O CASTIGO DE HELÍ PELOS PECADOS DE SEUS FILHOS

E que não discorro eu agora sem razão, quero demostrar por um fato histórico, para que vejas que, por melhor que tenhamos ordenada nossa vida, se descuidarmos da salvação de nossos filhos, sofreremos o último suplício. E contarei um caso não cogitado por mim, mas contido nas Sagradas Escrituras.

Havia entre os judeus um sacerdote, de nome Helí, homem modesto e bom. Helí era pai de dois filhos, e vendo que caminhavam por caminhos de maldade, não os continha e nem os impedia; ou, melhor dizendo, tratava, sim, de contê-los e de impedi-los, mas não com todo o afinco que devia. As culpas daqueles jovens eram a fornicação e a gula.

"Porque comiam",

diz a Escritura,

"antes que as carnes sagradas fossem santificadas e fosse oferecido o sacrifício na presença de Deus".
1 Sa 2,16

O pai ouvia tudo isso e, e em vez de castigá-los com mão dura, tratava de apartá-los daquela maldade com boas palavras e não se cansava de dizer-lhes várias vezes:

"Não façais, filhos meus, não procedais assim, pois não é bom isso que ouço de vós, que apartais o povo do culto do Senhor. Se pecando o homem pecar contra outro homem, rogarão por ele ao Senhor; mas se o homem pecar contra o Senhor quem rogará por ele?"
1 Sa 2,24

Na verdade, não deixam de ser muito graves estas palavras de repreensão e elas bastariam para fazer entrar em si mesmo quem tivesse algum senso: pondera-lhes seu pecado, os faz ver como era terrível, e lhes assegura que o castigo que os espera será insuportável e espantoso. E, não obstante, por não haver feito tudo o que devia, pereceu o pai juntamente com os filhos. Porque teria que ter aumentado as ameaças, tê-los expulsado de sua presença e mandado dar-lhes uma boa quantidades de açoites, mostrando-se, enfim, mais duro e energético com eles. Mas por não ter feito nada disso, atraiu contra si e contra seus filhos a inimizade divina, e por ter tido uma inoportuna consideração para com os seus filhos, perdeu a sua salvação e a deles. Ouve se não o que Deus lhe disse, ou melhor, já não disse a ele pois já não o julgava digno nem de dirigir-lhe a palavra. Como a um criado que o houvesse ofendido gravemente, o faz saber por terceiros os males que iriam acontecer. Tão grande era então a cólera de Deus. Escuta o que disse Deus ao discípulo sobre a sorte de seu mestre... Pois, Deus preferiria falar antes com um discípulo, com um profeta ou com o mundo inteiro dos males de Helí do que com o próprio Helí. De tal maneira o havia rechaçado. Mas o que disse, afinal, Deus a Samuel?

"Conhecia que seu filhos maldiziam a Deus e não os repreendeu".
Ibid. 3,13s

E não foi assim, pois efetivamente os repreendeu; contudo, Deus não teve isso como repreensão, e assim o condenou, por lhe faltar o rigor e devida energia. De modo que ainda que cuidemos de nossos filhos, se não o fizermos com a diligência necessária, não é isto cuidado como não foi tampouco a repreensão de Helí. Seja como for, já que disse a culpa, o Senhor também acrescenta com grande cólera o castigo:

"Jurei",

disse,

"contra a casa de Helí, que nem com incenso nem com sacrifícios se expiaria a sua casa por este pecado eternamente".
1 Sa 3,13-14

Já vês a indignação veemente e o castigo irremissível. De qualquer forma - disse - tem que perecer, e não só ele e seus filhos, mas junto com ele toda a sua casa, sem que haja remédio que possa curar esta chaga. E, contudo, se não fosse aquela negligência para com os seus filhos, nada teria Deus para reprovar naquele velho, que era nas demais coisas, admirável. E é bom que se veja toda a sua virtude, entre outras coisas, quando esta mesma desgraça aconteceu. Porque, em primeiro lugar, tendo ouvido tudo isto, e já que se viu por um triz do último castigo, não se irritou, nem se rebelou, nem disse nada do que provavelmente diriam os demais: Acaso sou eu dono da vontade alheia? Está bom que pague pelas minhas próprias culpas, mas meus filhos já têm idade, e o justo é que só eles sejam castigados. Não disse nada disso, nem em pensamento. Como um criado agradecido que só sabe suportar de boa vontade quanto lhe vêem de seu Senhor, por ferido que seja, Helí só disse estas palavras, que estão cheias da mais alta filosofia:

"Ele é o Senhor; faça-se o que a Ele aprouver"
1 Sa 3,18

E não só sobressai aqui a sua virtude, mas também pode ser vista em uma outra circunstância. De fato, havendo estourado a guerra entre judeus e filisteus, veio um mensageiro para contar a Helí os desastres dela, e como seus filhos tinham sido mortos, de maneira vergonhosa e miserável, na batalha. Até aqui ainda se manteve tranqüilo; mas quando, sobre a morte de seus filhos, acrescentou o mensageiro que a arca tinha sido capturada pelos inimigos, então sim, abatido de tristeza,

"o velho caiu de seu assento de costas junto à porta do santuário e quebrou o pescoço, pois era muito ancião e pesavam-lhe os anos. Havia julgado Israel por vinte anos".
Ibid. 4,18

Pois bem, se a um sacerdote, a um ancião, a um juiz glorioso, que durante vinte anos havia governado irreparavelmente o povo hebreu e viveu em tempos em que não se exigia tanta perfeição, nenhum destes títulos foi bastante para salvá-lo, mas, por não ter cuidado de seus filhos com toda a diligência, pereceu trágica e lamentavelmente, e este pecado de negligência, como uma onda enorme e violenta ultrapassou tudo e cobriu todos os seus outros merecimentos, que castigo nos espera, a nós que vivemos em tempos que exigem filosofia superior e carecemos de sua virtude? Nós, digo, que não só não atendemos a nossos filhos, mas que armamos ciladas e declaramos guerra a quem quer faze-lo, e nos portamos com nossos rebentos mais ferozmente que bárbaros selvagens? A crueldade dos bárbaros não passa de nos reduzir à servidão, devastar nossa terra e submetê-la a seu domínio; males, afinal, que terminam no corpo; mas vós escravizais a própria alma e, sobrecarregando-a de correntes como a um prisioneiro de guerra, a entregais aos demônios perversos e ferozes e a todas as suas paixões. Porque vós não fazeis outra coisa quando não dirigis uma palavra de exortação espiritual a vossos filhos, nem consentis que outros, que estão dispostos, as dirijam.