XI

Orígenes




1.

Introdução.

Orígenes nasceu por volta do ano 185 em Alexandria, filho de pais cristãos os quais, desde criança, antes mesmo que chegasse a freqüentar a escola, lhe transmitiram o gosto pelo estudo das Sagradas Escrituras, ao qual o menino passou a dedicar-se pelo resto de sua vida. Quando tinha dezessete anos, seu pai foi preso, vindo a morrer posteriormente como mártir na perseguição desencadeada por Sétimo Severo. Inflamado também pelo desejo do martírio, Orígenes só não se juntou ao pai por causa de sua mãe ter escondido suas roupas, obrigando o filho a permanecer em casa.

Pouco tempo após a morte do pai, com 18 anos, foi convidado pelo bispo de Alexandria a suceder Clemente na escola catequética da cidade, de quem tinha sido discípulo. Verificando que o procuravam pagãos e herejes cultos, começou a estudar filosofia para poder dialogar com os mesmos e converteu para o cristianismo diversos filósofos pagãos, vários dos quais vindo posteriormente a morrer mártires. Após doze anos de ensino, Orígenes empreendeu uma viagem a Roma para, conforme suas palavras,

"ver a antiqüíssima Igreja dos romanos".

Lá, refere mais tarde São Jerônimo, pôde ouvir um sermão sobre o "louvor de Nosso Senhor e Salvador", pregado por Hipólito, então presbítero da Igreja Romana. O modo exemplar como vivia as virtudes cristãs atraíu multidões à escola catequética, onde Orígenes era procurado desde manhã até à noite. Morreu mártir aos 70 anos.

Quanto à doutrina, Orígenes tinha a intenção de ser cristão ortodoxo e o queria ser, o que se pode deduzir do simples fato de ter ele uma grande estima pelo magistério da Igreja e considerar um erro de doutrina mais pernicioso do que um desvio de moral. Entretanto, sob a influência da filosofia platônica, Orígenes incidiu em erros dogmáticos, tendo surgido, imediatamente após a sua morte, disputas acerca de sua ortodoxia, e algumas de suas interpretações da Sagrada Escritura tendo sido posteriormente condenadas pela Igreja.

2.

A doutrina de Orígenes sobre a Trindade.

A fonte e o fim de toda a existência é Deus o Pai. Somente Ele é Deus no sentido estrito, apenas Ele sendo não gerado. A este respeito, Orígenes afirma ser significativo que Cristo falou dEle no Evangelho de São João como "o único Deus verdadeiro" (Jo. 17, 3).

Sendo o Pai perfeita bondade e poder, sempre deve ter tido objetos em quem exercê-las. Portanto, o Pai trouxe à existência um mundo de seres espirituais, ou almas, que são co-eternas consigo.

Para servir de mediador entre sua absoluta unidade e a multiplicidade das almas, porém, Deus Pai tem o seu Filho, sua imagem expressa. Assim, o Filho possui uma dupla relação para com o Pai e para com o mundo.

O Pai gera o Filho por um ato eterno, fora da categoria do tempo, de modo que não se pode dizer que (Ele) existia quando (o Filho) não existia. Além disso, o Filho é Deus, embora sua deidade seja derivada, e portanto Ele é um Deus Secundário, ou, na expressão grega original, `Deuteros Teos'.

Em terceiro lugar há o Espírito Santo,

"o mais honorável de todos os seres
trazidos à existência através do Verbo,
o primeiro da série de todos os seres
originados pelo Pai através de Cristo".

Referências:
Orígenes : In Johan. 2,2,16; 2,10,75; 1,20,119; 6,39,202;
Idem : De principiis 1,2,10; 1,4,3; 2,9,1; 1,2,4;
Idem : Contra Celsum 2,64; 5,39;
Idem : Hom. in Jerem. 9,4.

3.

Distinção das Pessoas na Santíssima Trindade.

Orígenes afirmou que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são três Pessoas, a palavra empregada por ele para significar Pessoa sendo o termo grego "Hipóstase".

Já vimos anteriormente que Tertuliano e Hipólito se referem às "Pessoas" da Trindade; o primeiro utilizou o termo latino "Persona", e o segundo o termo grego "Prosopon".

O termo que Orígenes emprega, "Hipóstase", originalmente é sinônimo de "Ousia". Ambos significam "Essência", ou aquilo que uma coisa é, e não a substância individual. Em Orígenes, entretanto, embora "Hipóstase" seja empregado às vezes com o significado de essência, o mais freqüente é que ele lhe dê o sentido de subsistência individual.

Orígenes afirma que o êrro do monarquianismo está em tratar os Três como numericamente indistintos, separáveis somente pela razão,

"não um só na essência,
mas também na subsistência".

A doutrina verdadeira, na opinião de Orígenes, é que o Filho

"é outro em subsistência além do Pai,
mas um só em unanimidade,
harmonia e identidade da vontade".

Assim, enquanto realmente distintos, os Três são de um outro ponto de vista um só; conforme Orígenes se expressa,

"nós não temos receio de falar
em um sentido de dois Deuses,
em outro sentido de um Deus".

Referências:
Orígenes : In Johan. 2,10,75; 10,37,246; 2,2,16;
Idem : In Matth. 17,14;
Idem :De Orat. 15,1;
Idem : Contra Celsum 8,12;
Idem :Dial. Heracl. 2.

4.

A unidade das Pessoas na Santíssima Trindade.

Em algumas passagens, Orígenes realmente representa a unidade das Pessoas como uma união moral. Ele afirma que elas são

"um só em unanimidade,
harmonia e identidade de vontade",

suas vontades sendo virtualmente idênticas. Mas, consideradas isoladamente, tais passagens não fazem justiça ao pensamento integral de Orígenes a este respeito.

O ponto básico é que o Filho foi gerado, não criado, pelo Pai. Como gerado do Pai, Ele é eternamente emanado do ser do Pai e assim participa em sua Divindade. O Filho procede do Pai como a vontade da mente, a qual não sofre divisão neste processo. De acordo com o Livro da Sabedoria, Ele é um

"sopro do poder de Deus,
uma pura efluência da glória
do Todo Poderoso".

Sab. 7, 25

Orígenes utiliza esta passagem para mostrar que

"ambas estas ilustrações sugerem
uma comunidade de substância
entre o Pai e o Filho,
porque uma influência parece ser `homoousios',
isto é, de uma só substância,
com aquele corpo do qual
esta é uma efluência ou vapor".

Assim segundo Orígenes, a unidade entre o Pai e o Filho corresponde àquela unidade que existe entre a luz e o seu brilho, ou entre a água e o vapor que dela emana.

Se, no sentido mais estrito, somente o Pai é Deus, não é porque o Filho não é também Deus ou não possui a Divindade, mas porque, como Filho, Ele a possui por participação ou de maneira derivada.

Referências:
Orígenes : In Johan. 13,36,228; 2,2,16;
Idem : De Principiis 1,2,6; 4,4,1;
Idem : Frag. in Hebr. PG 14,1308.

5.

O Espírito Santo.

O Espírito Santo, diz Orígenes,

"fornece àqueles que são chamados santos,
por causa dEle e de sua participação nEle,
a matéria de suas graças,
se é possível descrevê-las assim".

"Esta matéria de suas graças",

continua Orígenes,

"é feita por Deus,
ministrada por Cristo,
e chega à subsistência individual
como o Espírito Santo".

Assim, a raiz última do ser do Espírito Santo é o Pai, mas Ele é mediado para com o Pai pelo Filho, do qual o Espírito Santo também deriva todos os seus atributos distintivos.

Referências:
Orígenes : In Johan. 2,10,77; 2,10,76.

6.

Comentário Final. I. Triteísmo ou Monoteísmo?

Não é correto concluir, como muitos o fizeram, que Orígenes colocou uma tríade de seres independentes em vez de uma trindade. Mas a verdade é que uma tendência fortemente pluralista no seu trinitarianismo é uma sua característica saliente. Em sua análise, as três pessoas da Trindade são real e eternamente distintos.

Para satisfazer as exigências do monoteísmo, Orígenes insiste que a plenitude da Divindade inoriginada está concentrada no Pai, o qual só Ele é a "fonte da deidade". O Filho e o Espírito Santo são divinos, mas a divindade que Eles possuem e que constitui sua essência jorra e deriva do ser do Pai.

Referências:
Orígenes : In Johan. 2,3,20.

7.

Comentário Final. II. A Influência do Platonismo.

Esta concepção do Trindade, conforme formulada por Orígenes, tem uma estrutura subjacente evidentemente tirada do platonismo e a ele contemporâneo. Uma ilustração disto é o fato de que, além do Filho ou Verbo, Orígenes concebeu todo o mundo dos seres espirituais como sendo coeternos com o Pai. Além disso, suas relações com o Verbo são exatamente paralelas àquela com que o Verbo, num nível mais alto, se relaciona para com o Pai. Estes seres espirituais são imagens do Verbo, assim como o Verbo é imagem do Pai, e em seus respectivos graus podem também ser chamados deuses.

Em relação ao Deus do Universo, o Filho merece assim um grau secundário de honra, pois Ele não é verdade e bondade absolutas, mas sua bondade e sua verdade são um reflexo e uma imagem da bondade e da verdade do Pai.

Por esta razão, Orígenes conclui que

"nós não devemos rezar para qualquer ser gerado,
nem mesmo para Cristo,
mas somente para o Deus e Pai do Universo,
para quem nosso próprio Salvador orou".

Se a oração for oferecida a Cristo, esta será enviada por Ele ao Pai. De fato, o Filho e o Espírito Santo são transcendidos pelo Pai tanto quanto, se não mais, do que Eles Mesmos transcendem o conjunto dos seres inferiores.

Esta concepção de uma hierarquia descendente é ela própria o produto de idéias do platonismo.

Referências:
Orígenes : Contra Celsum 7,57; 8,13;
Idem : De Principiis 1,2,13;
Idem : In Johann. 13,25,151; 32,28;
Idem : De Oratione 15,1; 16, início;
Idem : In Matth. 15,10.