II.4.

Características gerais do fim último.

Antes de determinar qual é este fim último a que aspira a vontade humana, S. Tomás examina uma série de características que ele deverá possuir para poder ser de fato fim último. Procedendo assim, ficará mais fácil determinar depois em que ele consiste.

a. Deve ser desejado por causa de si mesmo.

A primeira característica que deve ter o fim último da vontade é praticamente imediata:

"deve ser de tal natureza
que todas as demais coisas
sejam desejadas por causa desse fim,
e este fim seja desejado por causa de si mesmo,
e não por causa de alguma outra coisa"
(9).

b. Deve ser um bem perfeito.

Para poder ser desejado por causa de si mesmo e todas as demais coisas serem desejadas por causa do fim último, o fim último deverá ser também um bem perfeito.

Ser bem perfeito, será, portanto, a segunda das características do fim último.

Por que ser desejado por si mesmo implica que o fim último seja bem perfeito?

A razão é que, quando a vontade deseja e busca o seu fim último ela está sendo movida por este fim último. Ora, segundo a teoria da causalidade tal como exposta nos trabalhos de Aristóteles e S. Tomás de Aquino, em todo movimento estão necessariamente envolvidos quatro gêneros de causas: a causa material, a causa formal, a causa eficiente e a causa final. (Uma explicação mais detalhada sobre a natureza destes quatro gêneros de causas pode ser obtida, no fim deste capítulo, consultando-se o Apêndice sobre teoria da causalidade). Sempre que se dá um movimento ou alguma alteração na natureza, conforme estava-se explicando, devem estar presentes estas quatro causas, cada uma em correspondência com as outras.

Ocorre, porém, que o fim último da vontade humana move a vontade por modo de causa final. A ela corresponderá, portanto, uma causa eficiente, que será o agente do movimento. (Sobre o significado de causalidade final e causalidade eficiente pode-se consultar, no fim deste capítulo, o Apêndice sobre teoria da causalidade).

Ora, segundo Tomás de Aquino, há três tipos de agentes ou causas eficientes: os imperfeitíssimos, os perfeitos e os perfeitíssimos.

Existem agentes imperfeitíssimos, que não movem pela própria forma. (Sobre o significado de forma e causalidade formal, pode-se consultar, no fim deste capítulo, o Apêndice sobre teoria da causalidade). Estes agentes imperfeitíssimos, conforme dizia-se, movem não pela própria forma, mas apenas na medida em que são movidos por outro (10), como um martelo de ferreiro que golpeia uma espada. O efeito deste agente, segundo a forma alcançada no efeito, não se assemelha a este agente imperfeitíssimo, mas ao agente pelo qual é movido, que no caso, é a arte do ferreiro.

Outros agentes são agentes perfeitos; agem segundo a sua forma, de tal maneira que seus efeitos se assemelham a eles, mas que, ainda assim, necessitam de um agente anterior principal para movê-los. É o caso do fogo que esquenta. Este agente, apesar de dito perfeito, ainda apresenta algo de imperfeição, por participar como instrumento (11).

Os agentes perfeitíssimos são aqueles que não apenas agem segundo a forma própria, mas também não são movidos por nenhum outro agente (12).

O fim último é dito bem perfeito porque, ao mover a vontade, se assemelha, como causa final, a estes agentes perfeitíssimos na linha da causalidade eficiente.

Há fins imperfeitíssimos, que não são apetecidos por nenhuma bondade formal existente nos mesmos, mas apenas por serem úteis a algo. É o caso do dinheiro; correspondem aos agentes imperfeitíssimos.

Há outros fins que são perfeitos; são desejados por causa de algo que têm em si mesmos, mas, mesmo assim, são desejados por causa de outros, como a honra e os prazeres, que seriam escolhidos pelos homens por causa de si mesmos ainda que nada mais pudessem conseguir por meio deles. No entanto, não obstante isso, os escolhemos por causa da felicidade, porque através da honra e dos prazeres pensamos que futuramente seremos felizes (13).

Há, finalmente, o fim perfeitíssimo, que cumpre determinar qual seja, mas que nunca poderá ser desejado por causa de nenhum outro.

Um fim com estas características os homens chamam de felicidade (14). Trata-se, porém, de um nome genérico para designar o fim último da vontade humana; ainda permanece a questão de se determinar em que consiste a felicidade para o homem.

c. Deve ser suficiente por si mesmo.

Uma terceira característica que deverá ter o fim último da vontade humana, ou a felicidade, é que ela seja suficiente por si mesma (15).

Esta suficiência é conseqüência da felicidade ter que ser um bem perfeito.

De fato, se algo não fosse suficiente, não aquietaria perfeitamente o desejo, e assim não seria bem perfeito (16).

O que significa esta suficiência?

Um bem perfeito pode ser dito suficiente na medida em que sua perfeição seja tanta que não possa ser aumentada qualquer que seja o acréscimo que se lhe faça. Neste sentido, somente Deus seria bem perfeito; não há nada que possa ser acrescentado a Deus que o torne mais perfeito. Esta não pode ser a felicidade humana, pois esta só pode pertencer ao próprio Deus; a felicidade humana, portanto, seja o que ela for, terá que ser algo sempre possível de ser aumentada.

A suficiência do bem perfeito que é fim último da vontade humana é aquilo que

"é dito suficiente na medida em que contém
tudo aquilo que necessariamente
faz falta para o homem"
(17).

Ela deve conter tudo aquilo que é necessário ao homem por natureza, não, todavia, tudo aquilo que pode advir ao homem (18). Ela pode tornar-se melhor por acréscimo; mas deve ser tal que o desejo do homem não permaneça inquieto, porque

"o desejo regrado pela razão,
como devem ser os desejos do homem feliz,
não possui inquietação
com as coisas que não são necessárias,
ainda que estas sejam possíveis de serem obtidas"
(19).

Tomado neste sentido, o fim último em que consiste a felicidade humana deve ser um bem suficiente.



Referências

(9) In libros Ethicorum Expositio, L. I, l. 2, 19.
(10) In libros Ethicorum Expositio, L. I, l. 9, 108. (11) Idem, loc. cit.. (12) Idem, loc. cit.. (13) Idem, L. I, l. 9, 109-110. (14) Idem, L. I, l. 9, 111; ver também: L. I, l. 9, 106. (15) Idem, L. I, l. 9, 112. (16) Idem, loc. cit.. (17) Idem, L. I, l. 9, 115. (18) Idem, L. I, l. 9, 116. (19) Idem, loc. cit..