigentes esquece a prudência. Ainda maiores devem ser a prudência e o zelo no cuidado dos doentes. Pois estes costumam ser uma gente descontente e exigente. E, caso não receberem todo o cuidado possível, cresce seu descontentamento.

17.

No que diz respeito à direção espiritual das virgens, é minha opinião que a solicitude deve ser tanto maior quanto mais precioso for o bem a ser cuidado. É verdade que já aconteceu que, até no coro destas santas, mulheres viciadas com mil defeitos conseguiram entrar furtivamente. É sumamente lamentável. Como não é a mesma coisa se quem peca é uma moça livre ou sua escrava, também não o é se a pecadora é virgem ou viúva. É de menos importância quando as viúvas mantêm conversas inconvenientes, quando se injuriam mutuamente, bajulam, são malcriadas, exibem-se em toda parte e perambulam pelas praças públicas; a virgem, porém, sagrou-se para coisas mais altas: dedicou-se a uma sabedoria de vida mais digna, prometendo levar a vida dos anjos já nesta terra. Assumiu a missão de, ainda sujeita à carne, imitar com perfeição a vida daqueles seres incorpóreos.

Não deve procurar saídas desnecessárias; deve evitar também conversas fúteis, injúrias, bajulações, coisas que nem deveria conhecer pelo nome. É por isso que carece de maior proteção e assistência. Pois o inimigo de nossa santificação persegue de preferência as virgens. Fá-lo com especial persistência, sempre pronto a perdê-las, caso tiverem a infelicidade de deslizar e cair. E mesmo abstraindo da própria natureza humana com suas paixões, há muitos homens que procuram insidiá-las com suas intenções inconfessáveis. Assim as virgens devem estar preparadas para a dupla luta: contra a que as ameaça de fora e contra a da própria natureza.

A quem, portanto, for confiada a vigilância sobre elas, compete precaver-se contra inumeráveis perigos. Maior será o perigo e a tristeza, caso uma das virgens cair. Que o bom Deus nos livre disso! Pois se já

"uma filha é uma preocupação secreta para seu pai
e o cuidado dela lhe tira o sono",
Eclo. 42, 9

pelo medo de ela ficar estéril, perder o brilho da juventude e ser desprezada (por seu eventual marido), quanto mais terá que suportar quem tiver o cuidado por coisas muito mais importantes e preciosas? Porque aqui não se trata de um simples homem, a quem ameaça vergonha, mas do próprio Cristo. E esta esterilidade não será causa de vergonha apenas, mas da perdição da própria alma.

"Toda a árvore",

diz o Senhor,

"que não der bons frutos será cortada e lançada ao fogo".
Mt. 3, 10

Ainda: se aqui a noiva for desprezada pelo noivo, não basta ela pedir a carta de separação e procurar seu caminho, mas ela própria terá que expiar o desprezo sendo condenada ao fogo eterno. O pai corporal dispõe de muitos meios que lhe facilitam a vigilância sobre a filha virgem: a mãe, a ama, grande número de escravas, assim como a própria segurança da casa ajudam nessa vigilância. Também não lhe é permitido abandonar a casa com freqüência, perambular pelas ruas e praças, e, no caso em que tiver que sair, querendo, facilmente poderá evitar de mostrar-se aos homens, aproveitando o lusco-fusco da noite e dos muros. Desta forma nunca será obrigada a encontrar-se com homens sem que a proteção de seu pai esteja a seu lado. O único cuidado que tem é não fazer nada, nem falar nada de indigno que possa ofender o pudor.

Entre nós, porém, há muitas coisas que dificultam a vigilância do pai espiritual, tornando-se, até muitas vezes, impossível. Não pode mantêla em sua casa; isso seria inconveniente e perigoso. Mesmo que ambos conservarem sua santidade imaculada, terão que prestar contas pelas almas que com isso se escandalizarem. E' isto com não menos rigor, como se tivessem pecado. Já que não podem viver na mesma casa, surgem grandes dificuldades ao pai espiritual em conhecer as virgens em suas manifestações de alma, a fim de impedir as desordenadas e favorecer as ordenadas e boas, regulando-as, pelos exercícios, até a perfeição. Também seria fácil vigiar as saídas. Pois a circunstância de tratar-se de moças pobres e não vigiadas torna impossível ao bispo informar-se sempre sobre a guarda do necessário decoro. Além disso, elas mesmas serão obrigadas a cuidar de sua manutenção. Por isso, caso o queira, facilmente encontra pretextos para sair. E quem quiser obrigá-la a ficar em casa, primeiro deverá remover tais pretextos, cuidando ele mesmo das necessidades delas, colocando-lhes à disposição uma pessoa para os serviços respectivos. Até deveria cuidar que não saíssem nem para enterros e nem para o culto divino noturno. Pois a serpente astuciosa sabe realmente inocular seu veneno até por ocasião do exercício de obras louváveis. Assim a virgem deve ser protegida de todos os lados como por uma muralha, da qual poderá sair raríssimas vezes, e só por motivos gravíssimos.

Se contudo alguém quiser afirmar que tudo isso não deveria ser da competência do bispo, deverá saber que é justamente ao bispo que costumam atribuir tais cuidados e responsabilidades. Por isso é preferível cuidar ele pessoalmente destas coisas, evitando ser censurado, a sofrer acusações por causa de erros alheios. Negligenciando seus deveres episcopais teria que tremer em sua responsabilidade por causa das ações de estranhos. Além disso, quem pessoalmente trata de tudo, fá-lo-á com a consciência mais livre. Quem para o mesmo serviço primeiro tiver que convencer homens de opiniões diferentes, descobrirá logo que não se liberou do trabalho. Pelo contrário, em vez de alívio encontrará embaraços e confusões da parte daqueles que possam ter opiniões diferentes.

Não posso, finalmente, mencionar o explicar todos os cuidados que exige a vigilância sobre as virgens. Os citados já bastam para mostrar o que exigem de quem receber tal incumbência.

Finalmente, com respeito ao poder judicial, ele inclui inúmeros encargos que exigem muito trabalho e têm por conseqüência tantas e tamanhas dificuldades como nem os juízes profanos têm a enfrentar. Porque de um lado não é fácil achar o que é justo, e, de outro, tendo-o encontrado, é igualmente difícil não ofendê-lo.

Mas não traz somente trabalho e dificuldades; acarreta também perigos apreciáveis. Quantos, entre os mais fracos, já perderam sua fé quando, envolvidos em rixas, não encontraram a proteção da justiça? E muitos daqueles que forem assim injustiçados odiarão os que lhes negaram proteção, da mesma forma como os que lhes causaram a própria injustiça. Nestes casos não respeitam as complicações da questão, nem gravidades circunstanciais, nem a precariedade do poder judicial dos sacerdotes, nem outras circunstâncias quaisquer. Arvoramse em Juízes inexoráveis, admitindo uma só defesa a libertação do mal que os oprime. E quem não lhes conseguir esta libertação não escapará de sua condenação, mesmo que tenha mil razões para sua justificação.

Tendo mencionado esta proteção judicial, deixa-me apresentar ainda outro pretexto de queixas contra o bispo. Caso ele não der diariamente sua volta de casa em casa, terá que enfrentar muitas coisas indizivelmente desagradáveis. Não só os doentes querem ser visitados. Também os que gozam de boa saúde, e, muitas vezes, não motivados pelo respeito, mas simplesmente pelo desejo de serem distinguidos e honrados. Caso acontecer que tenha necessidade de visitar com mais freqüência alguém mais rico e mais honrado para o bem da Igreja necessitada, imediatamente cairá na suspeita de ser bajulador.

Entretanto, por que falo tanto em proteção judicial? E em visitas? Quantas censuras e quantas acusações os bispos têm que suportar por causa de suas pregações? A carga dos acusadores, às vezes, é tão pesada que os bispos se sentem humilhados e sem coragem. Até de seus olhares exige-se prestação de contas! A grande massa examina com rigor qualquer apresentação do bispo: observa o timbre de sua voz, a expressão de seu olhar, a intensidade de seu riso. A este ou àquele - assim dizem - presenteou com um riso mais afável, mostrou um rosto mais alegre, falou com voz mais amigável; a mim, no entanto, quase não viu. Caso durante a pregação não olhar para todos os lados, acusam-no de falsa modéstia e de soberba.

Quem será suficientemente forte para não deixar afetarse por tantas acusadores? Como poderá sentir-se justificado no meio de tantas críticas? - Propriamente, o bispo nunca deveria estar sujeito a críticas; já que isto não é possível, deverá procurar livrar-se delas. Como não é fácil, principalmente porque muitos até sentem alegria em levantar críticas impensadas e infundadas, não deve desesperar, mas, apesar de tudo, mostrar sempre fortaleza. Quem receber críticas justificadas consegue mais facilmente enfrentar a quem o acusa.

Não existe acusador mais amargo do que a própria consciência. Por isso, caso tivermos que enfrentar primeiro a este acusador, aqueles outros críticos externos pouco nos afetam. Aquele, porém, cuja consciência estiver totalmente tranqüila, ouvindo críticas sem fundamento, facilmente se deixa arrebatar pela ira até o desânimo, a não ser que antes já se tenha exercitado em suportar quaisquer males provenientes da grande massa popular. Não existe a menor dúvida de que é extremamente difícil que alguém, sendo injustamente caluniado e inocentemente condenado, não perca a serenidade e não se sinta humilhado por tal malícia diabólica.

Em seguida, como achar palavras para descrever a tristeza do bispo quando se tornar necessário excluir alguém da comunidade eclesiástica? Oxalá tal desgraça termine nesta tristeza! Ainda está iminente outra desgraça não menos grave. É de temer que, caso alguém tiver sido punido além da medida, aconteça aquilo de que fala S. Paulo:

"que o tal venha a ser consumido por uma excessiva tristeza".
II Cor. 2, 7

Também neste caso torna-se mister usar de extrema prudência a fim de que não aconteça que aquilo que deveria ser um bem se torne causa de maior mal. Pois também o médico, não tendo acertado no corte, é objeto da ira divina causada por todo e qualquer pecado cometido por quem recebeu punição tão excessiva. Que castigo pesado não o aguarda se tiver que prestar contas não só das próprias falhas, mas também das dos outros?

Se já nos causa tremor o pensamento de termos que prestar contas por nossos próprios pecados, temendo não conseguir escapar daquele fogo, quanto mais não deve tremer e temer quem for responsável por tantos? E que isto corresponde à pura verdade, poderás deduzir das palavras de Paulo, ou, antes, do próprio Cristo que fala pela boca de seu santo:

"Obedecei a vossos guias e sede-lhes submissos,
porque eles velam por vossas almas,
cônscios de dever prestar contas a Deus".
Hb. 13, 17

Depois de tal ameaça, pode ser pequeno o temor de semelhante responsabilidade? Pelo contrário, deve ser indizivelmente grande.

Finalmente tudo isto, na verdade, deve ser suficiente para convencer os homens mais teimosos e mais obstinados de que não me eximi do peso desse cargo nem por soberba, nem por ambição, mas unicamente pelo temor da imensa responsabilidade.