INTRODUÇÃO HISTÓRICA
À PÁGINA
SOBRE O CRISTIANISMO

- Primeira Parte -



01.

Para um mundo cada vez mais irreversivelmente comprometido com o progresso material em evidente detrimento e abandono das realidades eternas, a decisão de convocar o Concílio Vaticano II, vigésimo primeiro da série dos Concílios Ecumênicos, foi anunciada em 1959, no dia da festa da conversão do Apóstolo São Paulo. Tão repentina como a conversão de São Paulo foi também a convocação do Concílio Vaticano II. Nesta data Sua Santidade, o Papa João XXIII, estava na Basílica de São Paulo Fora dos Muros, junto ao local onde vinte séculos antes havia sido martirizado o apóstolo São Paulo. Junto com ele estavam diversos cardeais. Subitamente veio-lhe uma inspiração. Não nomeou nenhuma comissão para estudar previamente o assunto, não consultou nenhum especialista, não fêz perguntas a ninguém, nem estudou o problema longamente por si próprio. Naquele mesmo local, dali a poucos momentos, anunciou aos cardeais o seu firme propósito de convocar o Concílio Vaticano II.

João XXIII referiu-se várias vezes a este fato; prestes a iniciar-se o Concílio, ele afirmou:

"A idéia do Concílio não amadureceu
como fruto de prolongada consideração,
mas como o florir espontâneo
de uma inesperada primavera".

João XXIII
Alocução 9 agosto 59

"Consideramos inspiração do Altíssimo
a idéia de convocar
um Concílio Ecumênico,
que desde o início de nosso pontificado
se apresentou à nossa mente
como o florir de uma inesperada primavera".

Motu Proprio Supernu Dei Nutu
5 junho 1960

"A idéia mal surgiu em nossa mente
e logo a comunicamos com fraternal confiança
aos senhores cardeais,
lá na Basílica Ostiense
de São Paulo Fora dos Muros,
junto ao sepulcro do Apóstolo dos Gentios,
na festa comemorativa de sua conversão,
a 25 de janeiro de 1959".

Alocução de 20 junho 1962

A decisão de convocar o Concílio Ecumênico, portanto, não necessitou de tempo para amadurecer na alma do Pontífice. Surgiu, consumou-se e foi comunicada à Igreja em questão de poucos momentos. Muito diversa, entretanto, era a natureza dos motivos que levaram João XXIII a esta convocação. Os concílios ecumênicos nunca foram assembléias que se reunissem a intervalos regulares; todos os vinte concílios anteriores aos Vaticano II haviam sido convocados por motivos graves e excepcionais. É, portanto, uma questão importante saber que problemas João XXIII tinha em mente, tão graves e excepcionais, a ponto de fazê-lo julgar necessária a convocação de um concílio ecumênico.

O próprio João XXIII respondeu a esta pergunta no discurso que fêz aos cardeais naquele 25 de janeiro de 1959, ao anunciar pela primeira vez o Concílio. Não há melhor exposição do que suas próprias palavras:

"Se o bispo de Roma estende o seu olhar
sobre o mundo inteiro,
de cujo governo espiritual foi feito responsável
pela divina missão que lhe foi confiada,
que espetáculo triste não contempla
diante do abuso e do comprometimento
da liberdade humana que,
não conhecendo os céus abertos
e recusando-se à fé em Cristo Filho de Deus,
redentor do mundo e fundador da Santa Igreja,
volta-se todo em busca dos pretensos
bens da terra,
sob a tentação e a atração
das vantagens da ordem material
que o progresso da técnica moderna
engrandece e exalta.
Todo este progresso,
enquanto distrai o homem
da procura dos bens superiores,
debilita as energias do espírito,
com grave prejuízo
daquilo que constitui
a força de resistência da Igreja
e de seus filhos aos erros,
erros que,
no curso da história do Cristianismo,
sempre levaram à decadência espiritual e moral
e à ruína das nações.

Esta verificação desperta no coração
do humilde sacerdote
que a divina providência conduziu
a esta altura do Sumo Pontificado
uma resolução decidida
para a evocação de algumas formas antigas
de afirmações doutrinárias
e de sábias ordenações
da disciplina eclesiástica que,
na história da Igreja,
em épocas de renovação,
deram frutos de extraordinária eficácia
para a clareza do pensamento
e para o avivamento da chama
do fervor cristão.

Veneráveis irmãos e diletos filhos!

Pronunciamos diante de vós,
por certo tremendo um pouco de emoção,
mas ao mesmo tempo
com humilde resolução de propósito,
o nome e a proposta de celebração
de um Concílio Ecumênico
para a Igreja Universal".

Este texto é muito importante, porque mostra que João XXIII, ao ter convocado o Concílio Vaticano II, não estava pensando, pelo menos de modo principal, nem na unidade dos cristãos, nem na reforma litúrgica, nem em outros temas específicos. Ele estava na realidade aflito diante do triste espetáculo do homem contemporâneo,

"distraído da busca dos bens superiores,
envolvido com os bens da terra,
que o progresso da técnica
engrandece e exalta".

Não era a primeira vez que um Papa apontava a preocupação da Igreja perante um fato tão grave e para o qual a própria humanidade nele envolvida vinha perdendo, a cada geração, cada vez mais a capacidade de apreciá-lo em seu justo significado. Na sua mensagem de Natal de 1953, Pio XII havia abordado este problema com a mesma clareza de proporções que em 1959 levaria João XXIII a convocar o Concílio:

"O moderno progresso técnico,
em suas múltiplas aplicações,
com a absoluta confiança que infunde
e com as inexauríveis possibilidades
que promete,
estende diante dos olhos
do homem de nossa época
uma visão tão vasta
que para muitos passa a ser confundida
com o próprio infinito",

disse na época Pio XII.

"A conseqüência deste fato
é que os homens passam a atribuir
a estas realidades
uma autonomia impossível e,
não obstante isso,
esta suposta autonomia
passa a se constituir
no fundamento de uma concepção
de vida e do mundo
que consiste em:

1. Considerar como o mais alto
valor do homem e da vida humana
extrair o maior proveito possível
das forças e dos elementos naturais;

2. Fixar como objetivos preferenciais
a todas as demais atividades humanas
o desenvolvimento de novas tecnologias
de produção de bens materiais;

3. Colocar nestes processos
a perfeição da cultura
e da felicidade terrena.

Qualquer um poderá, porém,
ver que um mundo conduzido desta maneira
não pode mais dizer-se
iluminado por aquela luz,
nem possuído daquela vida
que o Verbo de Deus,
esplendor da glória divina,
fazendo-se homem,
veio trazer aos homens".

Alocução de Natal 1953

No Natal de 1961 João XXIII retomou novamente o mesmo assunto e, na Bula Humanae Salutis voltou a expor as causas da convocação do Concílio Ecumênico, dizendo que o que o preocupava era

"o gravíssimo estado
de indigência espiritual da humanidade,
por cujos bens ela já nem anseia
senão muito debilmente,
enfraquecida pela procura
quase exclusiva dos gozos terrenos
que o progresso põe,
com grande facilidade,
ao alcance de todos".

No pensamento de João XXIII, esta foi a preocupação fundamental por trás de seu propósito de convocar o Vaticano II. Resta, porém, perguntar ainda o que ele esperava concretamente que o Vaticano II fizesse para responder a tão grave problema.

João XXIII quis também ser claro quanto ao que pensava a este respeito. Repetidas vezes, em vários pronunciamentos que antecederam o Concílio, disse o que esperava que o Concílio fizesse. No dia 14 de novembro de 1960, por exemplo, João XXIII explicava que o Concílio não estava sendo convocado para discutir algum ou alguns pontos específicos da doutrina cristã, como havia sido o caso dos vinte concílios anteriores. Ao contrário, a problemática do mundo contemporâneo era tal que exigia de um Concílio Ecumênico uma tarefa que não havia sido exigida dos anteriores:

"Na época moderna",

disse então João XXIII,

"num mundo de fisionomia
profundamente mudada,
no meio das situações e dos perigos
da procura quase exclusiva
dos bens materiais,
no esquecimento
ou no enfraquecimento
dos princípios da ordem espiritual
e sobrenatural
que caracterizavam a penetração
e a extensão da civilização cristã
através dos séculos,
mais do que tal ou tal ponto de doutrina,
trata-se de repor em todo o seu valor
e em toda a sua luz
a substância do pensamento
e da vida humana e cristã,
de que a Igreja é depositária
e mestra pelos séculos".

Segundo esta passagem, pois, o objetivo do Concílio não seria discutir um ou outro ponto de doutrina, mas sim

"repor em toda a sua luz
a substância do pensamento
e da vida cristã".

02.

O Concílio Ecumênico Vaticano II foi o vigésimo primeiro dos Concílios Ecumênicos que se celebraram na História da Igreja. Antes dele houve, pois, outros vinte, cuja série se inicia no século IV, mais precisamente no ano 325 DC, com o primeiro Concílio Ecumênico celebrado na Ásia, na cidade de Nicéia, onde atualmente fica a Turquia.

03.

Os Concílios Ecumênicos são, em princípio, reuniões de todos os bispos da Igreja para tratar de problemas de relevância para o Cristianismo. A autoridade excepcional que uma reunião como esta tem dentro da Igreja, porém, provém das próprias palavras de Jesus com que ele se dirigiu primeiro a São Pedro, e depois aos seus apóstolos em conjunto.

De fato, em Mateus 16, 18-19 Jesus havia dito a São Pedro:

"Tu és Pedro,
e sobre esta pedra edificarei
a minha Igreja,
e as portas do inferno
não prevalecerão contra ela.
Dar-te-ei as chaves do Reino dos Céus,
e o que ligares na terra
ficará ligado nos céus;
e o que desligares na terra
será desligado nos céus".

Com estas palavras, Jesus prometeu que ratificaria as decisões de Pedro, após a sua morte e a fundação da Igreja como sendo suas próprias decisões. O que ele ligasse na terra, seria ligado no céu, e o que ele desligasse na terra, seria desligado no céu.

Mais tarde, falando aos Apóstolos, Jesus repetiu esta mesma expressão, dando aos Apóstolos, e neles à Igreja, o poder de ligar e desligar. Disse ele:

"Tudo o que ligardes na terra,
será ligado no céu;
e tudo o que desligardes na terra,
será desligado no céu".

Mt. 18, 18

Desde o início do Cristianismo este poder de ligar e desligar foi utilizado pela Igreja. Logo nos primeiros anos de sua existência, surgiu uma controvérsia doutrinal entre os cristãos que vinham do paganismo e os cristãos que vinham do Judaísmo. Dizem os Atos dos Apóstolos então que

"Reuniram-se os Apóstolos
e os presbíteros
para examinar esta questão".

Atos 15, 6

Intervieram na discussão primeiro São Pedro, depois Barnabé e São Paulo, e finalmente São Tiago, citando uma controvérsia que havia tido com São Pedro. A decisão final constou de uma carta circular em que se lia que a solução apresentada era o que

"havia parecido bem ao Espírito Santo
e aos Apóstolos e presbíteros
reunidos".

Atos 15, 28

Ainda hoje lê-se no Código de Direito Canônico, bastante em conformidade com as duas passagens citadas de Jesus que, por instituição divina, a suprema autoridade da Igreja está no Romano Pontífice,

"ao qual pertence o múnus
concedido pelo Senhor
de forma singular a Pedro,
o primeiro dos Apóstolos,
para ser transmitido
aos seus sucessores",

Cânon 331

e também no colégio de todos os bispos da Igreja em união com o Sumo Pontífice (Cânon 336).

Um Concílio Ecumênico é uma das formas em que pode se expressar a suprema autoridade da Igreja que reside no colégio de todos os bispos da Igreja em união com o Sumo Pontífice. Não é necessário que estejam presentes de fato todos os bispos do mundo, coisa que até hoje nunca foi possível de acontecer, embora nos dois últimos concílios tenha-se chegado bem perto disto. Basta que os que estejam presentes constituam uma representação qualificada da Igreja universal, capaz de interpretar o pensamento e a vontade de todo o corpo episcopal, sob a presidência efetiva do Sumo Pontífice. Nestas condições, o que esta assembléia decide goza do poder de ligar e desligar no céu e na terra concedido por Jesus a Pedro e aos Apóstolos.

04.

A dificuldade de reunir um Concílio Ecumênico fêz com que estas assembléias fossem raras na Igreja. De fato, em 20 séculos de história, apenas houve 21 Concílios Ecumênicos, descontada aquela primeira reunião dos Apóstolos em Jerusalém citada no décimo quinto de Atos, a qual geralmente não aparece na lista dos Concílios. No mais das vezes, a suprema autoridade da Igreja tem se manifestado através das decisões do Sumo Pontífice. Os Concílios Ecumênicos são convocados apenas para a resolução de problemas de excepcional gravidade ou transcendência.

05.

Examinando a lista dos Concílios Ecumênicos e dos problemas que eles foram chamados a resolver, podemos agrupá-los em três colunas, em ordem cronológica, conforme um quadro em anexo. Cada coluna constitui uma época em que os Concílios celebrados tiveram importantes características em comum.

CONCÍLIOS ECUMÊNICOS DA IGREJA

Entre 325 DC e 870 DC Entre 1123 DC e 1563 DC Séculos XIX e XX
1. Nicéia
2. Constantinopla I
3. Éfeso
4. Calcedônia
5. Constantinopla II
6. Constantinopla III
7. Nicéia II
8. Constantinopla IV




9. Latrão I
10.Latrão II
11. Latrão III
12. Latrão IV
13. Lião I
14. Lião II
15. Viena
...............
16. Constança
17. Florença
18. Latrão V
19. Trento



20. Vaticano I
(em 1870)



21. Vaticano II
(de 1962
a 1965)



06.

Nos primeiros três séculos da história do Cristianismo não foi celebrado nenhum concílio, e o motivo para isto é muito simples.

No ano 64 da era cristã, trinta anos aproximadamente após a morte de Cristo, Nero, imperador romano, incendiou a cidade de Roma e, para não ser acusado pela população, colocou a culpa nos cristãos.

Os cristãos já estavam em uma situação juridicamente delicada dentro do Império Romano, pois o Imperador era oficialmente adorado por meio de ritos religiosos, coisa que qualquer cristão teria que se recusar a fazer. Juridicamente, portanto, ele poderia ser condenado à morte por ateísmo.

Ademais, segundo um relato de Eusébio de Cesaréia, que no século IV foi o primeiro homem que escreveu uma história da Igreja, os apóstolos também estavam pregando a divindade de Cristo sem terem pedido licença prévia ao Senado Romano, contra o que prescrevia uma antiga lei.

Diz, de fato, Eusébio de Cesaréia, que Pilatos, após a morte de Cristo,

"havia dado conhecimento
ao Imperador Tibério
de tudo quanto corria de boca em boca
por toda a Palestina referente
à ressurreição de nosso Salvador Jesus
de entre os mortos".

Hist. Ecl. II, 2, 1

"Inteirou-o também de seus milagres
e de que o povo já acreditava
que ele era Deus
porque depois de sua morte
havia ressuscitado de entre os mortos.
Diz-se que Tibério
levou o assunto ao Senado".

H.E. II, 2, 6

Porém o Senado

"recusou-se a tomar conhecimento
do assunto,
aparentemente porque não o havia
aprovado previamente,
pois uma antiga lei prescrevia que,
entre os romanos,
ninguém fosse divinizado
se não fosse mediante voto
e por decreto do Senado".

H.E. II, 2, 2

"Tibério, porém,
conservou sua primeira opinião
e não tramou nada
contra a doutrina de Cristo".

H.E. II, 2, 3

"Ao contrário,
persistiu em sua declaração
e ameaçou de morte
aos acusadores dos cristãos.
A Providência havia disposto
colocar isto no ânimo do Imperador
para que a doutrina do Evangelho
tivesse um começo livre de obstáculos
e se propagasse por toda a terra".

H.E. II, 2, 6

Este começo livre de obstáculos para a propagação do Evangelho terminou, porém, no ano 64 com a perseguição desencadeada por Nero aos cristãos. Daí até o ano 313, em que o Imperador Constantino concedeu liberdade de culto aos cristãos, estes viveram permanentemente fora da lei e, caso tivesse havido necessidade, provavelmente não teria sido possível celebrar nenhum Concílio Ecumênico.

07.

O primeiro Concílio Ecumênico, pois, somente foi convocado no ano 325, doze anos após a liberddade de culto concedida por Constantino aos cristãos.

Daí até o ano 870 DC temos a primeira série de Concílios Ecumênicos que são

1. O Primeiro Concílio de Nicéia;
2. o Primeiro Concílio de Constantinopla;
3. o Primeiro Concílio de Éfeso;
4. o Concílio de Calcedônia;
5. o Segundo Concílio de Constantinopla;
6. o Terceiro Concílio de Constantinopla;
7. o Segundo Concílio de Nicéia;
8. o Quarto Concílio de Constantinopla.

08.

A segunda série de Concílios Ecumênicos se inicia no ano 1123 DC e vai até o ano 1563.

São eles:

9. o Primeiro Concílio de Latrão;
10. o Segundo Concílio de Latrão;
11. o Terceiro Concílio de Latrão;
12. o Quarto Concílio de Latrão;
13. o Primeiro Concílio de Lião;
14. o Segundo Concílio de Lião;
15. o Concílio de Viena;
16. o Concílio de Constança;
17. o Concílio de Florença;
18. o Quinto Concílio de Latrão;
19. o Concílio de Trento.

09.

Finalmente, nos séculos 19 e 20 temos os dois últimos Concílios:

20. o Concílio Vaticano Primeiro,
no ano de 1870;
21. o Concílio Vaticano Segundo,
que durou de 1962 a 1965.

10.

O motivo de terem sido aqui divididos os 21 Concílios Ecumênicos em três colunas deveu-se ao fato de que em cada uma destas colunas estes concílios apresentarem muita coisa em comum, principalmente o tipo de problema devido aos quais tais Concílios foram convocados.

11.

Pode-se notar, por exemplo, que os oito primeiros Concílios foram celebrados todos em cidades do Oriente do Império Romano, enquanto que os Concílios de 9 a 19 foram celebrados em cidades do Ocidente.

Ademais, as atas dos oito primeiros Concílios estão escritas em língua grega, enquanto que as atas dos onze seguintes foram redigidas em Latim, com exceção do Décimo Sétimo, em que além do Latim foram usadas também outras línguas como o Armênio, o Árabe, o Copta e outras.

Só esta unidade geográfica e lingüística dentro de cada um destes dois blocos é suficiente para mostrar que devemos estar tratando com dois contextos bem distintos.

Na terceira coluna temos os dois últimos e recentes Concílios, celebrados ambos na basílica do Vaticano.

12.

Mas, ademais, dissemos que estes grupos de Concílios têm em comum também o gênero de problema devido aos quais eles foram convocados.

13.

Durante os três primeiros séculos não houve Concílios Ecumênicos na Igreja devido às perseguições movidas contra os cristãos. Este era, nesta época, o principal problema enfrentado pelo Cristianismo.

14.

Na época em que os oito primeiros Concílios Ecumênicos foram celebrados em Grego e no Oriente, os problemas fundamentais que estavam motivando suas convocações foram todos eles problemas de doutrina.

A causa de existirem estes problemas de doutrina, tão graves que necessitaram a intervenção constante de Concílios Ecumênicos remonta, em última análise, a um evento ocorrido cerca de 350 anos antes do advento do Cristianismo. Este evento foi a conquista do mundo oriental da época, isto é, Grécia, Ásia Menor, Egito, Arábia, Pérsia, pelo rei da Macedônia Alexandre o Grande.

15.

A Macedônia era a região montanhosa situada ao norte da Grécia. Nos 150 anos antes do nascimento de Alexandre o Grande a Grécia tinha conhecido um desenvolvimento político, artístico, cultural e filosófico sem precedentes em toda a história da humanidade.

A democracia desenvolveu-se na cidade de Atenas, a principal da Grécia, a partir do ano 600 AC, aproximadamente. Simultaneamente com a democracia, entre os anos 500 e 400 AC, esta cidade tornou-se o centro de um império marítimo comercial no Mediterrâneo que lhe trouxe uma riqueza com que ela jamais havia sonhado.

Paralelamente a esta riqueza, houve um desenvolvimento cultural em Atenas que não teve paralelo no mundo antigo em nenhum local onde havia surgido prosperidade econômica semelhante.

Desenvolveram-se as artes em geral, e o teatro em particular, para o qual foram escritas muitas obras primas, freqüentissimamente relacionadas com os problemas que os cidadãos atenienses enfrentavam na vida real. A freqüência a estes teatros era muito grande, e eles tomaram um papel semelhante, na época, à televisão dos tempos modernos.

Desenvolveu-se a literatura e, em particular, obras históricas que combinavam a beleza literária com a precisão e a abrangência do relato. Desenvolveram-se também os esportes, com a abertura de um sem número de ginásios por todo o canto e a instituição dos Jogos Olímpicos de quatro em quatro anos, o ensino da oratória. Quanto ao movimento filosófico, que havia se iniciado um século antes nas cidades da orla marítima ocidental da atual Turquia e no sul da Itália, chamado pela prosperidade ateniense, acabou também se transferindo para lá. Nesta época o filósofo Anaxágoras, que passou para a história como um profundíssimo conhecedor da natureza, vindo do Oriente, visitou Atenas durante 30 anos. Pouco depois Parmênides e Zenão de Eléia, filósofos italianos, também passaram por esta cidade.

Logo em seguida a estas visitas, floresceu o primeiro grande filósofo ateniense, Sócrates, que teve como discípulo Platão, o qual fundou uma escola de Filosofia na cidade de Atenas, chamada a Academia, na qual estudou, sob a orientação do próprio Platão, o filósofo Aristóteles. Após a morte de Platão, Aristóteles fundou outra escola de Filosofia em Atenas. Ambas estas escolas sobreviveram séculos à morte dos fundadores. Foi nesta época, na primeira metade dos anos 300 AC, que Aristóteles foi chamado durante algum tempo a abandonar a cidade de Atenas para dirigir-se às montanhas no norte, mais precisamente na Macedônia, para ser o preceptor particular do príncipe Alexandre da Macedônia.

O príncipe Alexandre sucedeu no trono ao seu pai, o rei Filipe da Macedônia, quando da morte dele. Nesta época terminou o preceptorado de Aristóteles sobre Alexandre, voltando o filósofo para Atenas.

Quanto a Alexandre, deu este livre curso ao seu gênio militar e conquistou toda a Grécia que ficava ao sul da Macedônia e depois todo o mundo oriental, desde o Egito até à Pérsia, chegando aos confins da Índia.

Então, ainda jovem, Alexandre morreu devido a uma febre repentina e seu Império dividiu-se entre seus principais generais.

Todo o mundo oriental ficou submetido, pois, à autoridade de reis greco macedônios até que, quase às vésperas do nascimento de Cristo, o Império Romano por sua vez os conquistasse e anexasse.

16.

Mas esta conquista do Oriente por parte dos generais gregos teve grandes conseqüências culturais. Todo o mundo oriental começou aos poucos a falar grego como língua principal e a absorver a cultura grega, superior de longe a todas as demais da época. Começaram a surgir teatros em toda a parte, ginásios, escolas de oratória e também a se difundir o gosto pela Filosofia. Em Atenas surgiram duas outras correntes filológicas além do Platonismo e do Aristotelismo já existentes, as quais receberam o nome de estoicismo e epicurismo, cuja influência se estendeu também por todo o oriente. Todas as pessoas de certa cultura tinham noções superficiais dos rudimentos destas quatro correntes filológicas. Isto, aliado ao contexto geral da cultura grega que se espalhou neste processo de helenização do mundo oriental, acabou resultando naquilo que os verdadeiros filósofos mais tinham receio.

Platão, de fato, quando traçou a formação que deveria ter um discípulo de sua escola para que se tornasse um filósofo, estabeleceu um programa que começava aos setes anos de idade e se estendia até os cinqüenta e cinco. E afirmou que, neste programa, somente poderia começar a aprender Filosofia propriamente dita quem já tivesse completado pelo menos trinta anos de idade, tivesse antes disso estudado profundamente e durante anos matemática e geometria, tivesse dado demonstrações claras de amar a verdade e de que, tendo sido educado propositalmente em todas as virtudes, não temeria a morte para praticá-las. Caso contrário, diz Platão em sua obra `A República', a obra em que ele justamente descreve a formação do filósofo, as pessoas não levarão a Filosofia a sério e, em vez de usá-la para buscarem a verdade, farão dela apenas uma brincadeira ou um simples jogo de palavras.

Coisa semelhante também dizia Aristóteles, que deixou escrito no VIº Livro da Ética a Nicômaco que é impossível que os jovens atinjam com a mente a sabedoria filosófica, ainda que o declarem com a boca. Antes de iniciarem o estudo da Filosofia, continua Aristóteles, devem ser instruídos na Lógica, na Matemática e nas Ciências da Natureza durante longos anos. Depois, devem ainda ser instruídos na teoria e na prática das coisas morais para libertarem a sua alma das paixões, só então adquirindo um intelecto robusto para poderem passar ao estudo da Sabedoria.

Tais conselhos, porém, não foram ouvidos, e em todo o Oriente por onde se propagou a cultura grega, juntamente com a sua literatura e a sua arte espalhou-se o gosto por uma Filosofia extremamente superficial, embora baseada na obra dos grandes mestres. Com o tempo isto produziu exatamente os efeitos negativos que Platão havia anunciado, uma mentalidade superficial que fêz da Filosofia não mais do que um jogo de palavras.

E, de fato, assim que os Apóstolos deixaram a Palestina no cumprimento da ordem de Jesus pela qual deveriam levar o Evangelho a todos os povos da Terra, perceberam que havia alguma coisa errada na cultura grega que dominava o oriente do Império Romano. Diante do anúncio do Evangelho os gregos freqüentemente respondiam com argumentações filosóficas que provocavam uma interminável discussão que raramente chegava a alguma conclusão. Já desde estes primeiros tempos os Apóstolos tinham percebido que era muito diferente anunciar o Evangelho na Palestina e na Grécia. Na Primeira Epístola aos Coríntios, os habitantes da cidade de Corinto, importante porto comercial da Grécia, São Paulo escreveu o seguinte:

"Os judeus exigem milagres,
e os gregos buscam a sabedoria,
mas nós pregamos a Cristo crucificado,
o que é um escândalo para os judeus
e uma loucura para os gregos.

Ninguém se engane a si mesmo;
a sabedoria deste mundo
é loucura diante de Deus.

Onde está o sábio?
Onde está o doutor?
Onde está
o indagador deste século?

Irmãos,
Cristo me enviou
para pregar o Evangelho,
mas não com a sabedoria das palavras.

Quando fui ter convosco,
anunciei o testemunho de Cristo
não com sublimidade de estilo
ou de sabedoria.

Estive entre vós com franqueza,
e minhas pregações não consistiram
em palavras persuasivas
de humana sabedoria,
mas na manifestação do Espírito
e da virtude de Deus.

Não obstante,
é a sabedoria que nós pregamos
entre os perfeitos".

I Cor. 1, 2, 3

Foi neste contexto que teve origem a problemática que resultou na convocação dos oito primeiros Concílio Ecumênicos celebrados pela Igreja no Oriente.

Assim que terminaram as perseguições aos cristãos, iniciaram-se no Oriente as controvérsias sobre a doutrina cristã. Estas controvérsias tinham uma repercussão tão grave que a Igreja e o próprio Imperador tiveram que intervir com a celebração destes oito Concílios à medida em que eram levantadas as diversas questões de doutrina. Assim, os primeiros Concílios de Nicéia e de Constantinopla foram convocados para definir a doutrina da Santíssima Trindade. Os quatro seguintes, Éfeso, Calcedônia e Segundo e Terceiro de Constantinopla foram convocados para definirem a doutrina da Encarnação do Verbo. O Sétimo Concílio tratou da questão do uso das imagens no culto cristão.

O Oitavo Concílio Ecumênico teve sua origem devido a uma sucessão irregular do bispo de Constantinopla em que interveio o Romano Pontífice e que acabou se transformando em uma controvérsia de doutrina. Foi então convocado o Quarto Concílio de Constantinopla cujas decisões, porém, não foram reconhecidas pelos orientais. A partir daí iniciou-se a separação entre a Igreja Católica Romana e a Igreja Católica Ortodoxa. Até hoje a Igreja Ortodoxa, predominante no Oriente, apenas reconhece como Concílios Ecumênicos os sete primeiros Concílios.

17.

Entre o Oitavo e o Nono Concílio Ecumênico há quase três séculos de distância. A distância no tempo é muito grande; muito maior, porém, é a distância no contexto que motivou os oito primeiros Concílios e os onze que se seguiram, do Primeiro Concílio de Latrão até o Concílio de Trento.

Já dissemos que os oito primeiros Concílios foram celebrados no Oriente e suas decisões promulgadas em língua Grega, enquanto que os onze seguintes foram celebrados no Ocidente e promulgados em língua Latina.

Mas há ainda outra diferença que é ainda mais fundamental. Os oito primeiros Concílios foram convocados com o principal objetivo de resolver algum problema de doutrina, embora neles fossem examinados também outros tipos de problemas.

Já os Concílios desde o Nono até o Décimo Nono tem em comum o fato de terem sido todos eles convocados para examinar o problema da Reforma da Igreja, embora nos decretos convocatórios, variando de acordo com a época e as circunstâncias, além destes objetivos, fossem citados diversos outros. Foram Concílios que trataram como principal problema a disciplina da Igreja, embora também tivessem abordado importantes problemas de doutrina. Cabe porém agora perguntar quais eram estes problemas disciplinares que mereceram tão grande número de Concílios e ao que eles se deveram.

18.

Na época do Imperador Constantino, que no ano 313 concedeu a liberdade de culto aos cristãos, o Império Romano dominava praticamente toda a Europa a oeste dos rios Reno e Danúbio, todo o norte da África e o oriente Médio.

Durante o seu governo Constantino teve a idéia de fundar uma nova capital para o Império Romano em uma cidade que ele próprio mandou construir na região oriental do Império Romano, em um local estratégico que ele havia conhecido pessoalmente alguns anos antes por ocasião de uma batalha. Esta cidade foi chamada com o nome de Constantinopla.

Cerca de meio século após a fundação de Constantinopla, fundação que data do ano 329 DC, começaram a surgir sérios problemas na fronteira do Império ao longo dos rios Reno e Danúbio.

O território a oeste destes rios pertencia ao Império Romano. O território situado do lado da margem leste, isto é, o que hoje é conhecido como a Europa Oriental, era povoado por tribos então conhecidas pelos romanos como bárbaros.

Havia muitas tribos entre os bárbaros, cada uma ocupando determinados territórios a leste dos rios Reno e Danúbio, nas regiões onde atualmente ficam a Alemanha, a Polônia, a Tchecoslováquia, a Hungria, a Romênia, a Ucrânia e o Oeste da Rússia. Entre estas tribos havia, dentre outras, a tribo dos Anglos, a dos Saxões, a dos Francos, a dos Lombardos, a dos Vândalos, a dos Godos. Os Godos que habitavam a região da Romênia eram chamados de Visigodos, por estarem a oeste dos Godos que habitavam a região da Rússia, os quais, por sua vez, por estarem a leste dos Visigodos, foram chamados de Ostrogodos.

Todas estas tribos de bárbaros, por terem habitado durante séculos junto à fronteira com o Império Romano, tinham adquirido muitos dos costumes mais civilizados dos romanos, serviam freqüentemente como soldados nos exércitos romanos de fronteira e atravessavam estas fronteiras do Império com uma certa regularidade e pacificamente. Muitos tinham até estabelecido permanentemente residência em território romano.

Ora, aconteceu que, cerca de quarenta anos após a fundação e transferência da capital do Império Romano para Constantinopla, surgiu, vinda das regiões centrais da Ásia, uma outra tribo de bárbaros denominados Hunos, que nada tinham em comum com os bárbaros semi civilizados da fronteira com o Império Romano.

Em sua marcha para o Oeste, entre eles e o Império Romano, os Hunos encontraram estes bárbaros que habitavam as margens orientais dos rios Reno e Danúbio. O terror que os Hunos espalharam entre os bárbaros foi tal que os Visigodos enviaram uma mensagem ao Imperador em Constantinopla pedindo permissão para não um ou outro visigodo, como até então se fazia, mas toda a nação dos visigodos atravessarem a fronteira do Império Romano e se estabelecerem dentro dos seus limites.

O Imperador Valente concordou com o pedido, e uma nação inteira de bárbaros assim atravessou a fronteira e se estabeleceu pela primeira vez no interior do Império.

Pouco tempo depois, entretanto, estes visigodos, descontentes com o modo como haviam sido recebidos na região, começaram a saquear as províncias do Império Romano vizinhas ao território em que haviam se estabelecido. Em resposta, o Imperador Valente conduziu um exército contra os mesmos e, além de perder a guerra, morreu em batalha.

A partir daí, pressionados pelos Hunos, as demais tropas bárbaras começaram a invadir o Império Romano sem pedir permissão.

No século seguinte, não bastassem as invasões dos bárbaros, também os Hunos acabaram invadindo e devastando o Império.

Com exceção dos Hunos, que depois de semearem o terror, acabaram voltando espontaneamente para as regiões da Ásia de onde tinham vindo, o Imperador sediado em Constantinopla não tinha mais poder militar suficiente para expulsar os bárbaros para fora do Império. Em vez disso, aceitando a situação, nomeou-os seus "auxiliares perpétuos". Desta maneira, embora oficialmente o Império Romano continuasse com a mesma extensão que possuía na época do início do Cristianismo, de fato o Imperador em Constantinopla reinava apenas sobre a região oriental do Império, que com o tempo passou a ser conhecida como Império Bizantino, enquanto que no ocidente surgiram um grande número de reinos bárbaros.

Os francos se instalaram na região da Gália, que com isso mais tarde passou a ser conhecida como França. Os Anglos se instalaram na Britânia, que com isso mais tarde passou a ser conhecida como Inglaterra. Os Lombardos ocuparam o norte da Itália, na região atualmente conhecida como Lombardia. Os Vândalos ficaram com a Espanha.

A Itália foi primeiramente invadida pelos visigodos, que saquearam a cidade de Roma. Este saque de Roma pelos visigodos foi o fato que deu a Santo Agostinho a ocasião de escrever a obra "A Cidade de Deus". Nesta época Agostinho era bispo no norte da África, e na "Cidade de Deus" ele procurou mostrar que toda a confusão que a Europa estava vivendo não era fruto de uma vingança dos deuses pagãos da antiga Roma irados pela difusão do Cristianismo.

Mas em seguida a isto os Visigodos abandonaram a Itália e invadiram a Espanha, onde haviam se estabelecido os Vândalos. Estes Vândalos foram expulsos da Espanha pelos Visigodos e passaram para o norte da África. Quando Santo Agostinho morreu, a cidade em que ele era bispo estava sitiada por uma tribo de Vândalos, e foi tomada logo após o seu falecimento.

Veio então a vez dos Hunos, que ainda não haviam voltado para a Ásia, invadirem a Itália. Chegaram até as proximidades da cidade de Roma, que pretendiam destruir, quando o Rei Átila se encontrou em um riacho nas proximidades de Roma com o Papa São Leão Magno. Em uma conversa da qual nunca se soube o que foi tratado, Átila desistiu de destruir a cidade, deu meia volta e retornou para o norte.

Poucos anos depois disso os Vândalos, que já dominavam a África do norte, atravessaram o mar mediterrâneo e durante duas semanas saquearam Roma.

Logo em seguida a Itália foi novamente invadida pelos Ostrogodos, que desta vez chegaram para ficar.

19.

Os reinos bárbaros iam assim aos poucos se estabelecendo e um novo mapa da Europa ia se formando.

Por volta do ano 750 DC o Rei dos Francos, Pepino o Breve, cujos domínios já tinham se expandido para além da França, doou ao Papa um extenso território na Itália Central, conhecido como Patrimônio de São Pedro que mais tarde transformou-se nos Estados Pontifícios e ficou sob a soberania temporal dos Sumos Pontífices até o ano de 1870, quando a Santa Sé perdeu os Estados Pontifícios para o movimento da Unificação Italiana.

20.

O filho de Pepino o Breve foi o famoso Carlos Magno, o maior gênio militar da Idade Média. Em quase cinqüenta anos de reinado conduziu mais de cinqüenta expedições militares que transformaram o Reino dos Francos em um grande Império. Este Império acabou por abranger praticamente todos os territórios correspondentes à região ocidental do antigo Império Romano.

Vendo que a divisão do Império Romano estava consumada de fato, e que o Imperador em Constantinopla apenas controlava a região oriental do antigo Império, na noite de Natal do ano 800 DC o Papa Leão III coroou Carlos Magno com o título de "Imperador dos Romanos".

Com isto passavam a existir dois Impérios "Romanos". Um deles, no oriente, com sede em Constantinopla, conhecido como Império Bizantino. O outro, no ocidente, mais conhecido como Império Carolíngeo. Este último tinha sede não em Roma, mas em Aix-la-Chapelle, no norte da França, embora Carlos Magno viajasse tanto que para muitos mais correto teria sido dizer-se que a sede do Império era itinerante.

A época em que viveu Carlos Magno foi uma época de reconstrução do que havia sido devastado no ocidente pelas invasões bárbaras. Foram construídas novas estradas, cidades, postos militares, igrejas, mosteiros e escolas.

21.

Ao morrer Carlos Magno, porém, ao contrário do Império Bizantino, que subsistiu durante quase mil anos, o Império Carolíngeo se dividiu entre os seus três filhos.

Um dos filhos ficou com a região ocidental do Império Carolíngeo, que se transformou com o tempo na França.

Outro ficou com a região onde atualmente se situa a Alemanha, e um terceiro ficou com a região intermediária entre a Alemanha e a França, a qual não prosperou e com o tempo acabou sendo absorvida pelas duas primeiras.

22.

Na Germânia, a região mais oriental em que se dividiu o Império Carolíngeo, durante algum tempo o poder foi hereditário. Mas por volta do ano 900 DC a escolha do rei passou a ser feita por eleição dos governantes dos ducados e condados em que se dividiu o reino da Germânia. Eram estes duques e condes que elegiam o sucessor de cada rei.

Mas por volta do ano 950 DC o Papa necessitou do auxílio militar do rei da Germânia. Prestado o auxílio, em reconhecimento o Papa coroou o rei da Germânia como Imperador do Sacro Império Romano Germânico, nome com que passou a ser conhecido o Reino da Germânia.

O Sacro Império Romano Germânico tinha características singulares entre todos os estados da Europa. Durou até à época moderna, tendo sido dissolvido nos anos 1800 por Napoleão Bonaparte. Era o maior de todos os reinos europeus em extensão territorial. Compreendia em seu território praticamente todo o centro e o leste da Europa e mais o norte e o centro da Itália. Era considerado como o sucessor do antigo Império Romano, depois do Império Carolíngeo que já havia deixado de existir. Ademais, ao contrário dos outros reinos europeus, seu Imperador era eleito, no início por todos os governantes dos diversos principados em que estava dividido, posteriormente apenas por sete deles, conhecidos como os príncipes eleitores.

23.

O problema, porém, relacionado com esta situação política da Europa e que motivou a série dos Concílios desde o nono ao décimo nono, isto é, desde o Primeiro de Latrão até o de Trento, surgiu quando, após a morte de Carlos Magno e a divisão do Império Carolíngeo, uma nova leva de bárbaros, muito mais selvagem do que os bárbaros anteriores, começou a assolar a Europa de modo quase que permanente.

Diante da ferocidade destes bárbaros, os soberanos destes reinos europeus, politica e militarmente muito mais fracos do que o antigo Imperador Carlos Magno, não foram capazes de oferecer nem de organizar resistência.

Os grandes proprietários de terras tiveram que se defender por conta própria.

Os camponeses e os pequenos proprietários de terra, vendo que não podiam depender dos reis para a manutenção de sua segurança constantemente ameaçada, acabaram por se associarem aos grandes proprietários, jurando-lhes fidelidade e tornando-se seus súditos. As pessoas comuns, portanto, acabaram dependendo em tudo dos senhores de terras que se tornaram os verdadeiros reis em seus próprios domínios. Embora nominalmente os grandes proprietários estivessem sujeitos ao rei, de fato não os obedeciam. Quanto às pessoas comuns, embora estas também estivessem nominalmente sujeitas ao rei, de fato obedeciam aos senhores das terras, terras que na época eram chamados de feudos. Daí o nome dado a esta época e a esta organização civil de feudalismo.

24.

O sistema feudal foi um grande retrocesso para a civilização. Cada feudo vivia praticamente isolado dos demais, e em cada um deles a vontade do senhor feudal era soberana em todas as questões. As comunicações se tornaram difíceis, as escolas escassearam quando não desapareceram por completo e a insegurança devido às incursões dos bárbaros e às guerras entre os feudos se tornou geral. As trevas cobriram a região ocidental da Europa.

25.

Piores, porém, foram as conseqüências que este estado de coisas teve para a vida da Igreja.

Na Igreja do tempo dos oito primeiros Concílios Ecumênicos os bispos eram eleitos pelo próprio clero local e ordenados pelos bispos da cidade mais importante da região, chamado de bispo metropolita.

Na época, porém, em que se instalou o Reino dos Francos no ocidente da Europa os soberanos, percebendo que uma aliança com o episcopado era geralmente uma garantia para a estabilidade dos seus governos, começaram a sugerir qual fosse o seu candidato favorito sem, porém, intervir nas eleições.

Gradualmente, porém, esta prática foi criando raízes e se degenerando, graças ao clima propício que o sistema feudal oferecia para tanto.

Algumas gerações mais tarde o bispo metropolita apenas poderia ordenar o candidato escolhido se a escolha fosse aprovada pelo soberano.

Num estágio posterior o soberano passou a escolher diretamente o candidato ao episcopado, cabendo ao clero apenas o direito de confirmar a escolha feita.

Em seguida, já em pleno regime feudal, o soberano ou o senhor feudal passou a considerar que as dioceses e as abadias eram propriedades dos feudos e que, portanto, depois que o bispo ordenasse o candidato ao episcopado, caberia ao senhor feudal celebrar a cerimônia de tomada de posse da abadia ou da diocese.

Num estágio posterior, visto que de modo geral as pessoas já consideravam como coisa certa que as dioceses e abadias fossem propriedades do senhor feudal, os senhores feudais passaram a exigir dos bispos e dos abades não apenas que se submetessem à cerimônia da investidura, mas também que prestassem juramento de fidelidade, obediência e vassalagem ao senhor feudal.

Mais adiante, como bispos e abades já eram vassalos do senhor feudal, o senhor feudal passou a exigir o direito não só de nomeá-los e de empossá-los, como também de destituí-los do cargo quando julgasse ter razões para tanto. O destituído não deixava com isto de ser bispo, coisa que em nenhuma época nenhum senhor feudal chegou ao ponto de imaginar que pudesse também ter o poder de o fazer, mas, se não perdia o caráter impresso pelo sacramento, o bispo podia perder toda a jurisdição sobre a diocese, que mesmo não destituído já não era dele em nenhum momento, e com isto tornar-se bispo de ninguém.

Chegados a este ponto, fica difícil imaginar como se poderia prosseguir adiante na seqüência deste processo, e o que mais haveria que pudesse ainda ser exigido pelos senhores feudais. O fato, porém, é que ele não parou aí. Já que estes bispos eram vassalos do senhor feudal, e eram também titulares de uma diocese que abrangia um determinado território, os soberanos e os senhores feudais passaram a exigir dos bispos seus súditos que se preocupassem não apenas com os problemas religiosos de suas dioceses, mas também e principalmente com os problemas relativos aos bens temporais, cobrança de impostos, defesa militar, e outros mais, coisa que, verificou-se, geralmente os bispos eram mais capazes e tinham mais autoridade para cumprir, no quadro social daquela época tão tumultuada, do que os dignatários seculares.

Aos poucos, porém, em muitos lugares da Europa esta prática foi se degenerando ainda mais até chegar ao ponto em que, como as principais ou a quase totalidade das preocupações de muitos bispos já eram de ordem temporal, os senhores passaram a designar leigos para assumirem os governos das dioceses, os quais por sua vez nomeavam um eclesiástico como ajudante para o desempenho das funções religiosas.

Estes leigos, porém, titulares de dioceses e abadias, na qualidade de leigos podiam se casar, e de fato se casavam. Mas ao fazerem isto, aos poucos passaram a considerar as dioceses e as abadias como bens hereditários de suas famílias.

Em vários lugares este processo ocorreu não apenas com as dioceses e os mosteiros, mas até mesmo com as paróquias. E grau menor, conforme iremos descrever adiante, ocorreu também com o Papado.

Este processo todo significou a quase destruição da Igreja na época do feudalismo. Isto porque a organização da Igreja, em grande parte, passava de geração em geração por meio do costume. Os oito primeiros Concílios haviam legislado sobre a organização da Igreja, mas não se tratava de uma legislação sistemática e exaustiva. Muita coisa boa se fazia porque vinha sendo feita desde a época dos Apóstolos por costume, sem necessidade da existência de uma lei promulgada oficialmente. Assim era, por exemplo, em sua maior parte, a formação dos futuros sacerdotes. É evidente que, com a desorganização produzida pelo sistema feudal, grande parte da estrutura e organização da Igreja deveria ser remontada por meio de uma legislação explícita. Fazer isto porém, não era fácil devido a uma série de problemas.

Primeiro, havia o problema de que a Igreja havia caído sob o férreo controle do braço secular.

Em segundo lugar, o que havia acontecido não era apenas uma desorganização da ordem administrativa. Juntamente com ela, boa parte do clero tinha perdido de vista o verdadeiro sentido da missão do sacerdote, e nele campeavam abusos, vícios e maus exemplos dos quais as pessoas não mais estavam dispostas a se corrigirem com facilidade. Ademais, a pregação e o ensino da mensagem evangélica havia se tornado para muitos padres e bispos uma questão secundária, os quais freqüentemente ascendiam em seus cargos movidos por interesses puramente seculares.

Em terceiro lugar, a própria Sé Romana não era totalmente independente e, mesmo que o fosse, no sistema feudal em que a Europa havia caído não havia estrutura para se fazer obedecer. As estradas e os meios de transporte e de comunicação eram muitíssimo precários. Cada feudo era um mundo à parte e não havia jornais, revistas, correios ou quaisquer meios de se fazer chegar regularmente uma determinada mensagem ou decreto ao conhecimento do mundo todo.

26.

A condição do Sumo Pontífice nesta época era bem menos pior do que a da Igreja em geral.

Bem antes do início do feudalismo os Papas haviam recebido do pai de Carlos Magno uma doação de terras, denominada Patrimônio de São Pedro, que mais tarde veio a se transformar nos Estados Pontifícios, na Itália Central, em volta da cidade de Roma.

Na época do feudalismo estes territórios passaram a ser considerados como parte do Sacro Império Romano Germânico e, portanto, embora fossem governados pelo Papa, o Papa era neles um vassalo do Imperador. O processo geral descrito acima de submissão do poder espiritual ao poder temporal dos senhores feudais não se estendeu em todas as suas fases ao caso dos Sumos Pontífices. Embora o Papa fosse considerado vassalo do Imperador, nunca foi investido no cargo pelo Imperador, nem teve o Papa que prestar-lhe juramento de fidelidade. Porém, devido à interferência arbitrária e desastrosa dos senhores feudais italianos na eleição dos Sumos Pontífices, por volta da segunda metade dos anos 900 os Imperadores do Sacro Império se acharam no direito de nomearem eles mesmos quem deveria ser eleito para o Supremo Pontificado.

27.

Esta situação começou a mudar graças ao surgimento de uma organização religiosa baseada no mosteiro beneditino de Cluny, na França, e na atuação do Papa Gregório VII e seus predecessores.

28.

O mosteiro beneditino de Cluny foi fundado no início dos anos 900 na França por Santo Odão. Além da disciplina exemplar que nela foi instituída, tinha duas características peculiares que iriam ser fundamentais para a reforma da Igreja.

A primeira foi que, ao contrário de todos os mosteiros que existiram na Igreja até essa época, em vez de subordinar-se ao bispo local, o mosteiro de Cluny quis colocar-se sob a obediência direta e exclusiva do Sumo Pontífice.

A segunda foi que, até aquela época, todos os mosteiros da Igreja haviam sido independentes entre si. Os mosteiros beneditinos tinham em comum apenas o fato de que obedeciam à mesma regra, mas não tinham vínculos uns aos outros. Ora, devido ao modo de vida verdadeiramente exemplar que se levava em Cluny, aos poucos outros mosteiros beneditinos independentes foram pedindo auxílio à Abadia de Cluny para se reformarem segundo o modelo de vida que se levava em Cluny. Ao fazerem isto, porém, acabavam se ligando à Abadia de Cluny e passaram a constituir uma rede de centenas de mosteiros espalhados pela Europa, todos sujeitos ao abade de Cluny e sob a jurisdição direta do Sumo Pontífice. Acresceu-se a isto a felicidade de durante os primeiros duzentos e cinqüenta anos de vida da Abadia de Cluny ela ter sido governada apenas por seis abades, homens de vida longa e de grande santidade. Estes duzentos e cinqüenta anos iniciais abarcaram a época que se iniciou no começo dos anos 900 indo até cerca do ano 1150 DC, quando se iniciou a série de Concílios Ecumênicos cujo principal objetivo era a reforma da Igreja. A partir do ano 1000 DC o abade de Cluny era a segunda pessoa em importância na Igreja, vindo logo em seguida à própria pessoa do Papa. A organização cluniaciense, em seu conjunto, desempenhou naquela época um papel semelhante ao que os jesuítas desempenharam posteriormente durante a Contra Reforma.

29.

Nos anos mil, quando os mosteiros cluniacienses já eram uma importante organização dentro da Igreja, um movimento similarmente preocupado com a reforma da Igreja começou a ocorrer dentro da própria Santa Sé, cuja alma foi o monge Ildebrando, secretário de uma série de Papas durante um quarto de século e, finalmente, ele próprio eleito Papa com o nome de Gregório VII.

30.

Hildebrando, o futuro Papa Gregório VII, era filho de um pequeno senhor feudal da região da Toscana, na Itália. Ainda jovem veio para Roma e foi educado em um mosteiro do monte Aventino, em que seu tio era abade.

Um de seus professores, chamado João Graciano, tornou-se mais tarde o Papa Gregório VI e chamou o monge Hildebrando para ser seu capelão particular. Após a morte de Gregório VI, Hildebrando foi para a França, onde passou algum tempo como hóspede no Mosteiro de Cluny, tornando-se grande amigo de seu abade, na época São Hugo.

31.

Ora, aconteceu que no ano de 1048 DC, tendo morrido o Papa que havia sucedido a Gregório VI, o papa de quem Hildebrando havia sido o capelão, e estando Hildebrando ainda no mosteiro de Cluny, o Imperador Henrique III escolheu seu primo Bruno, bispo de Toul na Lorena, uma região situada entre o Sacro Império e a França, para ser o próximo Papa.

Independentemente do fato de ser o primo do Imperador, Bruno havia dado provas de ser um bispo exemplar, durante as mais de duas décadas em que esteve à frente da Diocese de Toul.

Já designado Papa pelo Imperador, a caminho de Roma, o bispo Bruno encontrou-se com o monge Hildebrando e com São Hugo, o abade de Cluny. Em uma conversa particular, estes fizeram ver ao bispo Bruno que, pelos cânones da época, ainda que nomeado pelo Imperador, enquanto Bruno não fosse aceito pelo povo e pelo clero de Roma ele não poderia considerar-se ainda verdadeiro Papa. Bruno reconheceu que os dois estavam com a razão e fêz questão de entrar em Roma não como Pontífice, mas como simples peregrino, recusando-se a exercer qualquer ato como Papa enquanto não obtivesse a confirmação de sua nomeação por parte do clero romano, quando então tomou o nome de Leão IX.

Não quis porém Leão IX, mais tarde São Leão IX, entrar em Roma sem ter levado consigo ao monge Hildebrando como seu secretário particular. Esta decisão foi providencial pois, segundo os historiadores da época, Hildebrando passou a ser o principal inspirador das decisões mais importantes do pontificado de Leão IX e dos quatro Papas que viriam depois dele.

Com a colaboração de Hildebrando, Leão IX passou a reunir regularmente o clero de Roma em sínodos, aos quais foram convidados os bispos das vizinhanças e também os superiores dos mosteiros sujeitos à Abadia de Cluny. As decisões tomadas nestes sínodos eram levadas posteriormente aos lugares de origem dos bispos e dos abades presentes.

A idéia prosperou e Leão IX começou a viajar por toda a Europa celebrando sínodos semelhantes com os bispos e abades locais, instituindo a reforma, punindo abusos e depondo bispos indignos. Nos seus cinco anos de pontificado, num tempo em que as comunicações eram precárias e as estradas inseguras e em que se viajava apenas a pé ou a cavalo, Leão IX atravessou os Alpes três vezes em longas viagens, percorrendo e celebrando sínodos nas dioceses da França e do Sacro Império. Mais tarde, nos lugares em que ele não podia voltar, os sínodos continuaram regularmente sob a supervisão de uma rede de legados pontifícios que ele instituíu e que se tornaram, muito tempo depois, os atuais núncios apostólicos.

Muitos destes legados foram monges cluniacienses; o próprio Hildebrando desempenhou diversas vezes este papel.

Gradativamente, diz o historiador P. Hughes,

"toda a Igreja Ocidental
passou a compreender,
naquele contato pessoal com o Papa,
que a Sé Romana se entregava
de corpo e alma
à restauração da vida cristã
e à supressão dos vergonhosos abusos
que haviam se tornado uma segunda natureza
em toda a parte".

32.

Quando morreu o sucessor de S. Leão IX, o Papa Vitor II, ocorreu que este falecimento coincidiu com o falecimento do Imperador do Sacro Império Romano Germânico.

Isto propiciou uma notável oportunidade para que Hildebrando, que tinha sido secretário particular também de Vítor II, exortasse os cardeais a elegerem imediatamente outro Papa sem esperarem a nomeação do Imperador.

Foi então eleito o Papa Estêvão X.

Logo em seguida Hildebrando viajou para a Alemanha, para a cidade de Ratisbona, onde conseguiu fazer com que a corte do Império aceitasse a eleição como fato consumado.

33.

Estêvão X veio a falecer cerca de um ano depois.

Em seu leito de morte pediu encarecidamente aos cardeais que não elegessem nenhum Papa enquanto Hildebrando, já então também Cardeal, não retornasse de uma missão que estava cumprindo em França.

Hildebrando voltou e conseguiu obter, contra a pressão dos nobres romanos, a eleição de Nicolau II, um dos mais radicais partidários da reforma.

Nicolau II, aconselhado por Hildebrando, promulgou uma lei segundo a qual dali em diante nenhum pontífice poderia mais ser nomeado pelos Imperadores, mas apenas eleito pelos cardeais.

34.

Foi Hildebrando também o principal responsável pela eleição do sucessor de Nicolau II, o Papa Alexandre II.

Quando morreu Alexandre II, o cardeal Hildebrando foi unanimemente aclamado Papa pelo povo e pelo clero de Roma. Tomou o nome de Gregório VII.

35.

Em seu pontificado Gregório VII promulgou uma lei que se dirigia diretamente à raíz dos males que tinham se alastrado na Igreja durante os últimos séculos.

Por determinação pontifícia, dali para a frente ficava proibida, sob pena de excomunhão, que um leigo investisse um clérigo em cargos eclesiásticos.

Dada a tão grande relevância que uma medida como esta tinha diante dos problemas da Igreja daquela época, cabe perguntar por que uma lei tão importante como foi esta não havia sido promulgada muito tempo antes.

A resposta é que não teria bastado uma simples promulgação. Devia-se ter os meios para fazê-la valer. Gregório VII enviou legados, dotados de plenos poderes, para as diversas partes da Europa supervisionar a execução de seus decretos contra as investiduras leigas e punir os desobedientes. A resistência dos senhores feudais e do Imperador foi gigantesca. A impressão geral que se tinha era que desta vez o Papa Gregório havia exagerado muito e temerariamente. Os detentores do poder civil se consideraram roubados em um direito que, para as perspectivas da época, consideravam legítimo. Obedecer a lei significava, para o poder temporal, além de uma afronta a direitos considerados legítimos, perder uma copiosa fonte de rendas e uma valiosíssima colaboração do clero nos assuntos temporais. Os senhores feudais eclesiásticos no Sacro Império Romano Germânico eram os principais pilares da autoridade imperial, a qual, devido ao sistema feudal, já não era forte. Obedecer aos decretos de Gregório VII, do modo como foram promulgados, significava para o Imperador perder repentinamente seu principal ponto de apoio político.

Em vista destas considerações, o que veio a suceder em seguida no Sacro Império foi precisamente o que teria sido de se esperar. O Imperador desprezou abertamente os decretos de Gregório VII e, mais ainda, acusou-o publicamente de pretender usurpar a coroa imperial, de defender a heresia, de praticar o adultério, de cultivar a magia e de ser um feroz sanguinário. Convocou, ademais, como não poderia ter deixado de o fazer, as tropas do exército imperial para marcharem contra Roma e deporem um Papa tão indigno, em sua opinião, de ocupar a sucessão de São Pedro.

O Imperador preparava-se para depor o Papa pela força armada, um papa o qual, afinal de contas, do ponto de vista legal daquela época, não passava de um vassalo do Sacro Império, quando Gregório VII, tendo sabido sobre o modo como o Imperador havia acolhido os seus decretos, teve não apenas a coragem de excomungá-lo como também, uma coisa não só inédita na história como totalmente impensável no contexto daquela época, decretou a deposição do Imperador do trono do Sacro Império, desobrigando a todos os seus súditos do juramento de fidelidade ao Imperador.

O aspecto mais assombroso deste decreto, além do fato de se tratar de coisa totalmente sem precedentes, é que São Gregório não possuía poder militar algum para poder impor a execução de uma determinação como esta.

Mas já há cinco pontificados que o prestígio e a fama de santidade dos Pontífices se havia espalhado pela Europa. Para a surpresa do Imperador, assim que o decreto do Papa Gregório ficou conhecido, não houve mais um único de seus súditos que estivesse disposto a obedecê-lo. O Imperador se viu obrigado a peregrinar até o castelo de Canossa na Toscana onde Gregório VII estava hospedado e passar três dias e três noites do lado de fora, como simples peregrino, no meio da neve, até que o Papa o absolvesse da excomunhão que lhe havia sido decretada.

36.

Depois do pontificado de S. Gregório VII, no ano de 1122 DC, foi realizada em Worms uma concordata em que o Imperador aceitou, daí para diante, que todas as eleições de bispos e abades seriam feitas livremente pela própria Igreja.

37.

Foi no ano seguinte que foi convocado o Primeiro Concílio de Latrão, com dois principais objetivos: confirmar a Concordata de Worms com a autoridade de um Concílio Ecumênico e examinar outras questões de ordem disciplinar relativas aos abusos que tinham se introduzidos dentro da Igreja. No Primeiro Concílio de Latrão codificaram-se as idéias e as iniciativas básicas de Gregório VII.

A partir daí todos os demais Concílios, desde o nono ao décimo nono, tiveram como objetivo a reforma da Igreja. Para alguns, este foi o motivo principal de sua convocação. Já outros puderam ser convocados por causa de um problema circunstancial, mas em todos eles, aproveitando-se o motivo circunstancial, foi sempre incluído o problema da reforma da Igreja como um problema de capital importância.

As expressões com que se significa a reforma da Igreja na lista de motivos de convocação constantes nos decretos convocatórios ou nos demais documentos relacionados com eles varia ao longo destes onze Concílios, mas percebe-se que estão sempre ligados à mesma problemática. Dentre elas temos as seguintes:

  • Exame de questões de ordem disciplinar;
  • Reforma da Igreja;
  • Extirpar abusos e desordens;
  • Reforma dos costumes do clero e do laicato;
  • Desenraizar abusos;
  • Culpas do alto e baixo clero;
  • Ignorância e avidez do clero;
  • Melhor escolha dos bispos;
  • Melhor formação dos candidatos ao sacerdócio;
  • Defesa das liberdades eclesiásticas da ingerência leiga;
  • Perseguição do Imperador contra a Igreja;
  • Descuido na escolha, instrução e formação dos candidatos ao sacerdócio;
  • Relaxamento da disciplina monástica;
  • Reforma geral da Igreja;
  • Liberdade acerca da eleição de bispos e abades;
  • Injustas pressões e ingerência de príncipes nos problemas da Igreja,

além de vários outros do gênero.

Trata-se, como se pode perceber, de uma problemática bem diferente daquela enfrentada pelos oito primeiros Concílios, em que o problema de primeiro plano era manifestamente de caráter doutrinal.

38.

Até o Concílio de Trento, porém, nenhum destes onze Concílios conseguiu uma reforma profunda da Igreja, devido aos mais variados problemas. O Concílio de Trento, o último desta série de onze, foi convocado devido à rápida expansão da Reforma Protestante e foi o maior de todos em duração. Desde a sessão de abertura até a sessão de encerramento passaram-se dezoito anos e o Concílio atravessou quatro pontificados. Mas a partir daí nunca mais foi necessário convocar um Concílio Ecumênico para promover a Reforma da Igreja, pelo menos no sentido de que esta expressão se revestia ao longo desta época.

39.

Às vésperas do Quarto Concílio de Latrão, convocado pelo Pontífice Inocêncio III, temos um acontecimento conhecido por muitos quanto ao fato, nem sempre, porém, quanto ao contexto.

Foi neste época que se deu em Assis a conversão de São Francisco.

Já perfeitamente convertido em seu coração, sem ter porém ainda entregue, como viria a fazê-lo logo em seguida, todos os seus bens aos pobres, passando São Francisco pelas ruínas da capelinha de São Damião, na época uma igrejinha nas redondezas de Assis quase derrubada e abandonada por todos, o futuro Poverello entra nela e se ajoelha para orar diante do crucifixo. A imagem do crucifixo, então, abrindo os seus lábios, chama Francisco pelo nome e lhe diz:

"Francisco,
não vês que a minha casa
está para desmoronar?
Vai,
e reconstrói-a".

Pouco tempo depois Francisco se despojou de seus bens diante de seu pai Bernardone e do bispo Guido de Assis e, lembrando-se da ordem que Cristo lhe havia dado na igrejinha de São Damião, pensando que esta ordem se referisse à própria capelinha de São Damião, dedicou-se durante um bom tempo ao trabalho de reconstruí-la pessoalmente com o seu trabalho e com o dinheiro das esmolas pedidas em Assis.

Ocorre, porém, que a casa a que o crucifixo se referia não era a capelinha de São Damião, mas a própria Igreja Católica, a qual, mesmo depois dos trabalhos do Papa São Gregório VII e dos três primeiros Concílios de Latrão, ainda estava prestes a desmoronar, devido às circunstâncias históricas que estivemos descrevendo. Cristo, em São Damião, estava convidando São Francisco a reconstruí-la não com pedras e esmolas, mas com a fundação da Ordem Franciscana que se faria dali em breve.

40.

Meses depois, Francisco dirigiu-se com alguns companheiros para Roma para pedir a aprovação da Regra Franciscana ao Papa Inocêncio III.

Sua extrema simplicidade ao pedir uma coisa tão importante causou estranheza entre os cardeais mas, para surpresa de todos, ao ser recebido Francisco em audiência pelo Papa Inocêncio III, este aprovou e abençoou tudo quanto o primeiro havia lhe pedido, declarando-lhe ainda que alguns dias antes havia sonhado em Roma que a Basílica de Latrão estava desabando quando surgiu um homem pobrezinho, de pequena estatura e de aspecto desprezível, o qual havia vindo para sustentá-la com os seus ombros a fim de que a Basílica não caísse ao chão. E então, para o espanto dos Cardeais ali presentes, voltando-se Inocêncio III para eles, exclamou:

"Este é, na verdade,
senhores,
o homem que com suas obras
e com sua doutrina
sustentará a Igreja de Cristo".

A Basílica de Latrão, no sonho do Pontífice, era também a própria Igreja Católica, ainda no estado tão precário que tentamos descrever em rápidos traços.

41.

O Quarto Concílio de Latrão, convocado por Inocêncio III algum tempo depois da aprovação da ordem franciscana, prenunciou os Concílios modernos no sentido de ter sido o primeiro dos Concílios Ecumênicos em que, antes de ter sido convocado, procedeu-se a uma consulta a um sem número de autoridades e de estudiosos sobre quais eram os principais problemas que nele deveriam ser tratados.

42.

Um dos mais perfeitos desta série de onze Concílios foi o último do século correspondente aos anos 1200, o Segundo Concílio de Lião. Raramente em um Concílio Ecumênico houve tantas pessoas que reunissem um tão alto grau de ciência e santidade. Os maiores sábios da escolástica haviam sido convocados ao Segundo Concílio de Lião. Entre eles estavam Santo Alberto Magno, São Boaventura e Santo Tomás de Aquino.

Santo Tomás de Aquino, entretanto, não pôde participar efetivamente do Concílio, pois morreu durante a viagem que para lá o conduziria.

43.

Após o Segundo Concílio de Lião a reforma da Igreja, que ia tomando rumo, sofreu uma série de duríssimos reveses. Até este momento o que a Igreja tentava fazer era libertar-se da estrutura feudal em que havia sido mergulhada e dos abusos no clero que daí haviam resultado. Mas na virada dos anos 1200 para os 1300 começaram a surgir na Europa os sinais do surgimento das primeiras monarquias absolutistas, as quais também estavam emergindo do sistema feudal e começaram a criar todo tipo de problemas à reforma que a Igreja estava tentando com muito custo organizar.

44.

O Décimo Quinto Concílio de Viena, por exemplo, foi convocado por imposição do Rei Felipe o Belo da França com o principal objetivo de forçar a Igreja a dissolver a Ordem dos Templários para que o rei pudesse confiscar os seus bens. O Concílio foi convocado e a Ordem dos Templários foi dissolvida; mesmo assim, grande parte da pauta do Concílio de Viena foi a reforma da Igreja.

45.

Mas entre o Concílio de Viena e o de Constança temos no quadro que representa esquematicamente em três colunas os Concílios Ecumênicos uma série de pontinhos.

Esta série de pontinhos representa neste quadro a Peste Negra, uma epidemia que eclodiu na Europa no ano de 1348 e durante os dois ou três anos em que durou revelou-se uma das maiores tragédias que já se abateram sobre a humanidade. Ela teve as mais profundas repercussões na vida da Igreja e na marcha da civilização em geral.

46.

A Peste Negra foi uma epidemia de peste bubônica, trazida por ratos e transmitida aos homens por meio de pulgas, altamente contagiosa e que matava de modo fulminante em poucos dias ou, em certas fases da epidemia, até mesmo em algumas horas.

A doença não escolhia, em princípio, entre homens, mulheres, crianças, idade ou condição social. Qualquer um podia contagiar-se a qualquer momento. Ela se iniciava de modo súbito, com a presença de bubões e dores intensas nas virilhas. Quando isso ocorria, o doente tinha diante de si a perspectiva certa de, no máximo, dois ou três dias de vida.

Ninguém, porém, na época, suspeitou que a causa do flagelo fossem os ratos e as pulgas. As cidades, de ruas muito estreitas e casas apinhadas umas às outras, pela necessidade que tinham de serem cercadas por muros para a defesa militar, sem esgotos nem água encanada, formaram um ambiente perfeito para a propagação da epidemia. O resultado que ficou descrito na história tem algo de dantesco. Nas principais cidades passavam diariamente carrinhos entre as casas para recolherem os novos mortos de um modo cuja descrição nos faz lembrar as atuais coletas de lixo das grandes cidades, só que eram pessoas que estavam sendo coletadas e ninguém sabia quem seria o contemplado na coleta do dia seguinte. Em dois anos, a peste negra matou entre um terço e a metade da população da Europa, sem que ninguém fizesse a menor idéia de como evitar contrair a doença, a não ser fugindo para o campo, coisa que também não era uma medida completamente eficiente.

47.

Ocorreu porém, que apesar da peste não escolher entre pessoas e ter atingido entre um terço e metade da população da Europa, por outros motivos a doença atacou de modo preferencial ao clero e aos membros mais empreendedores da sociedade.

A explicação deste estranho paradoxo se deve, no que diz respeito ao clero, à existência de uma obrigação moral do clero de não abandonar as cidades em épocas de epidemia para poder, deste modo, garantir-se a administração dos Sacramentos aos moribundos. A doença, porém, desta vez era tão contagiosa e a ignorância sobre as suas verdadeiras causas e os meios que poderiam tê-la evitado era tão total que a melhor parte do clero morreu prestando assistência aos moribundos. Muitos dos que sobraram foram os sacerdotes que, não tendo a coragem de cumprir com o seu dever, haviam fugido para o campo.

No que diz respeito aos homens mais empreendedores da sociedade, o paradoxo também se explica pelo fato de que eram estes os que tinham organizado os negócios nas cidades, como estabelecimentos de comércio ou pequenas manufaturas. Justamente por causa disso eram os que mais relutavam em abandonar tudo e fugir para o campo. Os que fugiam para o campo eram, preferencialmente, aqueles que nada tinham a perder se não ficassem na cidade porque não haviam sido capazes de construir nada que pudesse ser perdido.

48.

Quando a Peste Negra terminou, a sociedade havia entrado em colapso, mais ou menos como ocorre no final de uma guerra de grandes proporções. A História fornece muitos exemplos de inteiras civilizações que desapareceram por completo deste modo. No caso da Peste Negra, porém, o efeito produzido foi muito mais dramático para a Igreja do que para a sociedade em geral.

O ensino, que estava quase que totalmente confiado ao clero, decaíu a níveis assombrosos. A disciplina relaxou- se nos mosteiros e entre o clero a moral e a responsabilidade tinham baixado sensivelmente de nível.

Quanto à sociedade civil, os que haviam sobrevivido ou que voltaram do campo herdaram as propriedades dos parentes que haviam morrido. Em vez de reconstruírem o que havia sido abandonado, como que enlouquecidos depois de terem convivido com uma proximidade quase que contínua com a morte, foram tomados por uma obsessão pela idéia de viver e de esgotar as possibilidades que esta vida lhes podia oferecer. Os bens herdados foram dissipados dos modos mais levianos e absurdos.

Perspectivas pouco animadoras se reservavam ao novo clero que deveria ser escolhido de uma sociedade nestas condições e educados em uma Igreja que tinha sofrido uma devastação ainda maior do que a sociedade em seu conjunto. É óbvio que nestas condições os problemas da Igreja, que já não eram poucos, em vez de diminuírem, só poderiam ir aumentando. Assim, depois de algum tempo, a Igreja passou a necessitar mais, e não menos, do trabalho de reforma que vinha tentando ser feito.

49.

Embora tivessem sido convocados depois da Peste Negra, o Concílio de Constança e a Concílio de Florença tiveram por objetivos imediatos a resolução de outros problemas internos da Igreja mais urgentes; aproveitou-se a ocasião para tratar também da reforma da Igreja.

50.

Já o Quinto Concílio de Latrão foi convocado principalmente para promover a reforma da Igreja, cuja urgência já estava chegando a níveis alarmantes. Faltou, porém, estrutura para dar firmeza à execução das decisões que haviam sido tomadas.

51.

Foi então que, cerca de uma década após o encerramento do Quinto Concílio de Latrão, iniciou-se na Alemanha com Martinho Lutero o movimento da Reforma Protestante. A rapidez com que se alastrou pelo Sacro Império Romano Germânico, passando depois à Inglaterra, fêz com que fosse convocado o maior de todos os Concílios Ecumênicos já havidos até a época, o Concílio de Trento.

O Concílio de Trento não foi apenas o maior na duração, mas também e principalmente o maior pela extensão e pela sistematicidade dos seus decretos, elaborados com uma profundidade incomum nas discussões que os precederam pois agora, além da reforma da Igreja, tinha-se que responder às teorias protestantes que questionavam uma grande extensão da doutrina cristã.

As resoluções do Concílio de Trento se parecem com uma Tratado de Teologia e de Direito Canônico. Antes de cada conjunto de cânones ou decisões, vem uma fundamentação teórica que justifica as decisões tomadas. No início do Concílio foram declarados, além disso, os pressupostos teóricos que fundamentariam todas as demais decisões que iriam ser tomadas posteriormente durante todo o Concílio; foram declaradas quais são as fontes da Revelação, quais são os livros inspirados que compõem as Sagradas Escrituras, quais são as suas versões confiáveis e quais são os modos pelos quais devem ser interpretados. Durante o Concílio, entre inúmeras outras coisas, foi também traçado como deveria ser a formação dos candidatos ao sacerdócio, modo este que foi tornado obrigatório para toda a Igreja, tendo sido para tanto prescrita a fundação se seminários em todas as dioceses.

52.

Três séculos antes, o Segundo Concílio de Lião foi o que mais próximo estêve, antes do de Trento, de obter a reforma da Igreja. Foi o penúltimo antes da Peste Negra, e teria sido mesmo o último antes dela, não tivesse a convocação do de Viena sido obtida pela imposição intempestiva do Rei de França. Para o Segundo Concílio de Lião havia sido convocado Santo Tomás de Aquino, provavelmente o maior entre os sábios que houve no Cristianismo, mas que, infelizmente, faleceu a caminho do Concílio. De sua participação naquele Concílio muito se esperava para o bem da Igreja e talvez ele teria vindo a ser uma das pessoas que com mais razão deveria ter ali estado presente.

Quis, porém, a Providência que de uma outra e insuspeitada forma ele estivesse presente não no Concílio de Lião, mas trezentos anos mais tarde no Concílio de Trento, que haveria de ser o definitivo da série e que iria obter aquilo que o Segundo de Lião realmente almejava.

A este respeito escreveu no início deste século o Papa Leão XIII na encíclica Aeterni Patris:

"Os Concílios Ecumênicos,
em que brilha a flor da sabedoria
escolhida em toda a terra,
se têm ocupado sempre em prestar
a Tomás de Aquino
especial homenagem.
A maior honra prestada a Santo Tomás,
só a ele reservada
e que nenhum outro dos doutores católicos
pode partilhar,
provém porém
dos Padres do Concílio de Trento,
quando fizeram que,
no meio da santa assembléia,
com os livros das Escrituras
e com os Decretos dos Papas,
fosse colocada aberta sobre o mesmo altar
a Summa Theologiae de Tomás de Aquino
para dela extrais conselhos,
razões e decisões".

53.

Talvez, porém, o Concílio de Trento não teria surtido o efeito que teve se não tivesse surgido providencialmente nesta época Santo Inácio de Loyola para fundar a Companhia de Jesus, uma organização religiosa de concepção inteiramente nova cujo principal objetivo era colocar todos os seus membros à direta disposição do Romano Pontífice para qualquer tipo de missão que ele lhes quisesse confiar em qualquer parte do mundo.

Uma organização exatamente assim jamais havia aparecido antes na Igreja, nem mesmo nos tempos da Ordem Cluniaciense.

Os monges de Cluny haviam-se colocado sob a jurisdição do Romano Pontífice, mas obedeciam à Regra de São Bento que lhes prescrevia um determinado modo de vida. É apenas dentro deste modo de vida que eles estavam sujeitos à jurisdição do Papa em vez de estarem, como antes os mosteiros beneditinos em geral estavam, submetidos à jurisdição do bispo local.

Mas no caso dos jesuítas, além de terem eles um especial voto de obediência ao Sumo Pontífice, pode-se dizer que toda a sua regra havia sido concebida como aberta à execução de trabalhos apostólicos que não se predeterminavam, mas que seriam aqueles que o Papa a qualquer momento e em qualquer época lhes quisesse confiar conforme as necessidades da Igreja.

A Companhia de Jesus, assim concebida, cresceu em poucos anos até tornar-se a maior organização existente na Igreja; foi principalmente através dela que conseguiu-se trazer à realidade as resoluções do Concílio de Trento e proceder à reforma da Igreja que vinha-se tentando fazer há dez Concílios Ecumênicos.

54.

Assim, pode-se perceber o fato, não destituído de importância e significação, de que a Reforma da Igreja que se iniciou com o Feudalismo, evoluindo razoavelmente bem até aproximadamente o ano de 1300 DC, para depois voltar a se agravar até tornar-se um problema dramático, se não mesmo alarmante, após o advento da Peste Negra até a época da Reforma Protestante, só pôde iniciar-se eficazmente graças a uma Ordem de monges que resolveu se colocar sob a jurisdição direta do Papa e só pôde alcançar um resultado definitivo quando surgiu uma outra sociedade de clérigos que se distinguiu entre todas por uma exemplar fidelidade e dedicação ao Soberano Pontífice.

São Paulo, 25 de maio de 1991