SERMO LX

Sobre todos os Santos.




Diletíssimos irmãos, Cristo Jesus, Nosso Salvador, esposo da santa Igreja universal, louva elegantemente no Cântico dos Cânticos o variado e múltiplo fruto de sua esposa. Ele deseja, por meio deste louvor, incentivá-la e inflamá-la a coisas ainda maiores. Dela Ele diz, em algum lugar, o seguinte:

"Jardim fechado és,
irmã minha esposa,
jardim fechado, fonte selada.
Tuas procedências são um paraíso
de romãs com árvores frutíferas.
Os cipres com o nardo,
o nardo com o açafrão,
a cana aromática e o cinamomo,
com todas as árvores do Líbano;
a mirra e o aloés,
com todos os primeiros ungüentos".

Cant. 4, 12-13

Em todas estas coisas o esposo se alegra e se congratula com a esposa, e o bem da esposa é louvado com elegância pelo esposo. A própria santa Igreja no Cântico dos Cânticos é chamada por vários nomes. Algumas vezes, efetivamente, é chamada de esposa, outras de amiga, de irmã, de pomba, de bela ou de formosa. Ela é, de fato, esposa pela fé, amiga pelo amor, irmã pela participação da herança celeste, pomba pela simplicidade, formosa pela doçura da justiça.

"Jardim fechado és,
irmã minha esposa,
jardim fechado".

Pelo jardim da santa Igreja entendemos a sua santa conversação, da qual incessantemente vemos originar-se o rebento das virtudes e das boas obras. Corretamente este jardim é dito fechado, por ser defendido em toda a sua volta pela forte guarnição da disciplina, para que não aconteça que o inimigo traiçoeiro irrompa em algum lugar e arranque e leve a plantação da justiça. Este jardim é nomeado abertamente por duas vezes, para com isto designar manifestamente seu duplo fruto, a saber, a fé e a obra, ou os casados e os continentes, ou também a distinção de Deus e do povo, ou certamente a vida ativa e a contemplativa. Está, portanto, escrito:

"Jardim fechado és,
irmã minha esposa,
jardim fechado, fonte selada".

Cant. 4, 12

Pela fonte deste jardim entende-se a sabedoria celeste. Esta fonte, como para irrigar o paraíso, divide-se em quatro rios, na medida em que a divina sabedoria se estende sobre toda a Igreja pela pregação dos quatro evangelhos. Este jardim também no-lo é corretamente apresentado como selado, porque a sabedoria de Deus está velada nas Sagradas Escrituras por muitos e diversos enigmas. Por isto é que o Apóstolo Paulo diz:

"Pregamos a sabedoria de Deus
no mistério, que está encoberto,
que Deus predestinou antes dos séculos
para a nossa glória".

I Cor. 2, 7

Este é aquele livro selado, do qual diz Isaías:

"Quando o derem a um homem
que sabe ler, e lhe disserem:
`Lê este livro';
ele responderá:
`Não posso, porque está selado'".

Is. 29, 11

Trata-se também do mesmo livro da vida, aquele sobre o qual o bem aventurado João afirma ter visto

"Na mão direita do que estava sentado sobre o trono,
um livro escrito por dentro e por fora,
selado com sete selos, que ninguém podia,
nem no céu, nem na terra,
nem debaixo da terra,
abrí-lo, nem olhar para ele,
senão o leão da tribo de Judá,
a estirpe de Davi,
que venceu e era como um Cordeiro
que parecia ter sido imolado,
o qual tinha sete chifres e sete olhos,
que são os sete espíritos de Deus
mandados por toda a terra".

Apoc. 5, 1-6

Somente Ele pôde abrir esta fonte ou este livro. Somente Ele pôde também, com todo o direito, dizer aos seus discípulos:

"A vós é concedido conhecer
o mistério do Reino dos Céus".

Mt. 13, 11

Por isto é que está também escrito em outro lugar dEle e de seus discípulos:

"Abriu-lhes o entendimento,
para que compreendessem as Escrituras".

Luc. 24, 45

Ninguém, portanto, poderá provar o gosto desta fonte salutar senão aquele a quem o Salvador, o único que a abre a a fecha, dignar-se abrir o seu selo. Mas não poderá também possuir os frutos deste jardim aquele a quem esta fonte não fornecer uma salutar irrigação, o próprio Salvador demonstrando que abre a alguns e fecha a outros o rio desta fonte, quando diz aos seus discípulos:

"A vós é concedido conhecer
o mistério do Reino dos Céus,
mas a eles não lhes é concedido;
por isso lhes falo em parábolas,
para que vendo não vejam,
e ouvindo não ouçam".

Mat. 13, 11-13

E, em outro lugar, diz ao Pai:

"Graças te dou, ó Pai,
Senhor do céu e da terra,
porque escondestes estas coisas
aos sábios e aos prudentes,
e as revelaste aos pequeninos".

Mat. 11, 25

O jardim, portanto, é fechado, e a fonte é selada. O jardim é fechado pela disciplina, a fonte é selada pela alegoria. O jardim é fechado para que nela não irrompa o inimigo traiçoeiro; a fonte é selada para que o estranho não beba dela. O jardim é a justiça; a fonte, a sabedoria. O esposo fala primeiro do jardim florescente e da fonte irrigante. Depois expõe mais amplamente o fruto do florescimento e da irrigação, dizendo:

"Tuas procedências são um paraíso
de romãs com árvores frutíferas".

Procedem da santa mãe Igreja os seus partos espirituais. Nesta passagem, porém, mencionam-se principalmente os mártires, designados pelo nome de romãs, os quais são admitidos no céu saindo do mundo e procedendo da Igreja. A Igreja não os perde, mas os envia e confia ao Cristo. As romãs, pelo seu suco, são azedas em seu interior e contém sementes rubras. São, por isto, figuras dos mártires, os quais podem ser ditos rubros não apenas exteriormente, como também interiormente, porque há dois gêneros de martírio, um interior e outro exterior, um no coração e outro na carne, e de nada vale o que é exterior se falta o que deve ser interior. De fato, de nada aproveita a paixão da carne a quem falta a compaixão do coração, conforme está escrito:

"Toda a glória do rei
provém do interior".

Salmo 44, 14

As romãs que procedem deste jardim são comparadas ao paraíso porque assim como o paraíso é repleto de diversas árvores, assim também a santa Igreja é repleta e densamente ornamentada de inúmeros mártires. Quem, de fato, entre os calculadores mais peritos poderá compreender ainda que apenas o número talvez centenário ou milenário dos mártires? Dos quais, conforme clama a Escritura, alguns foram mortos em ferros, outros queimados pelas chamas, outros ainda açoitados pelo chicote, afogados na água, escalpelados vivos, perfurados pelos narizes, atormentados no patíbulo, aprisionados às correntes, outros tiveram suas línguas cortadas, foram mortos por apedrejamento, sofreram frio e fome, tiveram cortadas mãos e partes do corpo ou foram entregues, por causa do nome do Senhor que levavam, como espetáculo ao desprezo do povo (Heb. 11,35-38).

Pode ser causa de admiração como o martírio se compara ao paraíso, se o martírio possui amargura enquanto que o paraíso possui alegria. Isto não será causa de espanto, porém, se examinarmos o assunto com mais diligência. Todos os gêneros de tormentos foram causa de alegria para os santos mártires, e tudo para eles era doce. O que o poder adverso lhes podia infringir pelo nome da cristandade era tido por eles como pouco, conforme está escrito dos apóstolos:

"Saíram os apóstolos da presença do Conselho
contentes por terem sido achados dignos
de sofrer afrontas pelo nome de Jesus".

Atos 5, 41

E o Apóstolo Paulo, considerando quão grande dom era para ele poder sofrer por Cristo, diz, escrevendo aos Filipenses, que

"A vós é dado por amor de Cristo
não somente que creiais nele,
mas também que sofrais por ele".

Fil. 1, 29

Diz ainda o Cântico dos Cânticos:

"De ti procede um paraíso
de árvores frutíferas".

Os santos mártires têm frutos no mundo e têm frutos no céu. No mundo têm os frutos da justiça, no céu têm os frutos da glória. No mundo, os frutos do mérito; no céu, os frutos do prêmio.

"Os cipres com o nardo,
o nardo com o açafrão".

O cipre é uma erva aromática do Egito, de semente branca e odorífera, que se cozinha no óleo para depois espremer-se. Dele se prepara um ungüento chamado real. O cipre, portanto, é o dom de reinar. Designa o discernimento, e pode-se entender com certeza que ele significa convenientemente os reitores de almas.

O nardo é uma erva de pouca estatura; designa, por isso, os súditos humildes.

O açafrão, sendo de cor dourada, designa corretamente aqueles que ensinam resplandecendo de sabedoria celeste.

Pensamos que as Escrituras nos apresentam aqui os cipres no plural, enquanto que todos as demais coisas que se lhe seguem no-las são apresentadas no singular, para que por isto possamos entender que qualquer prelado deve ser, entre todos, rico de todas as virtudes e boas obras. Eis o motivo pelo qual o bem aventurado Agostinho preceituava sobre o prelado, dizendo:

"Ofereça-se para com todos
como exemplo de boas obras.
Corrija os inquietos,
console os pusilânimes,
socorra os enfermos,
seja paciente para com todos.
Siga a disciplina com alegria,
mas saiba também impô-la com respeito.
E, embora ambas estas coisas sejam necessárias,
todavia mais deseje ser amado do que ser temido".

Ensinados por estas palavras do bem aventurado Agostinho, os prelados devem dedicar-se a todos os que lhe forem confiados com toda a bondade, e esforçar-se para que, pela plenitude de suas virtudes, feitos tudo para todos, aproveitem a todos. Os cipres com o nardo são, portanto, os prelados quando se submetem humildemente aos preceitos divinos juntamente com os seus súditos. Por isso é que está escrito:

"Se te constituírem para governar,
não te ensoberbeças por isso;
permanece entre eles
como um deles mesmos".

Ecles. 32, 1

Quando, de fato, os santos reitores, conforme o devem, dizem o que é reto e juntamente com os seus súditos fazem humildemente o que dizem, verdadeiramente então serão cipres com nardo.

O nardo está com o açafrão quando as multidões dos humildes súditos, aproximando-se dos santos doutores resplandecentes de sabedoria celeste, ouvem de boa vontade sua doutrina salutar e, crendo e operando com fidelidade, assentem às suas palavras, cumprindo o preceito do Apóstolo Tiago, quando diz:

"Seja todo homem pronto para ouvir,
tardo porém para falar
e tardo para se irar".

Tg. 1, 19

Nestes também cumpre-se o testemunho de Moisés, que diz destes homens:

"Os que se aproximam dos pés do Senhor,
recebem de sua doutrina".

Deut. 33, 3

Os pés do Senhor, de fato, são os santos doutores, que pelo seu ensino conduzem o coração dos que os ouvem. Recebem por meio deles a doutrina do Senhor aqueles que se aproximam com humildade de seus pés, porque está escrito:

"Aquele que anda com os sábios, será sábio;
o amigo dos insensatos, porém,
tornar-se-á semelhante a eles".

Prov. 13, 20

Continua o Cântico:

"A cana aromática e o cinamomo".

A cana é uma pequena árvore aromática, de casca robusta e purpúrea, útil para curar as doenças das vísceras. Pode significar, portanto, todos os que pelo temor de Deus, que é princípio da sabedoria, se arrependem de seus pecados e que, pela verdadeira confissão, purificam as vísceras de seus corações espirituais do pernicioso amontoado dos torpes pensamentos. De fato, os que se arrependem verdadeiramente se tornam como aqueles que pela cana aromática são curados das doenças de suas vísceras quando, pela perfeita confissão do que se oculta em suas mentes, se purificam de sua maldade. São, portanto, cana aromática todos aqueles que, pela graça do arrependimento, da confissão, ou mesmo de admoestações mais eficazes, expelem as doenças interiores dos pecados ocultos, tanto em si mesmos como nos outros.

O cinamomo é uma árvore pequena, odorífera, doce, de cor cinzenta, duas vezes mais útil para uso medicinal do que a cana aromática. Chama-se cinamomo porque sua casca se forma ao modo da cana. E porque a cana, quando cortada para este fim, costuma emitir sons na boca das crianças, pode-se designar pelo cinamomo a confissão dos santos sacerdotes, como Jerônimo, Gregório, Agostinho e Ambrósio, e todos os que foram como eles. De fato, na medida em que estes não apenas creram pelo coração para a justiça, mas também pela boca confessaram para a salvação (Rom. 10,10), estendendo para longe a escuta da salvação, podem- se entender pelo cinamomo, cuja casca se forma circunflexa ao modo da cana sonora, os santos confessores. Assim como, portanto, entendemos pela cana aromática os arrependidos e aqueles que, pela verdadeira confissão, expelem de seus corações as doenças dos pecados, assim também, pelo cinamomo, entendemos os santos confessores.

"Com todas as árvores do Líbano".

Líbano, traduzido, significa a ação de alvejar. As árvores do Líbano, ademais, se destacam entre todas as árvores pelo modo como crescem para o alto. Assim é que encontramos, na profecia de Ezequiel, que para poder descrever-se a sublimidade, ou melhor, a soberba de Assur, esta foi comparada às árvores do Líbano:

"Eis Assur como o cedro no Líbano,
formoso pelos ramos,
frondoso pela folhagem
e excelso pela altura,
e entre as suas densas ramadas
elevou a sua copa".

Ez. 31, 3

Pelas árvores do Líbano, portanto, pode-se convenientemente entender o coro das santas virgens, que se erguem para o alto pela elevação de sua pureza, e que, pelos dons da mesma, mais alto do que os demais se aproximam dos bens celestes. De fato, a perfeição das virgens é mais celeste do que terrena. Sua vida é mais angélica do que humana, pois a virgindade tem como que um parentesco com os anjos. As árvores do Líbano são as santas virgens como Inês, Cecília, Ágata, Lúcia e todas as outras cujos nomes não podem ser aqui enumerados. A santa mãe Igreja, com todas as plantas precedentes, possui também as árvores do Líbano, porque juntamente com os santos mencionados possui também as santas virgens, alvejantes pela sua pureza e elevando-se sublimemente aos bens celestes.

"A mirra e o aloés".

Estas duas espécies possuem tal amargor que quando se ungem os corpos com elas, ficam protegidos da putrefação. Como a mirra, porém, possui maior força do que o aloés, por causa disto entendemos por ela a continência e pelo aloés a abstinência. A abstinência, de fato, é pesada, mas a continência é ainda mais pesada. A mirra e o aloés repelem os vermes e a podridão dos corpos; a continência e a abstinência repelem as corrupções dos vícios do coração e do corpo. Ou, mais corretamente, entendemos melhor nesta passagem pela mirra e pelo aloés os próprios continentes e abstinentes que se exercitam a si mesmos por estas virtudes.

"Com todos os primeiros ungüentos".

Os primeiros ungüentos são os dons principais, isto é, a caridade e a profecia. O apóstolo Paulo, após enumerar os dons espirituais, acrescenta:

"Vou mostrar-vos um caminho
ainda mais excelente.
Ainda que eu falasse
as línguas dos homens e dos anjos,
se não tivesse caridade,
seria como o bronze que soa,
ou o címbalo que tine;
nada seria, nada me aproveitaria".

I Cor. 12,1; 13,1-3

E a seguir, pouco depois:

"Agora, pois,
permanecem a fé,
a esperança e a caridade,
mas a maior delas é a caridade".

I Cor. 13, 13

"Segui a caridade", diz ainda São Paulo, "emulai os dons espirituais" (I Cor. 14, 1), isto é, amai os dons divinos.

"Sobretudo, porém, a profecia",

I Cor. 14, 1

isto é, o ensino. Assim, em primeiro lugar São Paulo nos recomenda a caridade; recomenda, depois, que profetizemos, isto é, que ensinemos, pois o ensino é aquilo que mais próximo reside do fruto da caridade.

Caríssimos, estas são as riquezas espirituais da santa mãe Igreja, deste jardim tão fértil, desta fonte da qual emana tanta riqueza. Imitemos, caríssimos, a mãe Igreja em todas estas coisas, para que com ela mereçamos contemplar o esposo em seu esplendor, e com a esposa alcancemos a glória no céu. Tenhamos também nós um paraíso de romãs, padecendo constantemente adversidades por Cristo e compadecendo-nos cotidianamente dos oprimidos. Tenhamos cipres, regendo-nos com discernimento. Tenhamos o nardo, submetendo-nos humildemente aos nossos prelados; o açafrão, expelindo nossos pecados pelo pranto e pela confissão de nossos corações; o cinamomo, entoando ação de graças pelos benefícios recebidos; as árvores do Líbano, exibindo obras de pureza; a mirra, contendo-nos dos afagos da carne; o aloés, abstendo-nos também das comidas lícitas; e todos os primeiros ungüentos, pela posse dos principais dons.

Esta é a via, por ela caminhemos, para que possamos chegar à felicidade que possuem milhares de santos.

E que para tanto se digne vir em nosso auxílio Jesus Cristo, Nosso Senhor, que é Deus, bendito pelos séculos.

Amén.