|
Vamos supor que este pai não seja só gentio, mas também rico e
ilustre sobre todos os outros homens, que ocupe um alto posto no
estado, que possua muitos campos, muitas casas, bens em ouro sem
número. Que sua pátria seja a melhor capital do Império, sua
linhagem, a mais ilustre; que não tenha outros filhos nem esperança
de tê-los, mas que só neste se encerrem todas as suas ilusões. A
respeito do filho, suponhamos que seja um garoto das mais belas
esperanças, que razoavelmente se conjeture que há de subir logo à
mesma dignidade que seu pai, e até que há de brilhar mais do que ele
e obscurecê-lo em todas as posições na vida. Assim postas as
coisas, entre tão largas esperanças, suponhamos que venha não
sabemos quem, e se aproxime a conversar com o jovem acerca deste
gênero de filosofia e o convença que, escarnecendo de todas estas
ilusões, se lance sob um hábito imundo, e, abandonando a cidade,
fuja para os montes e ali se dedique a plantar, a regar e carregar
água e às demais tarefas dos monges que são consideradas vis e
desonrosas. E, por acréscimo, ande com os pés descalços e durma
no solo duro; ele que era jovem formoso, torne-se esquálido e
macilento; ele que vivia entre tantas delicias e honras, e tão
afáveis esperanças lhe sorriam, ande agora vestido com roupas mais
vis do que as dos seus próprios escravos.
Não é verdade que temos dado muitos pretextos aos nossos acusadores e
temos pintado com muitas cores nosso adversário? Pois se tudo isto
não é o bastante, ainda vamos procurar novos pretextos contra nós.
Aparte o que foi dito, mova este pai todos os recursos para dissuadir
seu filho, e seja tudo em vão, como se este se firmasse sobre uma
rocha, desafiando a fúria dos rios, das chuvas e dos ventos.
Lamente-se o homem, derrame lágrimas, e inflame assim mais e mais a
indignação contra nós, e acuse-nos ante quem encontrem repetindo
continuamente:
|
"Eu gerei um filho, o criei, sofri por ele
calamidades durante toda sua vida, sem medir esforços nem
sacrifícios, o quanto pode reclamar um filho. Tinha sobre ele as
mais belas esperanças, me pus a falar com criados, roguei aos
mestres, gastei dinheiro, passei muitas noites em claro pensando nas
suas melhores vestimentas e em sua educação, para que assim não
frustrasse em nada seus avós, antes a todos superasse por sua
glória. Eu esperava que ele fosse o cajado de minha velhice;
passando o tempo, comecei a pensar em sua mulher e no seu casamento,
sobre procurar para ele alguma magistratura e poder. E eis que de
repente, como um raio ou tormenta que rebenta, não se sabe de onde,
e afunda uma nave carregada de infinitas mercadorias - uma nave que com
próspero vento atravessou o alto mar e estava já para tocar o porto e
quase entrando em sua baía -, e a tempestade não só lança na suma
pobreza o homem que era antes dono de tanta riqueza, mas também no
terror da morte e da perdição mais espantosa; isto, literalmente me
acontece agora. Porque estes malditos, corruptores e charlatões
(chamemo-nos assim por enquanto, não vamos brigar por isto),
arrancando de todas estas esperanças o que havia de ser o sustento de
minha velhice, levaram-no de mim como bandidos ao seu antro, e de tal
maneira o encantaram com seus encantamentos, que prefere passar
generosamente pelo ferro, pelo fogo, pelas feras, pelo que seja,
antes que voltar a sua antiga prosperidade. E o mais desesperador é
que os que meteram esta loucura na sua cabeça, me venham dizer ainda
que são eles, e não eu, que vêm o que é bom para o meu próprio
filho. Desertas estão as minhas casas, desertos estão meus campos.
Cheios de tristeza e de vergonha andam os meus lavradores, e também
meus criados. Só os meus inimigos mostram-se satisfeitos com minhas
desgraças, enquanto escondem a cara de vergonha os meus amigos.
Quanto a mim, já não tenho outro desígnio senão atear fogo em
tudo: casas e campos, manadas de bois e rebanhos de ovelhas. Para
que há de me servir daqui por diante toda esta riqueza, se quem
deveria gozar desta já não existe? Tornou-se escravo; entre
bárbaros desumanos está sofrendo uma escravidão mais amarga que a
própria morte. De luto mandei que se vestissem os meus criados; de
cinza rociaram as cabeças; mandei formar coros de carpideiras, e que
o chorem com mais fortes lamentos do que se tivessem visto seu
cadáver. Perdoa-me por ter chegado a este extremo: Minha dor
presente é mais triste que a da própria morte. Parece que já me
incomoda a luz e me irritam os próprios raios do sol; quando me vem à
mente aquele hábito do meu desafortunado filho, quando o vejo vestido
mais miseravelmente que os mais míseros lavradores e ocupado em tarefas
mais desonrosas que as deles, quando considero, em fim, que sua
resolução é inflexível, é que me queimo, me despedaço e me
arrebento".
|
|
| |