III/B



16.

Nossa intenção nesta introdução é uma compreensão das motivações que concorreram para a convocação do Concílio Vaticano II. Estas se referem à problemática particular do homem do século XX dentro da obra de Cristo. Esta problemática remonta, por sua vez, a um prolongamento do movimento que passou a ser conhecido como Renascimento, movimento que surgiu precisamente nesta época que veio logo em seguida à Peste Negra, ao Cisma, às vidas de Santa Rita de Cássia e de Santo Antonino.

Se considerarmos que o Renascimento nesta época só pôde surgir devido aos problemas particulares que a civilização ocidental e, dentro dela, a Igreja já enfrentavam há séculos, causados pela convulsão feudal, pode-se dizer, em um sentido muito lato, que os problemas que causaram a convocação do Concílio Vaticano II remontam, por uma sucessão de causalidades históricas, ao feudalismo. Mas em um sentido mais próprio remontam ao Renascimento, no sentido em que o Renascimento é o berço do modo moderno de pensar, de uma cosmovisão em que o mundo, o homem, sua formação e seus objetivos são considerados de um modo que, quando examinados em seus pressupostos que raramente são explicitados aos homens que deles vivem, verifica-se que tais pressupostos são radicalmente opostos aos que conduziriam a um entendimento da boa nova trazida por Cristo, e que tais pressupostos são tacitamente aceitos inclusive por aqueles que se afirmam, e com sinceridade, serem cristãos. Neste sentido, os problemas do homem de hoje remontam ao Renascimento não apenas por uma sucessão causal, mas também porque ali já estava em embrião algo que posteriormente foi cultivado e que veio a desenvolver-se extraordinariamente.

17.

Os dois pontificados que vieram depois do término do Cisma na Igreja, durante a primeira metade dos anos 1400, sob os Papas Martinho V e Eugênio IV, não viram novos problemas dentro da Igreja que os tivessem marcado profundamente, além dos que já existiam, e que não eram poucos. Mas estes pareciam que, com o tempo, embora não sem dificuldades, iriam se encaminhar naturalmente para uma solução, assim como o problema da reforma da Igreja de que falamos na primeira parte.

Mas o fato é que, logo em seguida à Peste Negra de 1348, em uma coincidência cronológica que não é um mero acaso, iniciou-se na Europa, a partir da região norte da Itália, o que ficou sendo conhecido como o movimento Renascentista. Descrever o que foi o movimento Renascentista não é uma tarefa simples, mesmo porque foi muito mais do que sugere, num primeiro momento, o nome de movimento. O Renascimento foi, na verdade, uma transformação profunda que se operou na sociedade da época devido a uma multidão de fatores.

18.

Um primeiro fator desta transformação tão profunda que se operou na sociedade desta época proveio da área educacional.

As transformações, tanto no campo prático como no campo das idéias, na área educacional são de fundamental importância para a compreensão das transformações da sociedade, pois é no campo educacional que se formam as pessoas que irão integrar a sociedade. Uma transformação na área educacional é sempre um indício de uma mudança que está ocorrendo ou que vai ocorrer na sociedade.

19.

Nós que atualmente vivemos no século XX e estamos acostumados com a idéia de um curso primário e secundário seguidos de um curso universitário em que se aprende uma profissão adquirimos também o hábito de pensar que este sistema de educação é um sistema de um valor absoluto. Isto é, imaginamos que não seja possível que exista uma outra maneira de se educar dignamente um ser humano que não seja esta, um curso primário e secundário mais ou menos comum para todos, graduado em séries, que desemboca em um curso superior que se divide em muitas áreas específicas em que cada um aprende uma profissão de sua escolha, tudo isto ministrado em salas de aula em que se ensinam matérias que nós conhecemos por meio de um professor falando junto a um quadro negro transmitindo conhecimento para alunos que estejam anotando o que ele diz em um caderno. A impressão que todos tem, ademais, é que sempre foi assim em toda a história, com a única diferença é que na antiguidade, embora se fizesse essencialmente isto, deveria com certeza ser feito de alguma maneira mais primitiva.

É natural para o homem de hoje que se imagina que esta forma de educação esgote todas as possibilidades de formação do homem, porque este sistema existe atualmente em todo o mundo conhecido. Se formos aos Estados Unidos, à Itália, à França, à Inglaterra, à Arábia, à Índia ou à China, o ensino poderá ser mais ou menos perfeito, mas trata-se do mesmo método e da mesma concepção.

Esta difusão tão homogênea das idéias educacionais no mundo inteiro é que nos faz supor que esta seja a única forma possível de formação do homem, e que desde a época do Império Romano ou mesmo antes sempre assim tenha sido, com a vantagem para os dias modernos de que o método esteja mais aperfeiçoado. Tal suposição, porém, é um engano.

20.

Na realidade, o sistema de educação que nós temos hoje não começou no Império Romano ou mesmo antes, mas na Renascença, cujo exame estamos nos preparando para iniciar. Na época da Renascença iniciou-se uma mudança profunda no modo de pensar dos homens e houve, por conseqüência, profundas mudanças também nas concepções sobre como de deveria formar o homem. Antes da Renascença, porém, as idéias que norteavam a educação tinham muito pouca relação com o sistema educacional que conhecemos hoje. Vamos examinar algo, portanto, de como era a educação antes.

21.

Para entender como era a Educação antes da Renascença, temos que saber que a civilização que temos hoje, a civilização dita ocidental, se originou de uma fusão de três outras civilizações, isto é, resultou da fusão da civilização hebraica com a grega e a romana.

A mais antiga destas era a civilização hebraica, a qual, por causa das conquistas de Alexandre o Grande no Oriente, entrou em profundo contato com a civilização grega.

Mais tarde, quando os romanos conquistaram também o Oriente, incorporaram gregos e hebreus ao seu Império, fundindo estas três civilizações, romana, grega e hebraica, no mesmo Império Romano.

Meio século depois dos romanos haverem conquistado praticamente tudo o que havia da civilização grega e hebraica no Oriente, nasceu Jesus Cristo em Israel e ordenou aos Apóstolos que ensinassem o Evangelho ao mundo inteiro. Foi a expansão do Cristianismo que terminou consolidando a fusão destas três civilizações em uma só.

Da civilização hebraica veio a religião, os gregos entraram com a cultura, a arte e a filosofia, e os romanos com a organização militar e política e a ciência do Direito.

De onde, porém, proveio a educação? A pedagogia, no sentido que este termo possui hoje em nossa civilização, não proveio dos romanos nem dos hebreus, mas dos gregos. A escola, no sentido que nós temos hoje, é uma herança da civilização grega. A educação que havia entre os primeiros romanos não era feita em escolas, e as escolas que havia entre os hebreus não eram as do tipo que vingou em nossa civilização.

22.

Mas, entre os gregos, quem foi que inventou a escola?

Ao que tudo indica, quem inventou a escola entre os gregos foi o filósofo Pitágoras. Antes de Pitágoras ensinava-se na Grécia, muito rudimentarmente, mas só com Pitágoras é que surgiu a primeira escola propriamente dita.

A história diz que os primeiros filósofos gregos de que se tem notícia foram Tales e Anaximandro de Mileto, uma cidade grega situada na costa oeste da atual Turquia, por volta do ano 600 AC.

Pitágoras foi discípulo de Tales; pertenceu, portanto, à segunda geração de filósofos gregos. Tales, provável primeiro mestre de Pitágoras, havia passado muito tempo estudando entre os sábios do Egito, depois do que retornou à pátria e instalou-se na cidade colônia grega de Mileto, onde permaneceu até a morte. Pitágoras havia nascido em uma ilha muito próxima, situada quase em frente a esta cidade; provavelmente ainda em sua juventude atravessou o pequeno estreito de mar que separava a ilha do continente e foi estudar com Tales e Anaximandro de Mileto.

Depois de ter estado com Tales e Anaximandro, Pitágoras teria passado ao Egito onde teria estudado uma ou duas décadas entre os sábios egípcios e, segundo alguns historiadores antigos, teria passado depois algum tempo estudando na Mesopotâmia. Muitos anos depois de ter deixado Mileto, retornou à sua pátria e fundou uma escola em uma outra cidade colônia grega no sul da Itália. Nossas escolas são uma herança distante desta primeira escola de Pitágoras.

Qual era a finalidade desta escola?

Não era, de modo algum, oferecer um ensino profissionalizante. Na escola de Pitágoras não se entrava para aprender alguma coisa com que depois se pudesse ir ganhar a vida.

Quem entrava na escola de Pitágoras, de início, entrava para ficar nela até o fim da vida, e o que se ensinava era a própria busca da sabedoria.

Foi o próprio Pitágoras quem criou o nome "filósofo", que em grego significa "amor à sabedoria". Quem entrava nesta escola entrava, portanto, para buscar o mais possível tornar-se um homem sábio, e não para ganhar dinheiro depois que o fosse. Ele fazia isto por amor à sabedoria e com nenhum outro objetivo ulterior senão o de prosseguir nesta busca para sempre.

Pitágoras deve ter sido bem sucedido neste seu ideal, pois a história registra que suas escolas se multiplicaram no sul da Itália e que era muito comum que os que dela participavam fossem chamados para assessorarem os governantes das cidades gregas, quer por iniciativa dos governantes, quer por exigência dos próprios cidadãos, ao que os pitagóricos costumavam anuir de boa vontade sem se desvincularem das escolas.

23.

As escolas pitagóricas começaram a se multiplicar no sul da Itália e com o correr do tempo alguns filósofos que tinham tido contato com os pitagóricos se dirigiram para a cidade de Atenas. Isto se deu entre os anos 500 e 400 AC.

Este foi um período de imensa riqueza e prosperidade para o povo de Atenas. Foi o século chamado de Época de Péricles, nome de seu mais famoso governante. A fama e a prosperidade de Atenas atraíram para lá alguns filósofos provenientes do sul da Itália, assim como outros provenientes da região de Mileto, onde a Filosofia ainda era transmitida como o tinha sido na época da juventude de Pitágoras, de mestre para discípulo sem a utilização de uma instituição.

Deste contato da cidade de Atenas com os filósofos do sul da Itália e da região de Mileto, ocorrido entre os anos 500 e 400 AC, resultaram várias conseqüências. A primeira foi a floração dos maiores filósofos da civilização ocidental, isto é, Sócrates, Platão, que foi discípulo de Sócrates, e Aristóteles, que foi discípulo de Platão, todos eles atenienses de nascença ou de fato.

Platão, profundamente estimulado pelo exemplo de Sócrates, a quem considerava como seu mestre, após a morte de Sócrates passou algum tempo entre as escolas pitagóricas e também entre os egípcios. Fundou depois em Atenas, em um campo comprado de um homem cujo nome era Academo, a primeira escola de filosofia independente das escolas pitagóricas, embora seja patente a profunda influência que as escolas de Pitágoras tiveram na concepção da escola de Platão. A escola de Platão ficou posteriormente conhecida como a Academia, por causa do nome do antigo dono do terreno. Embora independentes e conhecidas por nomes diversos, as concepções fundamentais sobre Educação nas escolas de Pitágoras e na Academia de Platão são, no entanto, essencialmente as mesmas.

O programa ideal de Educação, segundo Platão, está esboçado em um livro escrito por ele intitulado "A República". É um programa intenso de formação e estudo que se inicia aos sete anos de idade e prossegue até os cinqüenta e cinco anos.

Segundo `A República', durante a infância e a adolescência deveriam ser cultivadas as virtudes, entre as quais tinham grande relevância o amor à verdade, o não temer a morte e a justiça nas relações com os demais seres humanos.

Quando o jovem tivesse dado provas suficientes de ter desenvolvido uma vida de virtude, segundo diz Platão na República,

"à medida em que a vida for avançando
e o intelecto começar a amadurecer,
intensificar-se-á pouco a pouco
a ginástica da alma".

Isto era feito colocando o aluno em contato com as ciências matemáticas, para desenvolver progressivamente o raciocínio abstrato,

"mas sem impor pela força
este sistema de educação".

Aqueles que, depois de aproximadamente uma década de estudo intenso e espontâneo dos vários ramos da matemática conseguissem

"contemplar a natureza dos números
com a ajuda exclusiva da inteligência,
sem introduzir objetos
visíveis ou palpáveis na discussão",

estariam prontos, por volta dos trinta anos de idade, para se dedicarem ao estudo da Filosofia até os cinqüenta e cinco anos.

Platão adverte para que não se faça os jovens se dedicarem à Filosofia antes dos trinta anos porque, se o fizerem despreparados e antes desta idade,

"tomarão a Filosofia como um jogo e,
em vez de se prepararem
para investigar a verdade,
a transformarão
em um jogo de contradições
a fim de se divertirem".

Foi neste sistema de ensino que se formou Aristóteles e os que conhecem de perto a genialidade deste homem reconhecem como ela é fruto da educação ministrada na escola de Platão.

Este foi, portanto, o primeiro tipo de escola da história de nossa civilização, uma escola voltada puramente para a sabedoria.

24.

Na época em que surgiu a escola de Platão, porém, surgiu também um segundo tipo de escola.

Nesta época o sistema político que havia em Atenas era o que se chamava de Democracia. Embora tivesse seu nome em comum com o das modernas democracias, tratava-se no entanto de uma democracia muito mais radical do que as democracias que existem na atualidade. As democracias modernas, de fato, são democracias em que o povo não governa, mas indica quem são os que vão governar. Em Atenas, porém, não havia governantes indicados que decidissem as questões importantes. Era o próprio povo que, pelo voto, tomava ele próprio, reunido em Assembléia Popular, as decisões últimas em todos os assuntos vitais. Nestas assembléias, em que todos os cidadãos eram convocados, qualquer pessoa que quisesse falar poderia tomar a palavra; só depois de todos os interessados serem ouvidos se procederia a uma votação. Na prática, porém, em circunstâncias como esta, era freqüente que muitas questões fossem de fato decididas não pelo povo, mas por aqueles que eram os melhores oradores e que conseguiam convencer a multidão de que deveria-se votar em um ou outro sentido.

Foi neste ambiente que alguns filósofos de muito pouca categoria, homens que tinham tido algum contato com as escolas pitagóricas da Itália ou que haviam passado algum tempo junto a algum filósofo importante, ou que simplesmente haviam lido as obras de alguns filósofos e possuíam algum apreço superficial pelo assunto começaram a organizar um segundo tipo de escola que, ao contrário da anterior, não era para sempre ou para maior parte da vida, mas para alguns meses, um ano ou no máximo alguns poucos anos. Tinham uma determinada finalidade que não era a busca da sabedoria, eram pagas e era comum tentar- se cobrar o máximo possível, dependendo da fama do mestre e das condições do lugar. Estas escolas basicamente ensinavam a falar em público. Eram escolas de oratória.

As pessoas que organizaram as primeiras destas escolas de oratória ou que ministravam estes cursos foram chamados pelos verdadeiros filósofos de sofistas. A palavra sofista vem de `sofia', termo que em grego significa sabedoria; era a mesma raiz que também constituía a palavra filosofia, mas não designava agora mais a verdadeira filosofia, mas uma caricatura da sabedoria.

As escolas dos sofistas aceitavam jovens que tinham posses e durante três ou quatro anos estes aprendiam as regras do uso da linguagem, a falar e a escrever bem, a expressarem-se em público. Os discursos de professores e alunos eram anotados e depois analisados e criticados. Os alunos eram exortados a ler bastante livros, os quais então na Grécia eram provavelmente mais disponíveis do que em qualquer outra parte do mundo. Entre os livros que os alunos dos sofistas eram exortados a ler estavam inclusive os dos filósofos, não porém, tendo em vista a busca da verdade ou da sabedoria, mas para aumentar a bagagem cultural e poder com isto falar melhor em público, o que, de fato, era o objetivo final e mais importante de todos.

Falar bem em público era o objetivo mais importante de todos porque isto possibilitava retorno monetário e poder. Quem soubesse falar bem em público poderia com isto ser eleito para algum cargo, poderia convencer os cidadãos a decidirem as questões importantes conforme ele julgasse mais correto ou mais conveniente, inclusive decisões tais como a declaração ou a cessação de uma guerra.

Durante toda a antigüidade foram estes os dois modelos fundamentais de educação disponíveis, um quadro bem diverso do da educação moderna.

25.

As linhas fundamentais deste quadro da educação antiga têm sua origem, portanto, antes de Cristo, na antiga Grécia.

Durante a época antiga as escolas não eram financiadas pelo governo, nem pelo governo democrático de Atenas, nem pelo governo imperial dos romanos, nem por qualquer outro governo que tivesse havido. Não havia ministério da educação para controlar o que fosse ensinado. Não havia uma opinião generalizada segundo a qual disponibilizar o ensino para todos seria uma obrigação dos governos, nem sequer que fosse uma obrigação das pessoas terem que se instruir. Poderia ensinar quem quer que quisesse ensinar e julgasse que tivesse o que ensinar, e poderia aprender quem estivesse disposto a aprender com quem quisesse ensinar e, fora do ensino elementar de escrita e leitura, o que havia na prática para ser ensinado era um ensino extremamente rígido ministrado pelos filósofos nas escolas pitagóricas e nas escolas que floresceram depois das de Platão e Aristóteles quase que exclusivamente na cidade de Atenas e o ensino de oratória que, a partir da Grécia, proliferou copiosamente e era ministrado em quase todas as cidades importantes.

Na verdade, a primeira vez em toda a história da humanidade em que surgiu alguém com a idéia de que havia alguma coisa que devesse ser ensinada a todos os homens sem exceção e que, ademais, havia alguém que tinha a obrigação de fazer com que todos tivessem acesso a este ensino foi quando, pouco antes de ascender ao Céu, Cristo Jesus dirigiu suas últimas palavras aos apóstolos e lhes ordenou que fossem ensinar a todos os povos da terra tudo quanto Ele próprio lhes havia ensinado.

Na antigüidade, ademais, não havia escolas para quem quisesse ser médico, não havia escolas para quem quisesse ser arquiteto ou aprender alguma profissão. Havia, certamente, o modo de aprendê-las, mas este modo não era através de uma escola no sentido que damos hoje a este termo. A medicina, a arquitetura e as profissões em geral não se ensinavam nas escolas. Quem quisesse ser médico deveria pedir a quem já o fosse que lhe permitisse ser seu ajudante; quando este médico falecia, aposentava-se ou julgasse que poderia testemunhar que seu discípulo havia aprendido a arte que ele próprio exercia, o antigo ajudante passava a exercer a medicina por si próprio.

A mesma coisa acontecia com a arquitetura e com todas as demais profissões. Era inconcebível na antigüidade que estas coisas fossem objeto de educação. Tais coisas não poderiam ser objetos de educação propriamente dita porque tratavam-se de simples técnicas, que cada um deveria-se esforçar-se como pudesse para aprender; a educação propriamente dita era algo que deveria ter por fim objetivos mais nobres. Mesmo no caso dos oradores, os quais, segundo os filósofos, ministravam um ensino que não era mais do que uma caricatura daquilo que a verdadeira educação deveria ser, os bons professores de retórica, passada a primeira época da sofística ateniense, supunham eles não estar ensinando uma técnica em suas escolas, mas estarem formando as qualidades que uma pessoa deveria possuir para exercer a cidadania como um homem livre.

Próximo ao fim do Império Romano no ocidente, surgiu um terceiro tipo de escolas. Foram as escolas de Direito, devido ao grande desenvolvimento e complexidade que as leis romanas alcançaram por esta época. Estas escolas desenvolveram-se, porém, a partir das escolas de oratória, pois a princípio eram advogados os grandes oradores.

26.

Observa-se, portanto, no mundo antigo, duas tendências educacionais básicas.

Nos filósofos encontra-se pouca ênfase nos estudos referentes à linguagem e uma grande importância dada aos estudos que desenvolvem a inteligência abstrata. Esta tendência vinha desde Pitágoras e mesmo desde Tales, que a história aponta como versados em matemática e astronomia. Incorporou-se, porém, ao patrimônio da civilização ocidental propriamente com Platão, que aconselha, na `República', aos que iriam estudar Filosofia, que se dedicassem antes ao aprendizado de quatro disciplinas que ele elenca como sendo a matemática, a geometria, a astronomia e a música. Tais como foram propostas por Platão, estas quatro disciplinas tinham grande afinidade entre si e podem ser consideradas em seu conjunto como ciências matemáticas. A astronomia da época não era, de fato, a moderna astrofísica, mas a astronomia de posição, em que as considerações geométricas e matemáticas eram fundamentais, e a música de que fala Platão não é o aprendizado da virtuosidade no cantar ou no tocar um instrumento, mas uma teoria da harmonia dos sons em que se estudava-se com ênfase, por exemplo, os modos das vibrações das cordas

Já os oradores davam ênfase aos estudos como gramática, lógica e retórica.

27.

Com o advento do Cristianismo, à medida em que o Império desmoronava e o ensino passava para as escolas monásticas, ambas estas tendências foram se fundindo em uma só, e estas várias disciplinas passaram a ser conhecidas como artes liberais.

As quatro disciplinas que Platão havia indicado como sendo fundamentais e introdutórias à Filosofia, isto é, a Matemática, a Geometria, a Astronomia e a Música, passaram a ser conhecidas pelo nome de Quadrivium, a as outras disciplinas tomadas como relevantes pelos oradores, como a Gramática, Retórica e Lógica, passaram a ser conhecidas pelo nome de Trivium.

Depois de Santo Agostinho começou-se gradualmente a considerar que o curso normal do aprendizado seria passar primeiramente pelo Trivium, que na época era também conhecido como `Verba', plural latino de `Verbum', termo que significa `palavra', pois neste primeiro ciclo o que deveria ser estudado relacionava-se principalmente com as palavras, para depois passar pelo Quadrivium, também conhecido como `Res', plural latino de `Res', termo que significa tanto `coisa' como seu plural `coisas'. O Quadrivium era, portanto, o estudo das coisas e o Trivium era o estudo das palavras.

Depois que o aluno passasse pelo Trivium e pelo Quadrivium teria, então, no ensino dado pelos mosteiros, maturidade para um estudo mais profundo não de Filosofia, mas das Sagradas Escrituras.

A concepção do ensino passou então por uma notável mudança. Na época de Santo Agostinho, do século IV para diante, as escolas de Filosofia estavam em decadência. As escolas de oradores eram mais comuns, mas a educação a que os cristãos passaram gradualmente a dar importância era a que consistia no Trivium, no Quadrivium e nas Sagradas Escrituras. Onde ficava a Filosofia neste conjunto? A Filosofia grega foi passando gradativamente ao esquecimento e, para ocupar o seu lugar, entraram as Sagradas Escrituras. Este outro sistema de ensino generalizou-se nos mosteiros cristãos desde o fim do Império Romano até o início da Idade Média devido em grande parte à influência de um livro escrito por Santo Agostinho, intitulado De Doctrina Christiana, em que ele descreve um ensino baseado nas artes liberais servindo de apoio ao estudo das Sagradas Escrituras.

28.

Estando as coisas configuradas deste modo, entre os anos 1000 e 1100 DC, uma série de circunstâncias fêz com que confluíssem para a cidade de Paris professores de grande sabedoria, alunos provenientes das mais variadas partes do mundo conhecido e a organização de certo número de importantes escolas.

Foi também nesta época que um jovem, proveniente da Alemanha, ingressou no Mosteiro de São Vitor então ainda recém fundado em Paris. Tornou-se profundo conhecedor das Escrituras, dos Santos Padres e da Ciência Sagrada constituída por ambas. Mais tarde, já como professor, organizou a escola que havia surgido anexa ao Mosteiro de São Vitor. Posteriormente este professor passou a ser conhecido como Hugo de São Vitor, e foi o primeiro estudioso que iniciou uma sistematização da doutrina contida nas Sagradas Escrituras como o seu tratado De Sacramentis Fidei Christianae, expressão que no colorido da linguagem da época significava "Os Mistérios da Fé Cristã". Antes dele uma tentativa semelhante só havia sido feita nos anos 700 por São João Damasceno no Oriente Médio; tratou-se, porém, de um caso isolado. A partir de Hugo de São Vitor o estudo da Sagrada Escritura começou a deixar de ser apenas o estudo do texto das Sagradas Escrituras e dos seus comentadores para incluir também o estudo da síntese da doutrina nelas contida.

Um dos discípulos de Hugo de São Vitor, Pedro Lombardo, antes de ter sido arcebispo de Paris, foi professor em outra escola situada, tal como o Mosteiro de São Vitor, também em Paris. Era a escola anexa à catedral de Notre Dame. Nesta época Pedro Lombardo redigiu um trabalho semelhante ao de Hugo, que veio a ser conhecido como Os Quatro Livros das Sentenças de Pedro Lombardo, ou simplesmente O Livro das Sentenças. Este livro veio a ser a origem de todas as grandes Summae Theologiae que viriam logo a seguir, inclusive a de Santo Tomás de Aquino.

29.

Foi da união em corporação dos professores e estudantes das escolas de Paris, tais como a do Mosteiro de São Vitor e da escola catedralícia de Notre Dame que surgiu, por volta de 1200 DC, a Universidade de Paris.

Nesta Universidade não era ministrado apenas o ensino superior. A Universidade de Paris ministrava, e nisto serviu de modelo para as demais universidades que foram surgindo, tanto o ensino secundário como o superior. Podia-se entrar nela com cerca de quinze anos, estudava- se o Trivium, o Quadrivium e depois Teologia. O ciclo completo dos estudos se estendia até os 35 anos, e seguia a metodologia iniciada por Hugo de São Vitor e Pedro Lombardo, na qual uma das características fundamentais era a busca dos trabalhos de síntese, coisa que, conforme já havia notado Hugo de São Vitor em seus textos sobre Pedagogia, é o resultado do cultivo, por parte dos alunos, da atividade da contemplação.

30.

Sucedeu, porém, que justamente nesta época, logo após Hugo de São Vitor e Pedro Lombardo, começaram a aparecer entre os estudiosos de Paris, após muitos séculos de esquecimento, as obras do filósofo grego Aristóteles, obras que em seu conjunto constituem o mais monumental trabalho de síntese que o pensamento antigo havia produzido.

Será importante examinar de que modo a obra de Aristóteles veio a reaparecer na cristandade precisamente nesta época e em Paris.

Na antigüidade as obras de Aristóteles não tiveram uma grande difusão como muitas outras a tiveram, devido não só à sua complexidade, como também ao fato de terem sido redigidas de uma forma extremamente complicada para serem entendidas. Alguns pensam que isto se deve ao fato de não haver sido o próprio Aristóteles quem as escreveu, sendo as obras de Aristóteles na realidade constituídas pelos apontamentos dos alunos que tomavam notas de suas aulas, talvez com alguma revisão por parte do mestre. Já segundo Plutarco, famoso escritor grego da antigüidade, teria sido o próprio Aristóteles quem as escreveu propositalmente neste estilo. Diz, de fato, Plutarco ao escrever a vida de Alexandre o Grande, ex-aluno de Aristóteles, que quando Alexandre já se encontrava na Ásia no comando dos exércitos macedônios que conquistariam para os gregos todo o mundo oriental, soube que Aristóteles havia publicado em livros alguns tratados de Filosofia. Alexandre, então, teria escrito a Aristóteles a seguinte carta:

"Alexandre a Aristóteles,
saudações.

Fizeste mal em editar os
tratados de Filosofia.
Em que eu, que fui teu discípulo,
irei superar aos demais homens,
se as coisas que tu me ensinaste
se tornam agora comuns a todos?
Gostaria de ser superior
antes pela melhor instrução
do que pelo poder".

Mas Aristóteles respondeu a esta mensagem, continua Plutarco, dizendo a Alexandre que este não se preocupasse, porque os seus livros não seriam de nenhum préstimo para o ensino ou o aprendizado, e que neste sentido seria indiferente se fossem ou não publicados, pois haviam sido escritos apenas para o uso daqueles que já haviam sido instruídos.

De fato, qualquer que seja a versão certa dos fatos ocorridos, o que se pode constatar é que as obras de Aristóteles são muito diversas das que nos deixou Platão, as quais, embora profundas, são de leitura fácil e agradável. Em contraposição a elas, as de Aristóteles são praticamente impossíveis de serem entendidas pela simples leitura, e este foi um dos principais motivos para a sua pouca difusão, não obstante a sua importância.

Não bastasse este já não pequeno problema, coincidiu que a época em que viveu e floresceu Aristóteles foi a mesma em que Alexandre, rei dos Macedônios, subjugou não apenas todo o Oriente, mas também, e em primeiro lugar, toda a Grécia. Era natural, portanto, que os gregos tivessem ódio pelos macedônios. Sob este ponto de vista, não era a situação ideal para Aristóteles que vivia e filosofava entre os gregos não apenas ter sido o professor de Alexandre, como ademais ele próprio, Aristóteles, ser também um macedônio, embora tivesse vivido a melhor parte de sua vida em território grego. Ponderadas estas coisas, quando morreu o Filósofo, seus discípulos julgaram que seria uma boa medida de segurança esconderem suas obras no sótão da casa de um certo Neleu, no que parece terem tido bastante razão, pois estas obras ali permaneceram, esquecidas e intactas, durante quase trezentos anos.

Pouco antes de Cristo estas obras reapareceram, na mesma época em que os romanos invadiam e conquistavam a Grécia. As obras do Filósofo foram então levadas para Roma, onde os romanos encarregaram ao filósofo Andrônico de Rodes que as colocasse em ordem e as publicasse.

A notícia de que haviam chegado e Roma as obras do grande Aristóteles empolgou a nascente intelectualidade romana. Os romanos, finalmente, iriam tomar conhecimento do que havia escrito este grande sábio.

A expectativa foi longa, pois a obra era, além de extensa, bastante complexa, e todos sabiam que devia tratar-se de alguma coisa de transcendental importância.

Quando Andrônico acabou o trabalho, porém, que decepção! Sim, talvez fosse alguma coisa transcendente, mas a linguagem era tão concisa e difícil que quase ninguém conseguia entender alguma coisa, e poucos foram os que se animaram a passar da simples leitura ao trabalho paciente e necessário para decifrar o que estava ali contido. O próprio Cícero afirmou, alguns anos mais tarde, que embora as obras de Aristóteles estivessem já disponíveis em Roma, pouquíssimos eram aqueles que as conheciam verdadeiramente. Tais obras, pois, acabaram circulando entre um grupo muito restrito de filósofos que, ademais, em sua maioria não tinha um interesse direto nos mesmos.

Por volta do ano 500 DC estes poucos filósofos que tinham algum interesse por Aristóteles emigraram para a Síria. Quando, pouco tempo mais tarde, os muçulmanos conquistaram a Síria, foram estes que resolveram finalmente compreender a fundo o que Aristóteles realmente tinha a dizer. As obras de Aristóteles foram traduzidas para o árabe e, da Síria, já em versão árabe, atravessaram o Egito e o norte da África e, margeando todo o deserto do Saara, chegaram finalmente à Espanha, quando se deu a conquista muçulmana da península Ibérica.

Foi então que, nos anos 1100 DC, na Espanha, os cristãos começaram a entrar em contato com Aristóteles, não com o Aristóteles original em grego, que ninguém sabia bem onde estava, mas com o Aristóteles traduzido pelos muçulmanos em língua árabe. Percebendo a importância daqueles livros, o arcebispo de Toledo reuniu, vindos de toda a Europa, homens que conhecessem ao mesmo tempo árabe e latim os quais constituíram um grupo de tradutores que aos poucos foi vertendo as obras de Aristóteles para uma língua que pudesse ser lida pelos sábios cristãos. De Toledo, à medida em que o trabalho ia avançando e novas obras de Aristóteles iam surgindo, cópias das traduções feitas eram enviadas para Paris.

Pode-se avaliar, pois, todo o tamanho da várias vezes secular viagem que os escritos do Filósofo tiveram que enfrentar antes de chegar ao pleno conhecimento de nossa civilização. Depois de escondidos trezentos anos em um sótão, foram capturados pelos romanos, viajaram da Grécia para Roma, de Roma para a Síria, da Síria para a Espanha atravessando de todo o norte da África, da Espanha para a França, vertidas do grego para o árabe e do árabe para o latim, tudo isto ao longo de aproximadamente mil e quinhentos anos. As obras foram aparecendo finalmente na França aos poucos, juntamente com diversos comentários de filósofos árabes, mas mesmo isto não significou que a tarefa estava concluída. A extrema dificuldade de interpretação daqueles textos obrigou os estudiosos a um debate para penetrar no significado exato dos ensinamentos de Aristóteles que, na Europa, durou ainda mais dois séculos, no qual só se chegou a um consenso final com a série dos Comentários de Santo Tomás de Aquino às obras do Filósofo.

À medida em que estas obras foram surgindo na França e iam sendo debatidos e interpretados, aos poucos também começava a ficar evidente que elas formavam um quadro orgânico de uma monumental síntese filológica como até então jamais se havia visto. Independentemente disto, desde o início dos anos 1100 DC, devido em grande parte à obra empreendida por Hugo de São Vitor, era precisamente na direção de uma síntese como esta, mas no campo da Teologia, que se encaminhavam os estudos dos sábios parisienses.

Não tardou, com isso, que se percebesse que o estudo daquela filosofia que estava surgindo nos meios parisienses era não só um precioso instrumento para a obra que vinha sendo empreendida como também, do ponto de vista pedagógico, excelente preparação para os que se aproximavam do estudo da Ciência Sagrada. Os diversos tratados da obra de Aristóteles passaram gradualmente a fazer parte do ensino universitário e, de um certo modo, pode-se dizer que a seqüência de estudos em Paris passou a ser o Trivium, o Quadrivium, a Filosofia e a Teologia, se bem que, na prática, a Filosofia era ministrada geralmente em conjunto com as demais artes liberais.

32.

Mas o que se deve perceber aqui como fato de fundamental importância é que a Universidade de Paris, embora estivesse voltada para o estudo da Teologia, não era uma instituição como os atuais seminários.

Em um seminário podem ser aprendidas as mesmas coisas, mas quem entra em um seminário geralmente tem um objetivo bem claro que é o de se tornar um sacerdote.

Os que, porém, ingressavam na Universidade de Paris não o faziam, em princípio, com o objetivo de se tornarem sacerdotes, nem era este o objetivo da Universidade. Os que para lá se dirigiam desejavam em princípio apenas aprender. O que os fazia afluírem a Paris era algo que, dentro de uma perspectiva cristã, possuía notável afinidade com o amor à sabedoria que animava os antigos filósofos. Se, depois, muitos se tornavam sacerdotes, isto constituía algo que estava além das intenções da Universidade. O conhecimento que trazia os estudantes para Paris era, por si só, algo já muito valioso e importante para os que procuravam, independentemente de qualquer outra circunstância, mesmo que fosse a ordenação sacerdotal. Havia muitos outros caminhos mais fáceis e diretos para o sacerdócio para quem o desejasse que não o estudar em Paris, onde a seqüência completa de estudos ia dos quinze aos trinta a cinco anos, aproximadamente.

33.

Eram, em grandes linhas, as orientações gerais das idéias pedagógicas no mundo civilizado até a Renascença. Foi então que estas idéias começaram a mudar.

A época em que foi concebida a seqüência do Trivium e do Quadrivium foi a época logo após Santo Agostinho, embora a primeira tivesse suas raízes na pedagogia dos oradores e a segunda no próprio Platão. A época em que se iniciou a formação das primeira universidades foi a época de Santo Anselmo e Hugo de São Vitor. A época em que foi introduzida a Filosofia nos estudos universitários foi a de São Boaventura e de Santo Tomás de Aquino. Esta foi a época dos primeiros Concílios da segunda coluna da tabela comentada na primeira parte desta Introdução, os Concílios de Latrão, do primeiro ao quarto e os dois de Lião.

A partir daí todo este sistema começou a decair. Esta decadência do sistema de ensino foi uma das primeiras causas que levaram ao Renascimento, um dos primeiros fatores que influíram em seu surgimento.

33.

As primeira universidades haviam-se formado espontaneamente, sem iniciativa alguma por parte de governantes ou de autoridades. Eram corporações de alunos e professores que atravessavam o continente europeu apenas em busca da sabedoria das coisas de Deus.

Mas em torno do ano 1200 DC a Universidade de Paris foi reconhecida pelas autoridades; foram-lhe concedidas inúmeros privilégios, tanto por parte da Santa Sé como por parte dos reis. Aos poucos os professores passaram a gozar de uma posição conceituada na sociedade pelo cargo que ocupavam. No início, se eles eram pobres ou ricos, bem posicionados ou não perante a sociedade, isto se devia a fatores independentes de suas relações com a Universidade. Vários destes primeiros professores, assim como também muitos alunos, chegaram a pedir esmolas para sobreviverem e os alunos mais ricos eram quem freqüentemente os ajudavam. Mas à medida em que crescia o prestígio da instituição e em outras partes do mundo fundavam-se outras universidades, algumas das quais dedicadas ao estudo do Direito ou da Medicina, seus catedráticos passaram a ser pessoas de préstimos disputados pelas cortes. Gradualmente estes professores passaram a gozar de uma posição conceituada na sociedade em que viviam devido precisamente ao cargo que ocupavam; a cátedra se havia tornado um posto importante e a universidade passou a atrair pessoas pela posição social e não mais por causa da busca da sabedoria. Precisamente por este motivo, entre outros, tanto o nível como a concepção começaram a cair.

Um pequeno detalhe veio a se transformar em uma inovação capaz de provocar uma completa transformação nos pressupostos implícitos em todo o sistema educacional. Foi a invenção do diploma, o qual, sob a forma de "licentiae docendi" ou "licenças para ensinar", surgiu pela primeira vez na história humana no início dos anos 1200 DC. Conferidos pela Universidade, reconhecidos pela Santa Sé e pelas nações então emergentes na Europa, as "licentiae docendi" tiveram o mérito de contribuir poderosamente para a expansão quase exponencial que a instituição universitária teve em toda a Europa nos séculos seguintes. Mas poucos foram os que tiveram a perspicácia de perceberem que talvez houvesse algum motivo para que Platão, afinal de contas, jamais houvesse dado um diploma nem a Aristóteles, nem a nenhum de seus alunos, assim como também não o haviam feito, nas instituições sobre as quais eram responsáveis, Pitágoras ou Hugo de São Vitor. Em meio ao sucesso que a nova instituição universitária conquistava rapidamente, poucos foram no século XIII os que perceberam com suficiente clareza que com isto passava-se a atrair para a parte mais nobre da educação humana um novo tipo de aluno conduzido por motivações bastante diversas daquelas que conduziam os homens dos séculos anteriores quando aspiravam ao conhecimento superior. Daí para a alteração de toda a orientação fundamental do ensino bastariam apenas mais alguns passos, com a perda de um patrimônio de consciência e conhecimento dificilissimamente reparável e já impossível de ser corretamente avaliado pelos que nele deveriam estar interessados.

34.

Ruy Nunes, professor brasileiro de História da Educação, coletou em sua obra "História da Educação na Idade Média" alguns dados que testemunham este processo de decadência do ensino a partir dos anos 1300 DC.

"Tem razão Le Goff",

diz Ruy Nunes em seu livro,

"ao chamar a atenção
para a distância sempre maior
entre o trabalhador intelectual
das escolas medievais
dos anos 1100 e 1200
e o catedrático
ou o professor mercenário
dos anos 1400.
A sociedade desenvolveu-se,
apareceram novos empregos,
o dinheiro ganhou mais importância
que nas épocas anteriores,
enquanto a vida intelectual amortecia
e só chispeava, ainda,
nos raros sábios que sustentavam
a honra da estirpe
dos primeiros pobres e devotos estudiosos".

"Neste ambiente
o intelectual da Idade Média
aos poucos foi desaparecendo
para ser substituído pelo humanista,
que apreciava o ócio e o lazer
da aristocracia antiga,
abandonando uma das principais tarefas
do intelectual,
ao perderem o contato com o povo
e ao desfazerem o liame
entre a ciência e o ensino".

35.

Ruy Nunes recolhe ainda o testemunho de Ricardo de Bury, chanceler da Inglaterra no início dos anos 1300 DC, sobre a situação escolar de seu tempo.

Segundo o testemunho de Ricardo, ele compara

"os antigos e os modernos
quanto à devoção pelo estudo".

Os antigos na época de Ricardo de Bury eram, por exemplo, Santo Tomás de Aquino; os modernos eram os que estavam vivendo às vésperas da Peste Negra, a qual, porém, ainda não se havia abatido.

Os antigos, diz Ricardo de Bury, dedicavam a vida inteira à filosofia, enquanto que os modernos,

"os contemporâneos de nosso século,
só lhe consagram
alguns poucos anos da juventude,
justamente na época
das paixões e dos vícios,
quando poderiam tirar mais proveito
de tal estudo
em uma idade mais avançada,
mais serena e propícia à reflexão".

O motivo deste abandono dos estudos filosóficos é apresentado com as seguintes expressões:

"Todos seguem os estudos
que levam ao ganho,
mas poucos aprendem para saber".

36.

O testemunho de Ricardo de Bury é confirmado por vários outros, e esta é provavelmente a primeira vez na história que aparecem testemunhos concordes que o nível de ensino estava caindo em toda a parte. Antes, tanto quanto temos conhecimento, não se tem notícia de testemunhos uniformes deste tipo. Ao contrário, muitas vezes há testemunhos de que o nível de ensino estava subindo. Excluímos naturalmente o período da desintegração do Império Romano pelas invasões bárbaras; mas, mesmo neste caso, nos mosteiros o nível do ensino subia. Dos anos 1300 DC em diante, porém, a humanidade sempre passou a queixar-se de que o nível do ensino estava baixando, desde aquela época até os dias de hoje. No século XIV, no século XV, até o século XX, há declarações contínuas em toda a história referentes a uma queda no nível do ensino. No Brasil contemporâneo os que trabalham em educação afirmam de modo geral que o nível do ensino tem diminuído muito de uma década para cá; e os educadores de dez anos atrás faziam o mesmo tipo de afirmação em relação aos períodos precedentes e, curiosamente, o mesmo se verifica sucessivamente.

Não se podem desprezar afirmações tão generalizadas como algo que careça de valor objetivo. O ser humano não é de natureza intrinsecamente pessimista e sabe reconhecer uma atividade em progresso. Assim é que parece haver um certo consenso na avaliação dos homens no sentido de que a tecnologia, por exemplo, esteja subindo de nível.

Por outro lado, porém, se admitirmos que as afirmações históricas sobre o nível do ensino tenham caráter objetivo, deveríamos perguntar como é possível que ele não tenha se pulverizado por completo, se é verdade que o nível do ensino esteja caindo continuamente desde o ano de 1300 até os dias de hoje? Se há, portanto, algum valor objetivo nestas afirmações históricas sobre o ensino, qual seria ele, neste caso, precisamente?

Uma abordagem mais completa deste paradoxo é algo que está além do objetivo desta introdução. Fica aqui registrado, porém, que foi às vésperas do surgimento da Peste Negra que começou a se fazer sentir este fenômeno na área educacional, o da existência de testemunhos contínuos e generalizados por parte dos educadores de uma decadência dos níveis dos estudos, a respeito dos quais, investigados os fatos, verifica-se que efetivamente não eram destituídos de fundamento na realidade.

37.

A decadência do ensino a partir dos anos 1300 DC manifestou-se também no deslocamento do objeto de interesse dos estudos.

Em vez das sínteses, que pressupõem o exercício da contemplação, a atenção dos estudiosos passou a se deslocar para outros objetos os quais, considerados em si mesmos, pressupunham outras formas de atividade da inteligência. Alguns destes objetos foram a lógica, determinadas questões de teoria política e o estudo analítico da natureza.