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Gênese de São Domingos.Num vale de Castela a Velha banhado pelo Douro, quase a igual distância de Aranda e Osma, existe uma pequena povoação chamada Caleruega na linguagem do país, e Calerága na linguagem mais harmoniosa de grande número de historiadores. Foi aí que nasceu S. Domingos, no ano de 1170 da era cristã. Deveu a existência, depois de Deus, a Felix de Gusmão e a Joana d'Aza. Tinham esses piedosos senhores uma casa em Caleruega, onde S. Domingos veio ao mundo e que, até à época presente, ainda não caíra completamente em ruínas. Afonso o Sábio, rei de Castela, de acordo com sua mulher, seus filhos e os principais Grandes de Espanha, aí fundou em 1266 um mosteiro de religiosas dominicanas. Nesse mosteiro nota-se uma parte, mais antiga do que o corpo do edifício, diferente da arquitetura conventual; uma torre fortificada do tempo da idade média, onde estão incrustadas as armas dos Gusmões, uma fonte com o seu nome e muitos outros vestígios que o povo, órgão da tradição, chamava de o Palácio dos Gusmões. O ramo castelhano desta ilustre família tinha o seu solar no castelo de Gusmão, distante dali apenas umas léguas; o lugar onde tinham o seu jazigo, igualmente perto de Caleruega, era em Gumiel d'Izan, na capela de uma igreja pertencente à ordem de Cister. Felix de Gusman e Joana d'Aza foram, depois de sua morte, levados para essa capela e metidos, em duas criptas, ao lado um do outro. Porém a própria veneração de que eram alvo não tardou a separá-los. Cerca de 1318 o infante de Castela, D. João Manuel, transladou o corpo de Joana d’Aza para o convento dos Dominicanos em Penafiel, que fizera ele próprio construir. Ficou portanto Felix só no túmulo de seus avós, como testemunha fiel da nobreza do sangue que transmittira a S. Domingos, indo Joana reunir-se à posteridade espiritual de seu filho, a fim de gozar da glória que ele adquirira, preferindo a fecundidade que emana de Jesus Christo à fecundidade do sangue e da carne.Um fenômeno curioso precedera o nascimento de S. Domingos. Sua mãe viu em sonhos o fruto de suas entranhas, sob a figura de um cão segurando na boca um facho aceso, fugir do seu seio indo incendiar o mundo inteiro. Atormentada por este presságio, cujo sentido lhe era desconhecido, ia a miúdo orar sobre o túmulo de S. Domingos de Silos, noutro tempo abade de um mosteiro desse nome, não longe de Caleruega e, grata às consolações que aí recebera, pôs o nome de Domingos à criança que fora o objecto das suas orações. Era o terceiro filho que o seu seio abençoado dava à luz. 0 mais velho, Antônio, consagrou a sua vida ao serviço dos pobres, e pela sua grande caridade honrou o sacerdócio de que se achava revestido; o segundo, Manés, morreu sob o habito de Frade Pregador. Quando levaram Domingos à Igreja para receber o baptismo, novo prodígio veio manifestar a grandeza da sua predestinação. Sua madrinha que os historiadores designam apenas como uma dama nobre, viu em sonhos sobre a fronte do neófito uma estrela radiosa. Sobre o rosto de Domingos ficaram sempre vestígios dela notando-se, como um traço singular da sua fisionomia, que da sua fronte irradiava um certo esplendor que lhe atraía o coração de todos os que o contemplavam. A pia de mármore branco em que ele recebeu a agua santa foi transportada, em 1605, para o convento dos Frades Pregadores em Valladolid, por ordem de Filipe III, que quis que seu filho fosse batizado nela. Existe hoje em S. Domingos de Madrid, e muitos infantes de Espanha têm nela sido iniciados à vida que reside em Jesus Cristo nosso dileto Senhor. Domingos não foi criado com leite estranho; sua mãe não consentiu que um sangue alheio corresse nas suas veias; criou-o a um seio de onde não podia receber senão um casto alimento e junto a lábios de onde não podia ouvir senão palavras de verdade. Neste doce convívio maternal apenas havia para ele a recear um certo mimo involuntário no vestuário e essa abundância de cuidados que se não podem reprimir, por mais cristão que seja o amor. Mas a graça que residia dentro dele cedo se revoltou contra este jugo. Assim que pôde servir-se dos seus membros saía do berço, quando o não viam, e deitava-se sobre as tábuas no chão. Dir-se-ia que já conhecia a miséria dos homens e a diferença que há neste mundo entre a sorte de cada um e que, cheio de amor pela humanidade, sofria de se ver numa cama melhor que a do mais humilde dos seus irmãos; ou então que, iniciado no segredo do berço de Jesus Cristo, desejava ser tratado como ele. Nada mais se sabe dos seis primeiros anos da, sua vida. Com sete anos apenas, saiu da casa paterna, sendo mandado para Gumiel d'lzan para a casa de um tio que exercia naquela Igreja o cargo de arcipreste. Foi aí, junto ao túmulo de seus antepassados, e sob a dupla autoridade do sangue e do sacerdócio, que Domingos passou a segunda parte da sua infância.
diz um historiador,
Foi a Universidade de Valência, no reino de Leão, única que nesse tempo possuía a Espanha, a terceira escola onde foi educado S. Domingos. Entrou para ela aos quinze anos, achando-se pela primeira vez entregue a si mesmo longe do ditoso vale, onde à sombra dos muros de Caleruega e Gumiel d'lzan deixara todas as suaves recordações que prendem a alma ao torrão natal. Demorou-se dez anos em Valência. Consagrou os seis primeiros ao estudo das letras e da filosofia, como então se ensinavam. Mas, diz um historiador,
Dois fatos nos ficaram desses dez anos em Valência. Durante uma fome que assolou a Espanha, Domingos, não contente com dar aos pobres tudo quanto tinha até o próprio fato, vendeu também livros anotados pela sua mão a fim de distribuir entre eles o seu produto. Admirando-se alguém que ele se privasse dos meios de estudar, proferiu estas palavras, as primeiras suas transmitidas à posteridade:
0 seu exemplo incitou os professores e estudantes da Universidade a socorrerem abundantemente esses desgraçados. Em outra ocasião, vendo uma mulher, cujo irmão estava cativo em poder dos mouros, chorar amargamente por não poder pagar o seu resgate, prontificou-se a ser vendido para o livrar; Deus, porém, que o reservava para a redenção espiritual de um grande número de homens, não o permitiu. Quando o viandante passa no fim do outono por uma terra destituída de todos os seus produtos, encontra às vezes ainda em uma ou outra árvore algum fruto esquecido pelo trabalhador, e esses restos de uma fertilidade desaparecida bastam-lhe para fazer uma idéia dos campos que atravessa. Do mesmo modo a Providência, deixando oculta nas sombras do passado a mocidade de seu servo Domingos, quis todavia que a história conservasse dela alguns traços, relações incompletas mas comovedoras de uma alma, onde a pureza, a graça, a inteligência, a verdade e todas as virtudes eram um efeito do amor de Deus e dos homens singularmente prematuro. Domingos chegara aos vinte e cinco anos sem que Deus lhe tivesse ainda manifestado os seus desejos sobre ele. Para o mundano a vida é apenas um espaço de tempo que se deve percorrer o mais devagar possível pelo caminho mais suave. O cristão, porém, não a encara assim. Ele sabe que todo homem é um vigário de Jesus Cristo que pelo sacrifício de si próprio deve concorrer para a redenção da humanidade e que, na distribuição dessa grande obra, cada qual tem, desde toda a eternidade, o seu lugar marcado, que pode aceitar ou recusar. Sabe que se desertar voluntariamente do posto que a Providencia lhe destinou no exército das criaturas úteis, esse será dado a uma outra mais digna, ficando ele abandonado à sua própria direcção na estrada larga e curta do egoísmo. São estes os pensamentos que preocupam o cristão cuja predestinação ainda lhe não foi revelada e, convencido de que o meio mais seguro de a conhecer é o próprio facto de desejar cumprí-la, seja ela qual for, está sempre preparado para tudo quanto a Deus aprouver. Não descura nenhuma das funções necessárias à república cristã, porque em qualquer delas se podem encontrar três coisas das quais depende o seu verdadeiro valor: a vontade de Deus que as impõe, o bem que resulta do seu fiel cumprimento e a dedicação de coração de quem está incumbido delas. Crê mesmo firmemente que as menos honrosas não são as menos elevadas, e que a coroa dos santos nunca vem mais direita do céu do que quando pousa sobre uma fronte pobre, encanecida na humildade voluntária de uma vida trabalhosa. Pouco lhe importa pois qual o lugar que Deus lhe marque; basta-lhe saber qual é a sua vontade. Ora, Deus preparara para o jovem Domingos um mediador digno dele, que não somente lhe manifestaria a sua vocação, mas também lhe abriria as portas da sua futura carreira e conduzi-lo-ia por caminhos inesperados para o teatro onde o esperava a Providência. Entre os meios de reforma a que se recorriam para levantar a disciplina eclesiástica havia um particularmente recomendado pelos soberanos pontífices, que vinha a ser o estabelecimento da vida em comum para o clero. Os apóstolos assim viveram e o seu imitador Santo Agostinho deixara, sobre este assunto, a célebre regra conhecida pelo seu nome. A vida em comum não é outra coisa senão a vida de família e do amor levada ao mais alto grau de perfeição, e é impossível que se observe fielmente sem inspirar aos que a ela se dedicam aqueles sentimentos de fraternidade, pobreza, paciência e abnegação que são a alma do cristianismo. Havia aproximadamente século e meio que se dava aos padres que se sujeitavam a esse modo de vida, o nome de cônegos regrantes. Estes não constituíam um corpo único sob um chefe único, mas cada casa tinha o seu prior que não dependia senão do bispo. Devemos, contudo, excetuar a ordem dos cônegos regrantes de Premontré, fundada em 1120 por S. Norberto. Ora, o bispo de Osma, Martinho de Bazan, ansioso por contribuir para a reabilitação da Igreja, convertera recentemente os cônegos da sua catedral em cônegos regrantes e, sabedor de que na Universídade de Valência existia um mancebo de raro mérito procedente da sua diocese, concebeu a esperança de o agregar ao seu cabido, assim como aos seus projetos de reforma. Encarregou desse negócio o homem que mais o tinha secundado na difícil obra que acabava de realizar, um homem já ilustre pela sua ciência e pelo encanto venerável da sua vida, e que mais tarde juntou a estas qualidades, comuns a muitos, um título a que nenhum tem direito senão ele. Há seis séculos que o espanhol D. Diogo de Azevedo jaz sepultado debaixo de uma lousa que eu nem sequer vi e, contudo, não pronuncio o seu nome senão com um respeito que me enternece. Porque foi ele o mediador escolhido por Deus para iluminar e dirigir o patriarca de uma dinastia da qual sou filho e, percorrendo a longa serie de meus antepassados espirituais, encontro-o entre S. Domingos e Jesus Cristo. A história nada nos diz das primeiras entrevistas de D. Diogo, com o jovem Gusmão, porém fácil será adivinhá-las pelo seu resultado. Aos vinte e cinco anos uma alma generosa anela por sacrificar a sua vida. Implora do céu e da terra uma grande causa onde possa empregar uma grande dedicação. O amor e a força superabundam nela. E se isso se dá com uma alma cuja energia provém de um natural feliz, quanto mais se não dará com uma na qual o cristianismo e a natureza, correm juntos como dois rios virgens de onde nunca se desvia uma única gota em vãs paixões! E' pois sem dificuldade que reproduzo no meu espírito a entrevista de D. Diogo com o nobre estudante de Valência. Em breves momentos ensinou-lhe o que se não aprende nos livros nem nas universidades: o estado de luta no mundo entre o bem e o mal, as chagas profundas feitas à Igreja, a tendência dos negócios e, finalmente, tudo o que constitui o secreto elemento de um século. Domingos, iniciado nos males do seu tempo por um homem que os compreendia, decerto sentiu necessidade de contribuir com o tributo do seu corpo e da sua alma à cristandade enferma. Viu num relance qual o seu lugar e o seu dever. Viu-os no sacerdócio segundo a ordem de Melchisedech e seguindo a Jesus Cristo, Salvador único do mundo, principio único de toda a verdade, de todo o bem, de toda a graça, de toda a paz, de toda a dedicação e cujos inimigos são os eternos inimigos do gênero humano, sob qualquer nome que se apresentem. Viu que esse sacerdócio divino, aviltado por muitas mãos indignas da sua consagração, necessitava de se reabilitar perante Deus e perante o povo, e que o não podia ser senão pelo ressurgimento das virtudes apostólicas naqueles que dele estavam revestidos e incumbidos. E como o primeiro passo para qualquer reabilitação consiste em fazermos nós mesmos o que desejamos ver fazer aos outros, o herdeiro dos Gusmões consagrou a sua vida a Deus no cabido reformado de Osma, sob a direcção de D. Diogo, que era então o seu prior.
diz o bem aventurado Jordão de Saxe,
A providência não se apressou com o que dizia respeito a Domingos,
embora a sua vida devesse ser curta. Durante nove anos deixou-o em
Osma preparando-se para a missão, ainda então desconhecida, que ele
havia de desempenhar. Nesse intervalo, em 1201, D. Diogo de Azevedo
sucedeu na sede episcopal a Martinho de Bazan. Pouco mais ou menos
pela mesma época, começou Domingos a anunciar ao povo a palavra de
Deus, sem contudo se afastar muito de Osma e, provavelmente, continuou
nesse ministério, sobre o que se não possue pormenor algum, até 1203,
época solene em que saíu de Espanha e sem saber se dirigiu, tendo então
trinta e quatro anos, para o ponto do seu destino.
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