PROVA-SE O QUE FOI DITO COM UM EXEMPLO

E porque vos digo tudo isto de coração, vou contar-vos um exemplo em que eu próprio fui o personagem. Houve em outro tempo em nossa cidade um jovem realmente rico, que veio com o intuito de se instruir nas letras, tanto latinas como gregas. Este jovem tinha sempre como acompanhante um aio cuja única missão era formar e modelar a sua alma. Um dia eu me aproximei deste aio (que era um dos moradores dos montes) e quis saber dele a circunstância pela qual, tendo ele abraçado tão alta filosofia, se havia rebaixado a um oficio tão humilde como o de aio. Ele me respondeu que já lhe restava pouco tempo naquele oficio, e me explicou o caso desde o começo. Este menino - disse-me - tem um pai duro e áspero, e totalmente apegado às coisas da vida; sua mãe, ao contrário, santa mulher, prudente e modesta, não tem olhos senão para olhar o céu . O pai pois, como homem de grandes méritos na guerra, quer que seu filho siga pelo mesmo caminho; a mãe não o quer nem o deseja, mas abomina as armas e toda a sua oração e todos os seus desejos são que seu filho brilhe na vida monacal. Mas não se atreveu a dizer nada disto ao pai, pois temia que, só de suspeitar, o amarrasse antes do tempo com as cordas da vida, o afastasse deste estudo e o obrigasse a vestir a farda militar com o séquito de vida livre que traz consigo, fazendo assim impossível a correção. A mãe inventou então um novo plano. Chamou-me a sua casa e, depois de me contar tudo isto, tomou a mão direita do garoto e a colocou em minhas mãos. Eu lhe perguntei porque fazia aquilo e me respondeu que o único meio que nos restava para salvar aquele menino era que eu quisesse e me resignasse a encarregar-me dele como aio e viesse para cá em sua companhia. Ela convenceria o pai de que o estudo da eloquência é proveitoso mesmo para quem escolhe a carreira militar. Se conseguir isto - me dizia a mãe - , estando tu a sós em terras estranhas, sem que te atrapalhe o pai ou algum criado poderás modela-lo a tua vontade e fazer com que viva como em um mosteiro. Vamos! Concede-me esta graça e promete-me que irás representar esta farça comigo. Não se trata de algo sem importância; está em jogo e se arrisca nada menos que a alma de meu filho. Não permitas que corra perigo aquele que eu mais amo, arranca-o já dos laços que o rodeiam por todos os lados, tira-o destas ondas e desta tormenta. Mas se não quiseres conceder-me esta graça, desde já clamo a Deus que venha até nós e que seja minha testemunha de que em nada me omiti do que convém à salvação da alma de meu filho, e que estou limpa do sangue deste menino. Mas se acontecer que venha a se perder, como é natural que suceda vivendo entre tantos prazeres e negligências, de ti e de tuas mãos há de requerer Deus naquele dia a alma deste menino.

Dizendo estes e muitos outros argumentos e chorando copiosa e lastimosamente, me convenceu a tomar sobre mim este encargo, e com estas ordens me despediu.

E o seu plano não foi em vão, pois aquele generoso varão de tal maneira exercitou em breve tempo o jovem e acendeu tal fogo deste desejo em sua alma, que ele renunciou de repente a tudo e correu para o deserto, necessitando então de freio ao contrário, para contê-lo na ascese moderada, sem aqueles excessos de fervor. Era, de fato para se temer que se por este primeiro ímpeto de noviço, descobrisse o pai antes do tempo a trama, movesse uma terrível guerra à mãe, ao aio e aos monges em geral. E sem, dúvida, se o pai se houvesse inteirado desta fuga, não teria deixado pedra sobre pedra até arrojar fora de suas terras, não só aqueles santos que haviam acolhido seu filho, mas absolutamente todos os monges.

Tomando eu, pois, este jovem à parte, apresentei-lhe e semelhantes argumentos; que em boa hora se mantivera no propósito de abraçar este gênero de filosofia, e ainda tratei de aumentar seu desejo; parecia-me, contudo, conveniente que vivesse na cidade e prosseguisse o estudo das letras, pois desta maneira poderia fazer um grande bem a seus companheiros e passar desapercebido a seu pai. E tinha eu como necessário proceder desta maneira, não só em atenção àqueles santos monges, à mãe e ao aio, mas pensando também no próprio jovem. Porque se no começo o pai lhe atacasse, o provável era que arrancasse as plantas da filosofia, ainda tenras e sem raízes; ao contrário, se passasse muito tempo e se fincassem bem as raízes, eu tinha completa confiança que, acontecesse o que acontecesse, não poderia o pai causar dano algum a seu filho. O que realmente se cumpriu e não foi frustrada a minha esperança. Porque quando mais tarde, passado muito tempo, veio o pai a ser surpreendido com isto, por mais que sacudisse com violência o edifício, não só não conseguiu derruba-lo, como lhe deu maior firmeza. E no que se refere a seus companheiros, foi tal o proveito que tiraram de seu proceder que muitos o seguiram no fervor. E tendo em sua casa continuamente seu modelador, como uma escultura que goza sem interrupção da mão do artesão, aquele jovem aumentava dia a dia a beleza de sua alma. E o admirável era que, ao apresentar-se em público não parecia distinguir-se dos demais, pois não tinha um caráter feroz ou desabrido e nem se vestia de modo estranho, mas nos gestos, no olhar e no falar era semelhante a todo mundo. De onde que, ocultando dentro de si muita filosofia, lhe foi possível pegar em suas redes muitos dos que o trataram familiarmente. Pelo contrário, vendo-o em casa dir-se-ia que era um morador dos montes. E assim, o teor daquela casa competia com a perfeição de um mosteiro, pois nada havia nela além do necessário. Gastava todo o seu tempo no estudo dos livros santos, pois sendo inteligente, bastava-lhe dedicar uma breve parte do dia à instrução profana e o resto no dia se entregava inteiramente a contínuas orações e à leitura dos livros divinos. Passava o dia inteiro sem comer e as vezes prolongava o jejum por dois ou até mais dias. Também as noites eram testemunhas de tudo isto: de suas lágrimas, orações e santas leituras. Tudo isso nos contava, às ocultas, o aio, pois o jovem julgaria terrível se descobrisse que estas coisas tinham transcendido para fora. Dizia-nos , pois, o aio, entre outras coisas, que havia fabricado uma roupa de pele, e com ela dormia durante a noite, engenhoso invento que lhe havia ocorrido para levantar-se mais depressa. Enfim, cumpria tudo conforme a mais cabal perfeição dos monges e o bom aio não se cansava de glorificar a Deus que tão velozes asas para a filosofia havia concedido a seu recomendado.

Em conclusão, se me mostrassem agora uma alma desta têmpera e se me encontrassem um aio como este de que falamos; se me prometessem que tudo o mais resultaria de modo semelhante a este , eu seria o primeiro a desejar mil vezes que assim fosse e muito mais que os próprios pais, pois deste modo, a caça das almas seria mais abundante, já que para isto contribuiria a vida, a idade e o trato contínuo com os que puderam caçar seus companheiros. Mas a verdade é que não há quem nos prometa isto nem quem o encontre; e, não havendo, seria condição de extrema crueldade que a quem não tem forças para defender-se a si mesmo, mas que jaz estendido, recebendo feridas pelos quatro costados e entorpecendo os movimentos dos demais, a este, digo, deixemos no meio do campo para ser feito em pedaços, quando nosso dever é tira-lo da batalha. Do mesmo modo haveriam de castigar um general que retirasse das linhas de combate os que estão em condições de lutar e mandasse pôr na mais dura refrega os feridos, os que caem e impedem o avanço dos demais.