SERMO LXXXIII

Sobre o significado anagógico
do Salmo 149, por ocasião da
festa de todos os santos.




"Exultarão os santos na glória,
e se alegrarão nos seus leitos".

Salmo 149, 5

Já expusemos estas palavras segundo o sentido moral. Elas podem, porém, ser também expostas segundo o sentido anagógico, ao qual parecem pertencer com mais propriedade.

"Exultarão os santos na glória".

Exultarão não apenas porque agora, no tempo, exultam na glória pela boa consciência, mas também porque depois do tempo exultarão na eternitdade pela glória da retribuição. Quanto mais esta glória agora nos é desconhecida para o nosso sentido e quanto mais ela nos é inexperienciada para o nosso afeto, tanto mais se nos torna difícil descrevê-la para o nosso falar. Pois esta glória, de fato, é o próprio Deus, a quem

"ninguém jamais viu",

I Jo. 4. 12

incompreensível para o pensamento, mas que ao iluminar os seus santos no céu pela luz de sua claridade, torna-os perfeitamente participantes da bem aventurança de sua glória. Para que de algum modo esta glória nos fosse significada foi escrito que

"resplandecerão os justos
como o Sol no Reino de seu Pai".

Mat. 13, 43

Quem poderá considerar qual será este resplendor em que inumeráveis milhares de justos se associarão a inumeráveis milhares de anjos? E se tão inestimável claridade haverá nestas criaturas, quem, pergunto eu, poderá estimar o resplendor da Suma Majestade, não apenas aquela que há na divindade, mas também aquela que há na humanidade glorificada de Cristo, que certissimamente transcende incomparavelmente a claridade de toda criatura? Pois dela, antes de sua paixão, antes mesmo da glória de sua ressurreição e ascensão, ficou escrito que, por ocasião de sua transfiguração,

"resplandecia seu rosto como o Sol".

Mat. 17, 2

No Apocalipse lemos também, a respeito do anjo que apareceu ao bem aventurado João na semelhança do Filho do homem, que

"seu rosto era como o Sol
quando brilha em toda a sua força".

Apoc. 1, 16

Ao dizer que o seu rosto brilhava como o Sol quando está em toda a sua força, isto é, ao meio dia, João se utilizou, para dar a entender algo do esplendor de sua glória, da mais resplandecente criatura existente entre todas as coisas visíveis. Considere, pois, quem o puder, qual deve ser o eterno e imenso esplendor da incompreensível e inefável divindade, se tão admirável foi a semelhança que apareceu a João da humanidade glorificada de Cristo. Ver a glória, portanto, da Suma Divindade e da humanidade de Cristo e poder contemplá-la sem fim será para os justos a sua bem aventurada glória ou a sua gloriosa bem aventurança. De onde que por uma segunda vez encontramos escrito no Apocalipse que

"A cidade do alto,
a Jerusalém celeste,
não tem necessidade de Sol
nem de Lua para que a iluminem;
porque a glória de Deus a iluminará,
e a sua lâmpada é o Cordeiro".

Apoc. 21, 23

Considere, portanto, quem o puder, embora não haja, segundo creio, quem o poderá fazer, quanta será a glória dos santos, quando

"o servo bom e fiel entrar
no gozo de seu Senhor".

Mat. 25, 21

Quando o bom operário, depois do labor de sua obra, tiver recebido o seu dinheiro (Mat. 20, 9); quando as virgens prudentes, entrando no celeste tálamo como esposas juntamente com seu esposo forem para sempre bem aventuradas (Mat. 25, 10); quando os que os receberem nos tabernáculos eternos

"lhes lançarem em seu seio uma medida boa,
cheia, recalcada e acogulada";

Luc. 6, 38

quando Deus enxugar toda lágrima dos olhos dos seus santos, e já não houver mais choro, nem clamor, nem dor,

"porque tudo isto já terá passado".

Apoc. 21, 4

Quando forem possuídos de gozo e de alegria, quando tiverem cessado a dor e o pranto, quando

"nos tivermos saciado com a abundância
da casa de Deus,
tivermos bebido da torrente de suas delícias,
e na sua luz veremos a luz";

Salmo 35, 9-10

quando para o nosso ser não houver mais morte, para o nosso conhecer não houver mais erro, para o nosso amar não houver mais ofensa; quando repousarmos e virmos, quando virmos e amarmos, quando amarmos e louvarmos a magnificência de nosso Criador, que é Deus, bendito seja sobre todas as coisas por todos os séculos. Grande, portanto, é a glória, conforme dissemos no sermão anterior, em ter uma boa consciência; muito maior, porém, é a glória de possuir a vida eterna. Muito grande é se fores justo; incomparavelmente maior, porém, é se fores bem aventurado.

"E se alegrarão em seus leitos".

Pelos leitos dos santos podemos entender aqui suas moradas celestes, das quais diz o Salvador:

"Na casa de meu Pai
há muitas moradas".

Jo. 14, 2

Também o profeta, louvando esta casa, diz dela:

"Ó Israel,
quão grande é a casa de Deus,
e espaçoso o lugar de sua possessão,
e não possui fim,
é excelso e imenso".

Baruc 3, 24-25

Deste lugar, diz também o Salvador:

"Vou preparar-vos o lugar".

Jo. 14, 2

Os santos como que repousam suavemente em leitos quando vivem segura, pacifica e quietamente nas moradas desta casa ou deste lugar. Note-se que o salmo diz "em leitos", e não "no leito", porque segundo a diferença dos méritos será a diferença dos prêmios. De fato, o Apóstolo nos ensina que

"uma estrela difere de outra estrela na claridade;
assim também será na ressurreição dos mortos".

I Cor. 15, 41-42

E também, em outro lugar:

"Cada um receberá a própria recompensa
segundo o seu trabalho".

I Cor. 3, 8

Segue-se:

"As exultações de Deus
estarão em suas gargantas".

As exultações de Deus estarão em suas gargantas, porque então louvarão a Deus eternamente por terem findado os males e recebido os bens, aos quais passarão perpetuamente sem nenhum detrimento. A este eterno louvor dos santos se refere aquela passagem do salmista:

"Cantarei eternamente
as misericórdias do Senhor".

Salmo 88, 2

Qual seja a exultação dos santos na glória celeste, e a alegria nestes leitos, e também as exultações nas suas gargantas, só o pode ser conhecido por aqueles aos quais também foi dado possuir. De onde que alguém, falando poeticamente da Jerusalém do alto, disse belissimamente:

"Como te louvam,
como vivem felizes,
que amor tão grande os une,
que jóias adornam os seus muros,
se a calcedônia ou o jacinto,
só o sabem aqueles que estão dentro".

Já que, portanto, não há quem possa conhecer qual seja a glória dos santos, a glória que será possuída na visão de Deus, já que não há quem possa conhecer qual seja o seu repouso no descanso dos leitos celestes, quais sejam as exultações que soarão em suas gargantas ao cantarem o louvor de Deus, investiguemos e sanemos, enquanto isso, a nossa enfermidade para que um dia possamos merecer alcançar aquele bem que no momento ainda não nos é concedido ver. Trabalhemos com todas as forças para alcançarmos aquela luz que brilha nas trevas e que as trevas não podem compreender.

"Terão espadas de dois gumes em suas mãos,
para exercer a vingança nas nações,
e as repreensões entre os povos:
para acorrentar os reis em grilhões,
e seus nobres em algemas de ferro,
para neles executar a sentença promulgada.
Esta é a glória para todos os seus santos".

Salmo 149, 6-9

Mencionados os bens celestes que os santos possuirão no futuro, o salmista volta a mencionar o poder que, junto com o Supremo Juiz, será por eles exercido sobre os réprobos no dia do Juízo. De fato, é de se crer que os apóstolos e todos os perfeitíssimos haverão de julgar o mundo junto com Cristo. Em suas mãos haverá espadas de dois gumes para exercer a vingança nas nações e as repreensões entre os povos porque, segundo as palavras das Escrituras, que eles observaram, e que outros desprezaram, eles julgarão aos que tiverem que ser eternamente punidos na alma e no corpo:

"Então os justos se levantarão
com grande afouteza,
contra aqueles que os atribularam,
e que lhes roubaram
o fruto de seus trabalhos".

Sab. 5, 1

Levantar-se-á então São Bento pelos seus monges, levantar-se-á Santo Agostinho pelos seus clérigos, levantar-se-á São Pedro e todos os apóstolos e os prelados da Igreja pelos que lhes foram confiados, levantar-se-ão todos estes contra os ímpios, os injustos e os ladrões que os atormentaram e injustamente lhes saquearam as possessões da Igreja e os bens dos fiéis e, não permitindo que entrem pelas portas do céu, os atirarão nas trevas exteriores. Pela vingança nas nações podemos entender uma pena mais grave a ser inferida aos que perpetraram delitos mais graves; pelas repreensões entre os povos podemos entender um menor tormento a ser imposto no inferno para aqueles que cometeram crimes menores. Os adúlteros, de fato, serão atormentados mais duramente do que os fornicadores.

Depois da pena geral para os maus, é atribuído um tormento singular especialmente para os reis para os seus nobres o que mostra, de modo evidente, que, conforme está escrito,

"o julgamento se tornará duríssimo
para aqueles que governam".

Sab. 6, 6

E também:

"Os poderosos serão
poderosamente atormentados".

Sab. 6, 7

"Aos mais fortes
maior suplício ameaça".

Sab. 6, 9

É justo, de fato, que os que foram antepostos aos demais, agindo pior do que os outros pelo poder que lhes foi concedido, sejam condenados com maior rigor e com penas mais graves do que os demais, pelo que acrescenta o salmista:

"Para acorrentar os reis em grilhões,
e seus nobres em algemas de ferro".

A sentença que no dia do Juízo será executada pelos santos sobre os réprobos é dita sentença promulgada porque encontra-se escrita e promulgada pelos Santos Padres na Divina Página.

"Esta é a glória
para todos os seus santos".

Esta é a glória, a saber, que em si mesmo resplandeçam gloriosamente por toda a eternidade, e pelo seu julgamento distinguam os ímpios que devem ser punidos pelo eterno suplício.

Consideremos, portanto, irmãos caríssimos, o quanto pudermos, quanta e qual seja a glória dos santos, e trabalhemos para que mereçamos ser seus consortes na pátria.

E que, para tanto, se digne vir em nosso auxílio Jesus Cristo, nosso Senhor, que é Deus bendito pelos séculos.

Amén.