LIVRO SEXTO

1.

Assim estão as coisas neste mundo; exatamente como acabas de ouvir. Como, porém, suportaremos o que nos espera no além, quando tivermos que prestar contas de cada qual que nos fora confiado? Lá, a nossa desgraça não será apenas a vergonha, mas castigo eterno. Devo repetir aqui a palavra de São Paulo já citada mais acima:

"Obedecei a vossos guias e sede-lhes submissos,
porque eles velam por vossas almas,
cônscios de deverem prestar contas a Deus".
Hb. 13, 17

É o temor desta responsabilidade que continua sacudindo minha alma. Pois, se para quem der escândalo - seja a um único e ao menor - melhor seria que lhe amarrassem ao pescoço a pedra de moinho e o precipitassem no mais profundo do mar e, se todos que ferem a consciência dos irmãos pecam contra Cristo, o que não deverão sofrer, que punição não aguardarão aqueles que não levaram à perdição apenas um, dois ou três, mas verdadeiras massas?! Então inexperiência não será desculpa; nem ignorância, compulsão ou coação servirão de pretexto. Antes um súdito, se for o caso, poderia apresentar tais desculpas pelos próprios erros, do que um superior pelos erros alheios. E por quê? - Porque quem for chamado a prestar auxílio a outros para vencerem a ignorância e a protegê-los contra os ataques do demônio não poderá, ele mesmo, pretextando ignorância, dizer: Não escutei a trombeta! Não pude prever a luta! Pois, conforme as palavras do profeta Ezequiel, é sua obrigação fazer soar a trombeta para dar alarme à população. É por isso que não escapará ao castigo, se perder um só dos seus. Pois diz ainda Ezequiel:

"Suposto que a sentinela veja vir a espada,
não faça soar a trombeta,
de sorte que o alarme não seja dado às gentes
e que a espada venha tirar a vida de alguém;
este, é certo, perecerá devido à sua iniqüidade,
mas eu pedirei conta de seu sangue à sentinela".
Ez. 33, 6

Portanto, deixa de lançar-me num julgamento tão rigoroso, já que aqui não se trata do cargo de um general de exército, nem do governo de um rei, mas de um cargo que exige a perfeição de um anjo!

2.

A alma do sacerdote deve ser mais pura do que os raios do sol, a fim de que o Espírito Santo não o abandone e ele possa dizer realmente:

"Eu já não vivo: é Cristo que vive em mim".
Gl. 2, 20

Se os habitantes do deserto, depois de fugirem da cidade com seu burburinho gozando da tranqüilidade e da segurança daquela vida, ainda se cercam de todos os lados com mil cuidados para poderem viver ainda mais tranqüilos e satisfeitos; se eles planejam diligentemente todo o seu falar e agir a fim de que possam com a pureza e segurança possíveis a seres humanos aproximar-se mais de Deus, quanto esforço, quanta diligência não deverá empregar o sacerdote, para conservar imaculadas a pureza de sua alma e a formosura de seu espírito? Pois sua pureza deve ser maior . do que a dos eremitas; e quem necessitar de maior pureza, também estará mais exposto aos perigos que ameaçam maculá-la, se não conseguir fechar a elas sua alma através de contínua vigilância e extraordinária diligência. Pois um rosto formoso, movimentos delicados, um andar afetivo,' uma voz suave, olhos enegrecidos, faces pintadas, penteados artísticos, cabelos tingidos, indumentária preciosa, jóias brilhantes de ouro, pedras cintilantes, ungüentos aromáticos e todas as outras falsas aparências com que o sexo feminino gosta de fascinar conseguem inquietar a alma de quem não estiver preparado por contínuos exercícios de autodisciplina.

Que essas coisas consigam atribular a alma humana, não é de admirar; o fato de acontecer, porém, que o demônio consiga penetrar na alma humana também através do contrário de tudo isso, causa realmente admiração e até estupefação. Muitos, tendo escapado das redes antes mencionadas, ficam presos em armadilhas completamente contrárias um rosto descuidado, cabeleira revolta, vestidos sujos, movimentos sem graça, comportamento rude, linguagem baixa, andar relaxado, voz rude, uma vida em miséria e desprezo, solitária e desprotegida, tudo isso já levou a quem o viu, primeiro à compaixão e, em seguida, à perdição.

3.

Realmente muitos, depois de terem conseguido escapar das redes mencionadas primeiramente, como sejam, jóias; perfumes, vestimentas e dos outros meios de sedução acima enumerados, deixaram prender-se levianamente pelos laços contrários e se perderam. Ora, se tanto pela pobreza quanto pela riqueza, tanto pelo cuidado no embelezamento do corpo quanto pelo seu relaxamento, tanto pelo comportamento fino quanto pelo rude, enfim, se por tudo quanto enumerei, a alma de quem assiste a tudo isso será ameaçada de todos os lados, como é que, no meio desse emaranhado de laços e perigos, conseguirá respirar livremente? Onde encontrará refúgio? - Não se trata de refúgio para escapar à imposição e à força, pois isso não será o mais difícil, mas para conservar sua alma também livre de pensamentos prejudiciais. Não vou mencionar de modo especial as homenagens prestadas que também são causa de muitos males. As promovidas por mulheres costumam prejudicar a autodisciplina, fazendo perder-se quem não estiver vigilante. As promovidas por homens, caso não encontrem extraordinária magnanimidade, expõem facilmente a duas paixões contrárias, isto é, à adulação servil ou à fanfarronice tola. A conseqüência será, de um lado, inclinar-se e sujeitar-se aos aduladores e, de outro, sentir-se o maior, desprezando a todos os outros.

De minha parte quero dizer apenas isto: o tamanho do perigo e do prejuízo só pode medir quem tiver experiência própria. Não só os perigos enumerados, mas muitos outros, ainda maiores, não poderão ser evitados por quem vive no mundo. Quem todavia gostar da solidão poderá sentir-se seguro de todos esses perigos. Caso alguma vez surja algum pensamento inconveniente, a imagem apresentada será fraca e poderá ser banida facilmente, porque a chama não recebe alimentação de fora pela contemplação de imagens reais. E, finalmente, o eremita terá que cuidar apenas de si mesmo. Caso alguma vez tiver outros sob o seu cuidado, serão poucos e nunca chegarão ao número de uma comunidade eclesiástica. Seus cuidados ainda são poucos e fáceis, não só devido ao pequeno número, também porque estão afastados dos afazeres profanos. Não tem mulher, nem filhos para cuidar. Devido a esta circunstância também costumam ser obedientes aos guias espirituais, o que facilita a vida em comum de tal maneira que qualquer deslize será notado e facilmente corrigido. Esta contínua vigilância da parte de um mestre é a garantia para o progresso na virtude.

4.

Ao contrário, a maioria das pessoas confiadas aos sacerdotes costuma ser inquietada por preocupações profanas que as tornam tão inertes para qualquer ocupação com coisas espirituais. Por isso, o sacerdote deve, por assim dizer diariamente e sempre de novo, espalhar sua semente, a fim de que a palavra de sua doutrina, pela contínua repetição, chegue a penetrar até a alma dos ouvintes. Pois grandes riquezas, posição de alto poder, leviandades em conseqüência de uma vida sensual, com muita facilidade sufocam a semente espalhada e, muitas vezes, até formam espinheiros tão densos que nem deixam a semente chegar a tocar a terra. Não é verdade que, mais do que tudo isso, a tristeza proveniente de uma extrema pobreza e um tratamento muito injusto conseguem desviar a mente de tudo o que é santo e divino? - Se houver crimes entre eles, o seu conhecimento nem sequer chegará aos sacerdotes, pois a grande maioria da massa não lhes é conhecida nem pelo simples aspecto.

Inquirindo, em seguida, a respeito de suas relações com Deus, constatar-se-á que tudo o que já foi dito nada representa. Sua diligência neste ponto deverá ser muito maior e de extraordinária responsabilidade. Pois quem se apresentar como intercessor de uma cidade inteira - o que digo, cidade? -, muito mais, de todo o orbe terrestre, pedindo a Deus misericórdia pelos pecadores, não só dos vivos, mas também dos que já morreram, que personalidade, que responsabilidade não se exigirá para isso?!

Eu, de minha parte sou da opinião que nem a sinceridade e a grandeza de Moisés e de Elias poderiam apresentar tais pedidos. Como se lhe fosse confiado o mundo inteiro, como se fosse o pai de todos os homens, o sacerdote se apresenta perante o trono de Deus com os pedidos: que em toda parte se extinga o facho da guerra, que se acabem as revoluções, que se faça paz e chegue para todos o bemestar e a libertação de todos os males, tanto dos males particulares, quanto dos públicos e comuns. Mas parece-me ser mister também que ele supere a todos pelos quais pede, pelo menos tanto quanto esta diferença costuma ser normal nas relações entre superior e súditos.

E, no momento em que ele, invocando o Espírito Santo, realiza o sacrifício mais santo, tocando com suas mãos o Senhor de todas as criaturas, diga-me qual o grau de dignidade que lhe possamos atribuir? Que pureza, que conscienciosidade não devemos dele exigir? Já pensaste como devem ser as mãos que manipulam tal atividade, como deve ser a língua que pronuncia tais palavras, como deve ser a alma para poder receber tal Espírito? Naquele momento os próprios anjos estão em redor do sacerdote; o Santuário, o espaço em redor do altar, estão repletos de coros celestes para adorar a vítima sobre o altar. Tudo isso, considerando o que está acontecendo sobre o altar, será suficiente para merecer nosso crédito. Além disso, ouvi alguém contar que um ancião, homem santo e estimado, agraciado com freqüentes visões, certo dia descreveu uma dessas visões: De repente viu um semnúmero de anjos, vestidos com vestimentas claras e brilhantes inclinando-se em redor do altar como geralmente os soldados estão em torno de seu rei. - Eu também acredito nisso! - Outra pessoa que não o escutou de terceiro, mas ela mesma o experimentou, contou-me que homens prontos para passar desta vida para a outra, tendo recebido este mistério com a consciência pura, devido a este dom recebido no momento em que sua alma se separa do corpo, são recebidos e acompanhados por anjos como por um corpo de guarda.

E tu ainda não recuas, tremendo, ao querer empurrar para um serviço tão santo uma alma como a minha, um homem vestido com vestimentas tão indignas que o próprio Cristo o excluiu do banquete? Como a luz que ilumina o mundo deve brilhar a alma do sacerdote. A minha, porém, por causa da má consciência, encontra-se envolvida numa escuridão que não permite levantar os olhos para o Senhor. Os sacerdotes são o sal da terra. Minha imprudência e inexperiência em todas as coisas, quem além de ti a suportará? Quem for achado digno de ocupar tão alto cargo, de verá apresentar-se não só puro, mas com elevado grau de inteligência e vasta experiência de vida; de um lado deve saber movimentar-se em todas as coisas profanas - como se vivesse no meio delas - e de outro, deve mostrar-se desapegado de tudo isso mais do que os próprios eremitas que se retiraram para o deserto. Pois é mister que mantenham relações com pessoas: com casados com problemas na educação dos filhos; com homens que dispõem de criadagem, que gozam de grandes riquezas, que ocupam altos cargos públicos e posições de grande influência. Deve ser versado em muitas coisas; digo versado, não ardiloso; nenhum adulador ou fingido, mas um homem de caráter aberto e sincero que, caso as circunstâncias o exigirem, também saberá ser condescendente, suave e rigoroso ao mesmo tempo. Pois não é possível tratar da mesma maneira a todos os súditos, assim como seria tolo o médico querer tratar com o mesmo remédio todos os doentes, ou o timoneiro, na tempestade, conhecer apenas uma única maneira de conduzir o navio. Também esta nau (a Igreja) encontra-se, muitas vezes, no meio de tempestades provenientes não apenas de fora, mas também de dentro. Daí a necessidade tanto de condescendência compreensiva quanto de absoluto rigor, conforme cada caso o exigir. Todas essas exigências mencionadas visam um único fim: a glória de Deus e o bem da Igreja.

5.

Grande é a luta dos eremitas, muitas são as preocupações que eles enfrentam. Entretanto, comparando seus esforços com a administração conscienciosa do sacerdócio, encontraremos uma diferença maior do que a existente entre um simples cidadão e um rei.

Mesmo na vida do eremita a luta cotidiana exige grandes esforços, participando deles o corpo e a alma; ao corpo cabe a maior participação. Se este não se mostrar suficientemente forte, fica apenas a boa intenção que não consegue transformar-se em ações concretas. Jejuar, dormir no chão, vigílias noturnas, dispensa de banhos, muito suor e todos os outros meios com os quais os eremitas costumam disciplinar seu corpo, de nada valem, se o corpo a ser disciplinado não se mostrar suficientemente forte. No sacerdócio, porém, trata-se exclusivamente das atividades da alma. Esta, para provar seu valor, não necessita de um corpo de constituição forte. A força do corpo em nada contribui para evitar que fiquemos vaidosos ou irritados, que nos comportemos inconvenientemente, como também em nada contribui para que sejamos sóbrios, irrepreensíveis, equilibrados, possuindo, enfim, todas as qualidades que S. Paulo, o exemplo de um sacerdote perfeito, enumerou.

O eremita, para sua perfeição, não carece dessa atividade da alma. Como os prestidigitadores se servem de muitos instrumentos, de rodas, cordas, facas e outros - o sábio, porém, leva todo o seu saber dentro da alma sem precisar de instrumentos materiais, - assim acontece com as coisas no campo- de que estamos falando. O eremita precisa de maneira toda especial do bem-estar corporal e de lugares para residir que não estejam sobremaneira afastados das cidades, garantindo-lhe apenas o silêncio, a solidão e um clima adequado. Pois não existe nada mais insuportável para um corpo enfraquecido pelo jejum, do que um clima desequilibrado. É fácil compreender que os eremitas têm de enfrentar dificuldades somente para abastecer-se dos mantimentos necessários e as vestimentas adequadas.

6.

O sacerdote - ao contrário dos eremitas - não precisa preocupar-se com suas necessidades materiais; vive em comunidade com outros homens, usando de todas as coisas que não são nocivas, podendo desta forma guardar no fundo de sua alma toda a sua capacidade e atividade. Se alguém quiser expressar sua admiração pelos eremitas em sua vida solitária, longe da comunidade com os outros homens, confesso que também eu acho que a sua vida seja prova de grande autodisciplina, porém de maneira alguma um testemunho de alma perfeita. Pois quem estiver com o leme do navio dentro do porto, não dará prova de sua capacidade; contudo, quem em alto-mar, em meio à tempestade, souber dirigir e salvar o navio, este sim, será considerado timoneiro apto e seguro.

7.

Portanto, o eremita que na solidão consegue o equilíbrio -de sua alma, mantendo-se livre de graves pecados, não merece grande admiração e louvores especiais. A ele faltam por completo todas as ocasiões que costumam aliciar e seduzir a alma. Quem, todavia, se dedicar às massas populares, obrigado a ver e suportar os delitos de tantos e, não obstante, continuar firme, dirigindo sua alma através daquelas tempestades como se fossem calmarias, com toda razão merece nossos aplausos e admiração, pois apresentou provas de sua capacidade. Portanto, também tu não deves admirarte, sobremaneira, que são poucos os que me acusam; é porque eu também evito as praças públicas e fujo da convivência com a grande massa popular. Não te deves admirar disso mais do que do fato de que não pecava enquanto dormia, não sofria derrota poque não me apresentava à luta, não era ferido porque não participava do combate.

Dize-o tu mesmo: quem estará em condições de denunciar as minhas faltas? Talvez este telhado, ou esta casa? Mas eles não sabem falar. Quem poderia falar é minha mãe que me conhece mais profundamente. Entretanto, nem com ela tenho relações além daquelas que são comuns entre filhos e suas mães, e jamais discuti ou briguei com ela. Mesmo que tivesse brigado com ela, não existe mãe que tenha tão pouco amor e tanta inimizade para com aquele que pôs no mundo com tantas dores, que sem motivo algum iria falar mal dele.

Caso alguém quisesse examinar a minha alma, com certeza, nela encontraria muitos defeitos; tu mesmo o sabes muito bem, justamente tu que costumas louvar-me perante todo mundo. Não digo isso por falsa modéstia. Lembra-te, quantas vezes, em nossos diálogos sobre isso, declarei expressamente caso tivesse que escolher entre o cargo de superior eclesiástico e o de eremita, mil vezes escolheria o primeiro. E' nunca perdi ocasião de louvar a todos os que sabem administrar com eficiência tal cargo. Assim ninguém poderá contradizer-me se afirmo que nunca me teria eximido dessa dignidade, caso me tivesse considerado apto a administrá-la. Mas o que deverei fazer agora? Para esse cargo eclesiástico nada é tão prejudicial e pernicioso como a minha inércia e passividade. Pode ser que alguém veja nisso alguma autodisciplina; eu, porém, vejo apenas uma espécie de pretexto para esconder a minha falta de aptidão e todas as demais faltas que não gostaria fossem reveladas perante todos. Porque quem estiver acostumado a tal inatividade, levando sua vida em plena ociosidade, mesmo tendo um caráter forte, uma vez no cargo, com muita facilidade perderá a calma e irritar-se-á por lhe faltar a experiência; esta inexperiência prejudica grandemente sua qualidade inata de chefe. Contudo, caso alguém, além de tal inexperiência, for ainda de raciocínio lerdo - o que acontece comigo - então, ao ter assumido o cargo, não se distinguirá de uma estátua feita de pedra.

Por isso acontece que muitos dos que provêm das escolas de eremitagem, entrando nesse campo de luta, não conseguem destacarse; a maioria chega até a passar vergonha, emaranhando-se em briguinhas desagradáveis e rixas prejudiciais. É perfeitamente natural. Pois tanto os exercícios como as próprias lutas deverão perseguir a mesma finalidade, caso contrário na luta o exercitado não vale nada mais do que o inexperiente. Quem assumir tal cargo deverá de maneira toda especial desprezar honras, dominar a ira e ser de um bom senso bem fundamentado.

Tudo isso faltará ao eremita por não ter ocasião de exercitar-se nessas virtudes. Não encontra quem possa provocar-lhe a ira, nem quem lhe dê aplausos e lhe preste honrarias para poder exercitar-se em não perder sua equanimidade; e no que diz respeito à administração das Igrejas, é manifesto que o eremita não terá ocasião de aprendê-la. Então, no momento em que tiverem que enfrentar lutas, para as quais não se prepararam, cairão no redemoinho da confusão e do desamparo; até, muitas vezes, tem acontecido que, em vez de progredirem em virtude e experiência, perderam o que nisso tinham adquirido.

8.

E agora, perguntou Basílio? Porventura deveremos entregar a administração das Igrejas a pessoas que se encontram bem no meio da vida mundana, cujas preocupações apenas giram em torno de riquezas materiais, que estão acostumados a enfrentar rixas e críticas, que, finalmente, se destacam por sua astúcia e sua vida opulenta?

Deus nos livre, meu caro amigo, retruquei! Desta gente nem sequer devemos lembrar-nos, quando se trata de escolher candidatos para o sacerdócio; deveremos procurar saber se o candidato, em suas relações com os homens, conservou a pureza de sua alma, a tranqüilidade, a santidade, a autodisciplina, a sobriedade e todas as outras virtudes próprias dos eremitas. Não só se as conservou incólumes e imaculadas, mas se nelas não conseguiu até superar os eremitas. Entretanto, quem tiver muitas faltas e procura escondê-las por uma vida solitária, conseguindo assim torná-las ineficientes, fugindo das relações com outros homens, tão logo voltar para o mundo, terá como único lucro tornar-se ridículo perante a multidão e cair em perigos dificilmente evitáveis.

Por pouco também eu me teria exposto a tudo isso, não fosse a proteção divina que desviou este fogo de minha cabeça. Quem se encontrar em tal situação, não conseguirá ficar despercebido quando aparecer em público. Tudo nele será submetido a exame rigoroso da parte da multidão. Como a substância dos metais se prova pelo fogo, o próprio cargo espiritual será a prova no julgamento das almas humanas. Se alguém for irascível, mesquinho, ambicioso, presunçoso ou qualquer outra coisa, essa prova o manifestará. Também outras faltas serão rapidamente descobertas. Esse cargo não só as descobre, mas aumenta-as até ao extremo. Como as feridas do corpo custam a sarar quando são tocadas muitas vezes, assim também as paixões da alma mais se inflamam quando forem provocadas e alimentadas; e quem estiver dominado por elas será levado a deslizes mais freqüentes. Quem não for vigilante facilmente será levado à ambição, à presunção, à avidez; será lançado numa vida de passividade, de leviandade e moleza, o que será causa de outros males ainda maiores.

Na realidade, neste mundo existem milhares de ocasiões que conseguem afrouxar a consciência e desviar a alma do caminho reto. Em primeiro lugar devo mencionar as relações com as mulheres.

O superior a quem cabe o cuidado de todo o rebanho, ocupado totalmente com as providências relativas ao sexo masculino, não deve esquecer-se do sexo feminino. Justamente este - devido a sua inclinação fácil para o pecado - necessita de cuidados especiais.

Portanto, quem receber o cargo de bispo, deverá exercer suas obrigações pastorais, em medidas iguais, também em favor do bem-estar das mulheres. É sua obrigação visitá-las quando doentes, consolá-las quando tristes, censurá-las quando levianas e ajudá-las quando sofrem necessidades. Nessas ocasiões o demônio encontrará muitos caminhos pelos quais conseguirá entrar na alma, se esta não estiver bem protegida por uma rigorosa vigilância. Pois os olhares da mulher tocam e inquietam a nossa alma; não só os olhares da mulher leviana, mas também os da mulher honesta; adulações amolecem, homenagens escravizam. E assim, o amor exuberante, fonte de toda a felicidade, torna-se a causa de males inumeráveis para os que dele não sabem fazer uso correto. Preocupações contínuas já reduzem a clareza de nosso raciocínio, tornando a nossa atividade espiritual lerda, parecendo carregada de chumbo. Se a isso ainda se acrescentar a excitação apaixonada, a alma se apresenta como que repleta de fumaça. Como seria possível mencionar todas as humilhações e ofensas que enchem a alma do bispo com tristeza? 23 Como enumerar os tratamentos presunçosos e maliciosos a que estará exposto, bem como as críticas provenientes das camadas altas e baixas da sociedade, de inteligentes e de ignorantes?

9.

Justamente as pessoas incapazes de julgar qualquer ação ou qualquer pessoa costumam mostrar-se os mais criticantes, e dificilmente se mostram acessíveis a argumentos de justificação. Um bom superior não deve desprezar nem a estes, mas procurará remover as acusações levantadas, com calma, compreensão e humildade, preferindo perdoar uma censura imerecida a irritar-se e vingar-se dela. Se o próprio S. Paulo, temendo tornar-se suspeito de furto junto a seus discípulos, chamou outros homens para ajudar na administração dos bens

"a fim de evitar",

como diz ele,

"que alguém nos censure por causa desta soma importante
que passa por nossas mãos".
II Cor. 8, 20

O que não deveremos fazer nós para evitar suspeitas maliciosas e conservar nossa reputação? Nenhum de nós está tão distante de qualquer pecado como S. Paulo esteve do furto. Mesmo que estivesse longe de praticar qualquer ação má, ele contou com a possibilidade de alguma suspeita da parte da multidão por mais irrisória e tola que pudesse parecer. Teria sido loucura manifestar qualquer dúvida em relação a essa alma santa e digna de toda a admiração; mesmo assim preocupou-se por remover de antemão os motivos mais remotos que pudessem servir para levantar uma sombra de suspeita, mesmo que fosse insana e tola. Também não desprezou uma eventual insensatez da multidão, declarando simplesmente: quem por acaso poderá pensar em levantar alguma suspeita sobre minha pessoa, a quem todos conhecem e admiram por causa de seus feitos milagrosos e sua vida ilibada? Não, pelo contrário. Prevendo tal suspeita, cortou-lhe a raiz, de maneira que nem mais poderia levantar-se. E por quê? - Ele mesmo o diz:

"Porque cuidamos da boa reputação,
não só diante do Senhor,
mas também diante dos homens".
II Cor. 8, 21

Cuidado igual - ou ainda maior - também nós devemos ter em relação a boatos e rumores: prever seu aparecimento e remover as causas; e caso surgirem, abrandá-las e desviá-las antes de se tornarem objeto da loquacidade do povo. Porque então será muito difícil - senão impossível acabar com elas. Na verdade merece castigo quem começar a preocupar-se com os boatos só depois de estes já terem causado grandes prejuízos.

Até quando, porém, deverei preocupar-me em procurar o inacessível? Por que vou querer enumerar todas as conseqüências e vicissitudes? Seria o mesmo que pretender medir a imensidade do mar. Mesmo se alguém tiver conseguido manter-se livre de qualquer paixão - o que, convenhamos, é impossível ao ser humano - terá que submeter-se a mil contrariedades, procurando corrigir os erros dos outros. Se a tudo isso acrescerem as falhas próprias, podes imaginar a exorbitância de preocupações e as fadigas que aguardam aquele que quer dominar as paixões dos outros juntamente com as próprias.

10.

Basílio pergunta. E tu agora, enquanto vives só e solitário, não tens que enfrentar dificuldades? E estás isento de preocupações?

Realmente - retruquei - também as tenho agora. Como seria possível que um homem, enquanto vive neste vale de lágrimas, esteja livre de cuidados e lutas? Entretanto, não é a mesma coisa encontrar-se abandonado no meio do mar ou no meio de um rio. Tão grande é a diferença entre ambos os tipos de preocupações. Também agora desejaria - e isto com toda a sinceridade - ser útil a outros o quanto possível; caso, porém, não puder ajudar a nenhum dos meus próximos, estarei satisfeito em poder salvar-me pelo menos a mim dessas ondas e tempestades.

Basílio interrompeu. Por acaso consideras isso grandioso? E, finalmente, acreditas poder salvar-te sem ter sido útil a teu próximo?

Esta tua observação é boa e muito oportuna, respondi. É minha convicção não poder salvar-se quem nunca se incomodou com o bem do próximo. Nada ajudou àquele coitado cuidar de não diminuir o seu talento; somente porque não o aumentou, perdeu-o totalmente. Mesmo assim é minha opinião ter que suportar punição mais leve, sendo acusado apenas de não ter salvo outros do que merecendo a acusação de me ter perdido a mim mesmo junto com muitos outros que me tinham sido confiados. Acho agora que meu castigo seja proporcional apenas a meus próprios pecados; caso, porém, tivesse aceito a dignidade de superior, por certo, não deveria esperar apenas um castigo duplo ou triplo, mas múltiplo, porque além de ter escandalizado a muitos, teria ofendido a Deus depois de ter recebido dele tal dignidade acompanhada de tantas graças.

11.

Por isso o próprio Deus levanta acusações mais graves contra os israelitas, mostrando dessa forma que merecem punição mais grave porque pecaram apesar dos múltiplos benefícios recebidos. Assim diz Ele:

"Dentre todas as raças da terra só a vós conheci;
por isso vos castigarei por todas as vossas iniqüidades".
Am. 3, 2

E em outro lugar:

"Suscitei profetas dentre os vossos filhos
e nazarenos dentre os vossos jovens".
Am. 2, 11

Já antes do tempo dos profetas, Deus mostrou que os pecados cometidos por sacerdotes merecem castigo maior do que os cometidos por leigos. Por isso mandou que fosse oferecido igual sacrifício pelo sacerdote como pelo povo inteiro. Com isso quer dar a entender que as feridas do sacerdote precisam de auxílio maior, até tão grande como todas as feridas do povo em conjunto. Naturalmente não necessitaria de auxílio maior se não fossem maiores as feridas. Não são maiores por sua natureza, mas tornam-se mais graves unicamente devido à dignidade do sacerdócio. Afinal, o que estou falando dos homens chamados ao santo serviço? Até as filhas dos sacerdotes estão sujeitas a castigos mais graves pelos mesmos pecados, apenas devido à dignidade de seus pais. O delito das filhas dos leigos é o mesmo das filhas dos sacerdotes. Em ambos os casos, tratase de prostituição; o castigo, porém, é bem diferente.

12.

Vês como o próprio Deus procura provar-te, da maneira mais clara, que a punição reservada aos superiores é sensivelmente maior do que a reservada aos súditos? Pois, se até a filha de um sacerdote é punida mais severamente do que os outros - somente por ser filha de sacerdote -, então, por certo, exigir-se-á satisfação ainda muito mais rigorosa do pai. Com toda razão! Pois as conseqüências do pecado do sacerdote atingem não somente a ele mesmo. Fazem cair também as almas dos mais fracos e de muitos outros que olham para o sacerdote como para seu ideal. É isto que o profeta Ezequiel quer insinuar, separando, no julgamento, as ovelhas e os carneiros.

Consegui, finalmente, convencer-te que meu medo tinha fundamento? Na minha situação atual, mesmo que tenha que esforçar-me para minha alma não ser derrotada pelas paixões, consigo resistir e não fujo da luta. De fato, também agora a ambição me humilha; muitas vezes levantome de novo, verificando que fui prisioneiro; às vezes acontece também que lá me encontre acumulando uma infinidade de autocensuras sobre minha alma humilhada. Desejos inconvenientes me perseguem; a chama acesa por eles, porém, é tanto menos eficiente quanto menos alimentação encontra através de meus olhos. Estou livre da vontade de caluniar ou ouvir calúnias, porque não tenho ninguém com quem dialogar; com estas paredes não se pode dialogar, pois elas não têm ouvidos, nem voz. Entretanto, ainda não me é possível evitar a ira, apesar de não haver ninguém que possa provocá-la. Isso acontece porque muitas vezes me vem a recordação de homens desprezíveis e de suas atitudes, que sempre de novo me revoltam. No entanto, não chego ao extremo. Consigo abafar a revolta rapidamente e tranqüilizo minha alma, considerando ser sumamente desastroso 1s e extremamente miserável esquecer os próprios pecados para ocupar-se com os do próximo.

O que, entretanto, diz respeito ao movimento da multidão, sendo jogado de uma preocupação para outra, não me será mais possível dedicar-me a tais observações e considerações. Como podem prever a própria perdição os que, caindo numa forte correnteza ou num redemoinho, se sentem puxados para o fundo sem esperança de salvar-se, assim também acontecerá comigo ao cair no turbilhão das paixões. Poderei observar com absoluta segurança como o perigo aumenta de dia para dia, sem poder retirar-me, nem, como agora, afugentar por uma autoobservação e autodisciplina, os perigos da alma que me sobrevêm de todos os lados. Minha alma é fraca e pouco resistente. Facilmente se deixa superar pelas paixões mencionadas, bem como somente pela mais abjeta delas, a inveja. Esta não consegue suportar, com equanimidade, tratamento arrogante, nem honrarias. Enquanto essas a levantam sobremaneira, o outro a deprime. Como animais selvagens robustos e exuberantes com facilidade vencem a quem os ataca - são vencidos, porém, com a mesma facilidade caso se conseguir quebrar sua força pela fome - assim acontece com as paixões da alma humana. Quem lhes tira a força facilmente as subjuga ao bom senso e à razão; quem, ao contrário, as alimenta e as acalenta, robustecendo-as, terá que enfrentá-las durante toda a sua vida, tornando-se seu impotente escravo.

O que é o alimento para essas feras? Para a ambição, honrarias e louvores; para a soberba, grandes riquezas, posição de poder e influência; para a inveja, o nome honrado do próximo; para a ganância, a ambição dos doadores; para a vida desenfreada, a moleza e encontros freqüentes com mulheres; com uma palavra, para esta fera serve este alimento, para aquela, aquele outro. Todas essas feras enumeradas, tão logo eu entrar na vida pública, atacar-me-ão com veemência, dilacerando-me a alma. Incutir-me-ão medo, tornando a luta contra elas mais difícil e mais perigosa. Entretanto, continuando aqui meio escondido, também terei que enfrentá-las, mas conseguirei vencê-las com a graça divina, de maneira que a elas não resta outra coisa senão bufar contra mim. Por isso guardo esta casinha, não saindo, nem procurando contatos; acusam-me disso, mas suporto estas acusações com toda a calma. Não quero dizer que não me afetem; às vezes até fico triste, não tendo contato com amigos; convenço-me, porém, de ser-me impossível querer continuar na atual tranqüilidade e segurança e procurar, ao mesmo tempo, contato com outros homens. Por isso, meu caro amigo, eu te imploro, queiras ter compaixão comigo antes de me censurar.

Por acaso, tudo isso ainda não consegue convencer-te? Então chegou a hora de eu revelar-te o último segredo que guardei em meu coração. Talvez pareça incrível; mesmo assim não me envergonho de confessá-lo publicamente. E mesmo que essa minha confissão possa ser interpretada como prova de má consciência ou de muitos pecados, de que me adiantaria deixar os homens na ignorância, uma vez que o Deus onisciente sobre isto me vai julgar? Mas, afinal, qual é este segredo? Desde o dia em que tu me transmitiste aquela notícia, meu corpo esteve por diversas vezes em perigo de dissolver-se. Tão grande era meu medo, tamanho desespero apoderou-se de minha alma. Ao considerar a formosura ilibada da Esposa de Cristo, sua santidade, sua perfeição espiritual, sua sabedoria, sua excelente organização, colocandolhe ao lado a minha pobreza e pequenez, não podia deixar de me entristecer, de me lamentar e de me deplorar a mim mesmo. Entre soluços desesperados e dúvidas cruciantes eu me perguntava: Quem poderá ter aconselhado isso? Porventura, a Igreja de Deus se desviou tanto provocando a ira do Senhor, a ponto de Ele permitir que ela me seja entregue a mim, o mais indigno? Enquanto tais considerações me passavam pela cabeça, senti-me incapaz de suportar, nem sequer em pensamento, tal absurdo. Prostrado, semiparalisado e com a boca aberta como um louco, não conseguia ver nem ouvir. Nos momentos em que me libertava dessa prostração - pois de vez em quando por breves momentos ela me deixava - prorrompia em prantos de desespero. Com as lágrimas se revezava o medo que inquietava, confundia e sacudia minha pobre alma. Envolto nessas tempestades passei estes últimos tempos; tu não o sabias, pensando que me tivesse retirado para passar a minha vida na maior tranqüilidade.

Quero, em seguida, tentar descrever-te estas tempestades que me sacudiram a alma. Deixarás talvez de me censurar e me perdoarás. Como, porém, conseguirei descrever realmente este vendaval de paixões? Para dar-te uma fraca idéia, não terei outro meio senão abrir-te o meu coração desnudando-o por completo. Como isso não é possível, tentarei mostrar-te, pelo menos, a fumaça deixada por esse meu desespero; quero fazê-lo por uma parábola, mesmo bem fraca. Por ela mais facilmente poderás imaginar a situação de minha alma. Mas vamos à parábola!

A filha de um rei poderosíssimo é noiva; esta virgem é de uma beleza singular, superando a própria natureza humana e deixando longe todas as outras belezas do sexo feminino; além disso, possui uma alma tão perfeita que, nisto, supera o próprio sexo masculino; a perfeição de seu caráter supera qualquer ideal filosófico; qualquer beleza é sombra comparada com o brilho de sua graça. Suponhamos que seu noivo esteja apaixonado não só por essas qualidades, mas chegue a um fogo de amor tão forte que superasse todas as paixões humanas já havidas nesta terra. Ora, no meio desse amor ardoroso chega a seus ouvidos que um homem indigno e miserável, corporalmente defeituoso e de péssimo caráter persegue a sua noiva adorada para casar com ela.

Será que com isso consegui colocar em frente de teus olhos uma pequena parcela de minha dor? ou, por acaso, não é suficiente trazer a parábola até esse ponto? Acho bem suficiente para demonstrar o meu desespero. Pois é para isso que a contei.

Para mostrar-te também, mais claramente, o tamanho de meu medo e minha consternação, quero apresentar-te uma imagem fantástica. Imagina um exército composto de infantaria, cavalaria e marinha. As naus com os marinheiros ao lado, numa baía do mar; em frente os largos campos, as colinas e as encostas ocupados por infantaria e cavalaria em linhas de combate. O metal das armas reluz ao brilho do sol, cujos raios se refletem nos capacetes e escudos. O quebrar dos dardos, o relinchar dos cavalos se elevam até o céu. De tanto bronze e aço não se consegue enxergar o chão da terra, nem a água do mar. Contra este exército vêm marchando os inimigos. Homens rudes e fortes. O momento do combate é iminente. Eis que de repente apoderam-se de um moço de origem campestre que não conhece outros instrumentos senão bastão e flauta de pastor. Põem-lhe uma armadura de aço e, conduzindo-o através de todo o acampamento bélico, mostram-lhe os diversos contingentes junto com seus respectivos chefes: os arqueiros, os atiradores, os capitães, os generais, as falanges, os cavaleiros, os lanceiros. Em seguida, lhe mostram as galeras com seus comandantes, os marinheiros equipados nos próprios navios e o grande número de máquinas bélicas; depois chamam-lhe a atenção para a linha de combate inimiga, e, nela, gigantes de provocar medo, suas armas inusitadas, seu número imenso, as profundas fossas, as encostas íngremes e todo o terreno irregular e difícil; e, por fim, mostram como, do lado inimigo, como que por forças mágicas, vêm voando pelos ares cavalos e cavaleiros fortemente armados. Depois de terem mostrado tudo, começam a descrever-lhe o ardor da luta e suas conseqüências : as nuvens de dardos, as massas compactas de flechas, a escuridão que não permite ver mais nada, a noite totalmente escura que segue, provocada pela massa das flechas que são tão densas que os raios do sol não conseguem mais penetrálas; as nuvens de poeira que aumentam ainda mais a escuridão; depois, os rios de sangue, os gritos dos feridos, o berreiro dos combatentes, os montões dos que tombaram, os carros de combate respingados de sangue, os cavalos e cavaleiros caindo por cima dos cadáveres. E, finalmente, depois da batalha, o próprio campo de batalha o chão cheio de poças de sangue e, nelas, arcos e flechas, pernas de cavalos, cabeças de homens, umas ao lado das outras, braços de homens ao lado de rodas de carros, pedaços de armaduras, partes de corpos humanos perfuradas, espadas com restos de sangue e massa cerebral e ainda uma ponta de lança quebrada com um olho humano espetado. Descrevemlhe ainda os horrores da luta marítima,: os navios ardendo e soçobrando com toda a tripulação; como bramem as águas, berram os marinheiros, como ondas de espuma e sangue se jogam contra os navios, os montes de cadáveres no convés que em parte afundam junto com o navio e em parte vão boiando até à praia. Depois de ter mostrado tudo isso ao jovem, descrevem ainda a dureza da prisão de guerra e a escravatura, piores do que a própria morte na batalha. Acabada a descrição mandem-no montar e assumir o comando supremo sobre o conjunto do exército. Achas, por acaso, que aquele moço, depois do que lhe foi mostrado em imagens, ainda vai aceitar?

13.

Não penses que, nesta minha descrição, esteja exagerando o estado das coisas. Da mesma forma não julgues que as dificuldades descritas sejam tão extraordinárias somente porque nós, encerrados neste corpo como numa prisão, não possamos perceber nada das coisas invisíveis! Verias luta mais pesada e terrível do que a descrita, se tivesses ocasião de lançar um olhar sobre a terrível linha de combate do demônio e seus ataques furiosos. Ele não tem aço nem ferro, nem cavalos, nem carros de combate, nem fogo, nem flechas, nem dardos nem quaisquer outros instrumentos materiais; as armas desses adversários são outras, muito mais perigosas. Eles não necessitam de armadura, nem de escudo, nem de espada, nem de lança. Basta o seu simples aspecto para derrubar a alma, a não ser que esta esteja preparada e exercitada na virtude e, além disso, goze de graça divina mais forte do que a própria virtude. E, se fosse possível desfazerte deste corpo ou, mesmo com o corpo, mas sem impedimentos e sem medo, e ver com teus olhos abertos essa linha de combate do demônio e sua luta contra nós, perceberias, não rios de sangue, nem cadáveres, mas tantas almas feridas e caídas, que, comparada a isso, acharias a imagem bélica que te pintei uma simples brincadeira. Tamanho é o número dos que diariamente são derrotados (pelo demônio). As feridas recebidas nessa luta não levam à mesma morte; tanta a diferença entre corpo e alma, quanta a diferença entre as duas mortes. A alma, ao receber o golpe mortal, não se torna insensível como o corpo, mas sentirá a punição. Já nesta terra a má consciência lhe causará vexames e, uma vez passada desta para a outra vida, será submetida ao juízo que a condenará ao castigo eterno. No caso, contudo, em que alguém se mostrar insensível aos golpes do demônio, esta insensibilidade é sinal de perigo maior, pois quem não sentir o primeiro golpe, receberá um segundo e um terceiro. O infame não cessará com seus ataques até o último suspiro da alma que não soube defender-se já contra os primeiros golpes.

Caso ainda queiras conhecer de perto a maneira de atacar do demônio, verificarás que é, além de intensa, muito variada. Como aquele infame, ninguém conhece as múltiplas intrigas, tramóias, astúcias e artimanhas. É isto que lhe dá tanta força. Também não há ninguém que seja capaz de manter um ódio tão implacável como aquele malicioso contra todo o gênero humano. Em seguida, considerando ainda o zelo e o afinco com que ele luta, qualquer comparação com os homens e suas atitudes tornar-se-ia ridícula. Até os animais mais ferozes e mais sanguinolentos, comparados com ele, tornar-se-iam mansos e dóceis. Com tanta raiva ele esbraveja contra as nossas almas.

Ainda outras diferenças entre as lutas desta terra e as das almas poderão ser mencionadas: o tempo do combate aqui é breve e, ainda assim, interrompido por armistícios. A noite, a fadiga, a fome e muitas outras circunstâncias são motivos para os soldados descansarem. Aí podem depor as armaduras, refazer as forças, refrigerar-se com comidas e bebidas e, por estes e outros meios, recuperar as forças perdidas. Na luta com aquele maligno, porém, nunca haverá pausa; nunca poderás despojar-te das arenas, nunca poderás entregar-te ao descanso, caso quiseres ficar ileso. Necessariamente acontecerá uma das duas: perecer depois de ter perdido as armas ou continuar firme, armado e vigilante. Aquele adversário infame mantém sempre sua linha de combate perto de nós, pronta para nos perder tão logo note algum relaxamento em nossa vigilância. Podes estar certo: mais zelo emprega ele para a nossa perdição do que nós para a nossa salvação! Finalmente, a circunstância de ele ser invisível para nós é prova de que esta luta é muito mais perigosa do que aquela que descrevi: pois assim pode encontrar-nos despercebidos a não ser que nossa vigilância seja constante.

É pois nesse campo de batalha que, conforme teu desejo, eu deveria assumir o comando dos soldados de Cristo? Isso seria servir ao próprio demônio! Pois, se aquele que deve comandar os outros for o mais inexperiente e o mais fraco, trairá, devido à sua incapacidade, os que lhe foram confiados, ajudando assim mais ao demônio do que a Cristo.

Mas por que soluças? Por que choras? Sobre esta minha situação atual não deverias mostrar lamentos, mas antes satisfação e alegria! Mas não sobre a minha situação, interrompeu Basílio, pois esta merece ser lamentada amargamente. Até aqui era difícil compreender toda a desgraça que tu me causaste! Procurei-te com a intenção de pedir-te conselhos sobre o que poderia responder, em tua defesa, aos teus acusadores. Tu, porém, agora me despedes, depois de me ter onerado com um novo e pesado problema. Não pode ser mais o meu primeiro cuidado, a minha primeira preocupação defender-te a ti perante os homens, mas ver como me justificar a mim e meus erros perante Deus. Portanto, peço-te, com toda insistência, se conheceres um consolo em Cristo, um conforto de amor, uma compassiva ternura, pois sabes que fostes tu quem me colocou nesta situação, então dá-me a tua mão, fazendo tudo que possa fortalecer-me; não me deixes só mais um momento sequer, mas renovemos a nossa antiga amizade ainda mais íntima e forte!

Sorrindo respondi: Como poderei ser útil nessa tua ingente carga de obrigações? Porém, já que mo pedes, consola-te, caro amigo! Em cada momento em que puderes respirar no meio de teus afazeres, quero estar a teu lado, quero encorajarte em tudo que me for possível.

Depois destas palavras, Basílio, levantando-se, começou a chorar mais intensamente. Abracei-o e beijei sua fronte; em seguida, acompanhando-o, procurei encorajá-lo para aceitar sua sorte com coragem e esperança. Pois, acrescentei, confio em Cristo que te chamou, colocando-te à frente de seu rebanho, que Ele te dará, neste teu cargo, tranqüilidade e tanta segurança, que naquele dia do juízo levarás também a mim para a pátria eterna.