IX.8.

Requisitos para a implantação da sociedade perfeita.

Várias passagens do Comentário à Política levam à conclusão de que somente é possível implantar uma sociedade perfeita se a sociedade já contar com homens que tenham alcançado a excelência nas virtudes morais e intelectuais. Isto implica por sua vez em um desafio incomumente árduo para o surgimento da sociedade perfeita; pois a natureza do homem é tal que, conforme vimos, necessita da sociedade para alcançar a excelência na virtude e na inteligência; mas, por outro lado, para cumprir convenientemente esta função, a sociedade necessita de homens com estas mesmas qualidades. Por isso é tão difícil surgirem tais sociedades; a formação dos que são necessários para constituí-la é um trabalho em que é preciso como que vencer a própria natureza.

Para que surja a sociedade ótima, diz o Comentário à Política,

"é preciso que na sociedade
haja muitos homens virtuosos
que excedam aos demais na virtude;
suposto isto,
a sociedade poderá ser governada
pelo regime ótimo.
Não sendo este o caso,
a melhor forma de governo
para esta sociedade
será um regime ótimo apenas por suposição,
um regime que não é o ótimo absolutamente considerado",

mas apenas sob um certo aspecto (53).

É evidente, continua o Comentário,

"que a natureza do governo
deve ser tomada de seu fim.
O fim, porém,
da política correta
é a felicidade da vida;
por isso serão necessárias
tantas pessoas virtuosas na sociedade
quantas forem necessárias
para dirigir e legislar a cidade
para que esta possa viver feliz,
e tantos homens virtuosos deverão governar
quantos sejam necessários
para que pela sua prudência
estabeleçam ou constituam a cidade"
(54).

Quando se verificam estas condições, diz ainda o Comentário, o governo ótimo se segue com uma certa naturalidade; não é uma disposição arbitrária do homem, mas uma instituição que pertence ás próprias coisas da natureza; de fato, somente se pode constituir a monarquia perfeita quando

"algum homem difere dos demais
segundo a virtude de tal modo
que sua virtude exceda
a virtude de todos os demais.

Neste caso é justo
que esta sociedade seja governada
por uma Monarquia,
sendo isto algo que pertence à natureza,
pois é segundo a natureza que aquele
que excede a todos os demais em virtude
governe aos demais.
Portanto, se a virtude de algum homem
excede a de todos os demais,
é natural que este homem seja rei.
Este homem não deverá governar em parte,
mas em tudo,
nem por algum tempo,
mas para sempre.
De fato,
a parte não pode exceder o todo,
mas este homem excede em virtude
a todos os outros;
portanto, os demais são parte
em relação a ele,
de onde que acontecerá que todos
passarão a obedecê-lo
como que por uma inclinação natural"
(55).

Para muitos leitores tais afirmações poderão parecer, à primeira vista, um exagero inteiramente fora dos domínios da realidade. Trata-se novamente, porém, de outro problema de falta de perspectiva. As pessoas normalmente não fazem idéia de quão longe podem ir as possibilidades da virtude e ao que, por conseqüência, o Comentário à Política estava se referindo quando afirmava que o verdadeiro monarca deve exceder na virtude a todos os demais súditos. O próprio Comentário levou em consideração esta possível dificuldade do leitor e, em algumas passagens, tentou se fazer explicar o quanto pôde:

"Deve-se considerar",

diz o Comentário,

"que alguém pode alcançar
a virtude perfeita e a sua operação
de duas maneiras:
de um modo,
segundo o comum estudo dos homens;
de outro modo,
além do modo e do comum estudo dos homens,
o que se denomina de virtude heróica.
A virtude heróica é aquela segundo a qual
alguém, pela virtude moral e intelectual,
alcança a operação de qualquer virtude
acima do modo comum dos homens;
trata-se de um modo divino de ser,
que se realiza através de algo divino
existente no homem,
que é a inteligência.
É assim que se expressa Aristóteles:
este homem, de fato,
que excede de tal maneira a todos os demais,
é dito ser entre eles como um deus"
(56).

"Os que excedem
de tal maneira aos demais na virtude
não são verdadeiros cidadãos",

continua o Comentário (57).

"Não devem, entretanto,
por este motivo, serem expulsos da cidade
e transferidos para outros lugares;
isto seria contra a razão,
porque trata-se de alguém que alcançou o ótimo.
Não devem, porém, por outro lado,
ser levados ao governo como aos demais,
de tal maneira que às vezes governem
e outras vezes sejam súditos.
Sendo tal homem ótimo,
será digno e justo
que todos alegremente lhe obedeçam,
e que ele seja o governante,
seja um só ou mesmo vários"
(58).

O Comentário afirma em várias passagens que a multidão deve governar quando ninguém se sobressai manifestamente na virtude; neste caso, se apenas um só governasse,

"os demais seriam desonrados,
o que seria inconveniente"

e fonte de rebelião (59).

Mas o caso de que estávamos tratando era completamente diverso. Tratava-se, de fato, de

"alguém que excede
a todos os demais na virtude;
neste caso apenas ele deve governar.
A razão disto é que mais convém governar
aquele que mais se aproxima do governo natural
e ao próprio modo como é governado o Universo;
mas alguém que excede dessa maneira
aos demais na virtude
realiza tal aproximação,
conforme vemos no Universo,
no qual há um só governante.
Ora, o governo do Universo
é um só e é ótimo,
pelo que na cidade
aquilo que é mais uno e melhor
é o que mais se aproxima
à semelhança do governo do Universo
e do governo natural"
(60).



Referências

(53) In libros Politicorum Expositio, L. IV, l. 1, 532.
(54) Idem, L. III, l. 1, 455. (55) Idem, L. III, l. 16, 525. (56) Idem, L. III, l. 12, 463. (57) Idem, L. III, l. 12, 469. (58) Idem, L. III, l. 12, 473. (59) Idem, loc. cit.. (60) Idem, L. III, l. 12, 473.