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Na Vulgata Latina o profeta Joel ocupa o segundo lugar
entre os doze profetas menores. Nada se sabe a respeito de sua
vida, exceto o pouquíssimo que nos é relatado em seu próprio
livro ou que indiretamente pode-se conjecturar a partir dele. É
difícil inclusive precisar a época em que viveu, embora os
comentadores antigos, e entre eles, S. Jerônimo, julguem que Joel
deva ter vivido na Judéia antes do exílio da Babilônia,
provavelmente na mesma época em que viveu Oséias (64).
Para entender os fatos relacionados com a profecia de
Joel, precisamos voltar no tempo até alguns séculos antes de sua
época. Por volta do ano 2000 AC Deus manifestou-se a Abraão,
homem idoso, sem filhos e casado com uma mulher estéril,
prometendo-lhe dar-lhe numerosa descendência, da qual um dia
nasceria Jesus, por quem seriam abençoadas todas as nações da
terra. Pouco tempo depois desta promessa, Sara, esposa de Abraão,
não obstante sua já avançada idade, dava à luz seu filho
primogênito Isaac. Anos mais tarde, entre 2000 e 1500 AC, quando
Abraão já havia passado desta vida e sua descendência, aquela que
viria a ser posteriormente o povo judeu, ainda era apenas a
família já numerosa de seu neto Jacó, resolveu este emigrar para
o Egito devido a uma fome que havia se abatido sobre quase todo o
mundo conhecido da época. A família de Jacó foi bem recebida no
Egito e fixou residência na terra de Gessen, próximo à foz do Rio
Nilo.
Durante cerca de 400 anos os descendentes de Jacó se
multiplicaram na terra de Gessen e se tornaram um povo numeroso,
conforme a promessa que havia sido feita por Deus a Abraão muitos
anos antes. Seu número aumentou tanto a ponto de assustar o Faraó
que governava o Egito; resolveu então este, por causa de seus
temores, escravizar o povo judeu, obrigando-o a trabalhos
forçados. Esta situação durou até que Moisés, conforme narram as
Sagradas Escrituras no livro do Êxodo, após os prodígios das dez
pragas e da passagem pelo Mar Vermelho, libertou seu povo do jugo
egípcio e o conduziu através do deserto, primeiro até o Monte
Sinai onde foram recebidas as tábuas da Lei, depois até à terra
de Canaã, na atual Palestina ou terra de Israel, onde os judeus
fixaram sua morada definitiva.
Durante muito tempo o povo judeu ocupou a terra de
Canaã sem necessidade de ser governado por reis, guiado apenas
pelas leis de Moisés e pela sabedoria de Juízes e Profetas. Por
volta do ano 1000 AC, entretanto, resolveram coroar seu primeiro
monarca. Saul era seu nome, sucedido, após a sua morte, pelo rei
Davi, sucedido por sua vez pelo seu filho Salomão.
No reinado do sucessor de Salomão uma revolta fêz com
que o povo judeu se dividisse em dois reinos, Israel ao norte e
Judá ao sul. Em ambos surgiu grande número de profetas
denunciando a desobediência do povo aos mandamentos da Lei
Mosaica e anunciando a iminência de um castigo caso Israel e Judá
não produzissem frutos de arrependimento. Tal como fora anunciado
muitas e repetidas vezes, no ano 721 AC os soldados assírios
invadiram o Reino de Israel e deportaram seus habitantes para a
Assíria. No ano 587 AC chegou a vez do Reino de Judá, quando as
tropas da Babilônia tomaram a cidade de Jerusalém e deportaram
seus habitantes para uma terra que já não era deles. O Reino de
Israel nunca mais voltaria a existir; quanto ao Reino de Judá,
após 70 anos de cativeiro em terras da Babilônia, pôde assistir à
conquista de seus senhores babilônios pelos persas, oportunidade
em que o novo soberano, o Rei Ciro dos persas, concedeu-lhes a
liberdade de retornarem a Jerusalém, reconstruírem a sua pátria e
restaurarem o seu culto. Dali a menos de seis séculos, já sob o
jugo dos romanos, mas em sua própria terra, Jesus nasceria em
Belém de Judá.
Em rapidíssimas pinceladas, esta é a história do povo
judeu tal como é narrada no Antigo Testamento. Após onze breves
capítulos em que as Sagradas Escrituras descrevem a criação do
mundo e algumas histórias referentes aos seus primeiros
habitantes, a partir do décimo segundo capítulo do Gênesis, em
que nos é relatado o chamamento do patriarca Abraão, até o fim do
Antigo Testamento, os ensinamentos contidos nas Sagradas
Escrituras se sucedem ao longo da história que acabamos de
resumir.
Nesta seqüência, o profeta Joel se situa, segundo os
antigos comentadores cristãos, provavelmente na época em que,
depois do faustoso reinado de Salomão, o povo judeu havia se
dividido em dois, e antes do Reino do sul ser conquistado pelos
Babilônios. Se seguirmos a opinião de S. Jerônimo, que supõe ter
ele vivido na mesma época do profeta Oséias, que pode ser datado
com mais precisão, Joel deve ter vivido no Reino de Judá na época
em que o Reino de Israel era conquistado e deportado pelos
assírios.
A curta profecia de Joel é dividida em três capítulos,
e nestes três capítulos se distingüem nitidamente duas partes.
A primeira anuncia uma terrível devastação da terra de
Canaã por quatro hordas sucessivas de quatro espécies de
gafanhotos, uma mais voraz do que a outra, na Vulgata designadas
pelos nomes latinos de `eruca', `locusta',
`bruchus' e `rubigo', vertidos
ao português na tradução do Pe. Matos Soares como lagarta,
gafanhoto, brugo e ferrugem, respectivamente.
Segundo a interpretação de S. Jerônimo (65) e de Hugo
de S. Vitor (66) estas quatro hordas sucessivas de gafanhotos
anunciadas por Joel são na verdade as hordas dos soldados
assírios, babilônios e dos outros povos que se lhes seguiram
oprimindo a nação judaica.
O profeta conclui esta primeira parte de sua profecia
com uma exortação ao povo judeu para que se converta ao Senhor:
"Rasgai os vossos corações
e não os vossos vestidos",
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diz o profeta,
"e convertei-vos ao Senhor vosso Deus,
porque Ele é benigno e compassivo,
e inclinado a suspender o castigo.
Quem sabe se Ele quererá voltar-se para vós
e perdoar-vos e deixar após si
uma bênção?" |
O povo, porém, não se converteu. O castigo para o qual o profeta
advertia não tardou a vir.
Não obstante isso, a segunda parte da profecia se
inicia anunciando o perdão de Deus ao povo judeu; não se trata da
suspensão dos castigos anunciados avisados pelo profeta,
suspensão que de fato não ocorreu, mas de algo que viria a
ocorrer num futuro mais distante:
"O Senhor olhou com amor ardente
a sua terra,
e perdoou o seu povo". |
Com estas palavras se inicia a segunda parte da profecia. Logo em
seguida o profeta acrescenta:
diz o Senhor,
"dos anos cujos frutos comeu o gafanhoto,
o brugo, a ferrugem e a lagarta,
este poderoso exército que mandei contra vós". |
Surge então a passagem mais conhecida da profecia de Joel, porque
comentada por São Pedro por ocasião da descida do Espírito Santo
sobre os apóstolos no dia de Pentecostes:
continua o Senhor pela boca do profeta Joel,
"acontecerá que derramarei o meu Espírito
sobre toda a carne;
os vossos filhos e as vossas filhas profetizarão;
os vossos velhos serão instruídos por sonhos,
e os vossos jovens terão visões.
Derramarei também naqueles dias o meu Espírito
sobre os meus servos e as minhas servas.
E farei aparecer prodígios no céu e na terra,
sangue e fogo, e turbilhões de fumo.
O Sol converter-se-á em trevas,
e a Lua em sangue,
antes que venha o grande e terrível
dia do Senhor.
E acontecerá que todo
o que invocar o nome do
Senhor será salvo". |
Conforme narrado nos Atos dos Apóstolos, no dia de Pentecostes os
apóstolos e mais outros discípulos de Cristo estavam reunidos em
oração no Cenáculo. "De repente", dizem os Atos,
"veio do céu um ruído semelhante ao soprar de um impetuoso
vendaval e encheu toda a casa onde se achavam; e apareceram umas
como línguas de fogo, que se distribuíram e foram pousar sobre cada um
deles. Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar em outras
línguas, conforme o Espírito os impelia que falassem" (At. 2,2-4).
"Achavam-se então em Jerusalém homens piedosos de todas as nações
que há debaixo do céu. Ao se produzir o ruído, a multidão se
reuniu e estava confusa, pois cada qual os ouvia falar em sua
própria língua. Estupefatos e surpresos, estavam todos
assombrados e perplexos, dizendo entre si: `Que vem a ser
isto?'" (At. 2,5-7; 2,12). Pedro então se levanta e lhes diz:
"Homens da Judéia e habitantes todos de Jerusalém,
prestai ouvidos às minhas palavras.
(Hoje) se realiza a palavra do profeta Joel:
`Sucederá nos últimos dias,
diz o Senhor,
que derramarei o meu Espírito
sobre toda a carne.
Vosso filhos e vossas filhas hão de profetizar,
vossos jovens terão visões,
e vossos velhos hão de ter sonhos.
Em verdade, sobre meus servos
e sobre minhas servas
derramarei o meu Espírito.
E farei prodígios em cima no céu,
e sinais embaixo na terra.
O Sol se transformará em trevas
e a lua em sangue,
antes que venha o dia do Senhor,
o grandioso dia.
E todo aquele
que invocar o nome do Senhor
será salvo'. |
Depois desta passagem Joel fala de um dia e um tempo em que Deus
"juntará todas as gentes e as conduzirá ao vale de Josafá" para
um julgamento (Joel 3, 2). Josafá é um nome hebraico que significa
"Julgamento do Senhor". Assim se expressa o profeta:
"Publicai isto entre as nações",
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diz o Senhor por meio de Joel,
"preparai-vos para a guerra,
animai os valentes,
ponham-se em marcha
todos os homens de guerra.
Forjai espadas das relhas de vossos arados,
e lanças de ferro com vossos enxadões". |
"Levantem-se as nações
e vão ao vale de Josafá;
porque ali me sentarei para julgar
todas as nações em circuito.
Metei as foices ao trigo,
porque já está madura a messe". |
Finalmente, Joel conclui a profecia:
"E acontecerá naquele dia
que os montes destilarão doçura,
e os outeiros manarão leite,
e as águas correrão em todos os regatos de Judá;
e da casa do Senhor sairá uma fonte
que regará a torrente dos espinhos". |
"A Judéia será habitada eternamente,
e Jerusalém de geração em geração;
e eu lavarei o seu sangue,
que eu não tinha ainda lavado,
e o Senhor habitará para sempre em Sião". |
Com esta passagem encerra-se a profecia de Joel. Passamos agora a
palavra a Hugo de S. Vitor.
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