INTRODUÇÃO HISTÓRICA
À PÁGINA
SOBRE O CRISTIANISMO

- Terceira Parte -

III/A



01.

Na primeira parte desta introdução explicamos o que é um Concílio e dissemos que o Concílio Vaticano II foi o vigésimo primeiro de uma série que vem desde os primórdios do Cristianismo. Por causa disso, para entender a posição do Vaticano II, começamos a falar dos anteriores para situá-lo no seu devido contexto.

Como os Concílios são convocados apenas para tratar de problemas muito graves, esta recapitulação se tornou uma exposição dos grandes problemas com que a Igreja se defrontou até hoje.

Dividimos então os vinte e um Concílios Ecumênicos em uma tábua de três colunas.

Na primeira coluna estavam os oito primeiros Concílios, uma época em que a preocupação dos Concílios era predominantemente doutrinal, devido ao ambiente cultural da região oriental do Império Romano, o qual remonta, em sua causa, à conquista de Alexandre o Grande a qual espalhou o helenismo na região oriental do mundo civilizado da época.

02.

Adveio então uma segunda época, a dos Concílios de número nove a dezenove, onde a preocupação foi de ordem disciplinar, por causa do advento do feudalismo, que fêz uma devastação tanto na estrutura do poder temporal como na organização da Igreja.

Os Concílios de nove a dezenove foram uma tentativa de se obter a reforma da Igreja, entremeados de mil e uma circunstâncias, até que no último Concílio da série, o Concílio de Trento, conseguiu-se obter finalmente o que se desejava.

Os problemas com que a Igreja se têm defrontado do Concílio de Trento em diante não foram mais problemas de reforma, no sentido que este termo possuía desde a época do feudalismo até o Renascimento.

Até aqui temos o assunto desenvolvido na primeira parte.

03.

Na segunda parte mostramos o reverso da medalha.

Foi mostrado como na mesma época em que o feudalismo fêz uma devastação na Igreja, fêz outra devastação no poder temporal dos reis, e como a Europa ficou reduzida àquela multidão de feudos onde cada um era só por si.

Assim como a Igreja durante esta época tentou emancipar- se da organização feudal, assim também o poder civil o tentou. Comentamos as estratégias de que o poder civil se utilizou para tanto e como, inclusive, assim como a Igreja apoiou o desenvolvimento das Universidades em que predominava o estudo da Teologia, assim também o poder civil se apoiou nas Universidades em que predominava o estudo do Direito.

Mas, quando a série dos Concílios que vão do Nono ao Décimo Nono chegou à sua metade, quando a Igreja estava a caminho de sua reforma e o poder civil estava alcançando uma organização mais eficiente no âmbito das nações então emergentes, ambas estas organizações entraram em choque. Foi a época do Concílio de Viena, do Cisma que houve na Igreja, da Peste Negra e da época conhecida como o Renascimento que veio logo a seguir, justamente às portas da qual demos por encerrada a segunda parte desta introdução.

Esta terceira parte, portanto, reinicia precisamente neste ponto.

04.

Conforme pode-se observar, a história da Igreja não foi uma história fácil. Foi, ao contrário, uma história cheia de dificuldades, nem sempre provocadas por fatores puramente externos. Ao contrário, as dificuldades que ela teve que enfrentar muitas vezes tiveram sua origem em pessoas que pertenciam à própria Igreja.

Cabe então aqui perguntar, antes de continuar nossa exposição, se quando aconteciam estes eventos a Igreja não teria se desviado do plano que seu fundador, Jesus Cristo, havia reservado para ela.

Isto é, cabe perguntar se, evoluindo a história da Igreja como evoluíu, se a Igreja não teria deixado de ser aquilo que Cristo havia previsto para ela, se o próprio Cristo, retornando algum dia ao mundo, não desconheceria a Igreja como fruto de sua obra na terra.

Ou, para ser mais exato, se Cristo não teria concebido a Igreja como uma instituição constituída apenas de homens imaculados e sem defeito e se, por este motivo, com o desenrolar de sua história real, a Igreja não teria com isto perdido a sua santidade.

E, mais ainda, se perdendo a Igreja a sua santidade, teria algum significado para nós, que estamos procurando compreender o Evangelho, investigar os motivos que levaram a Igreja no século XX a convocar o Concílio Vaticano II.

05.

São perguntas extremamente sérias, que não podemos passar sem um primeiro exame.

Deve-se dizer, pois, que um exame mais atento dos textos do Evangelho mostra que Jesus Cristo, ao contrário do que ocorre freqüentemente com aqueles que, como nós, começam a abordar com um pouco mais de detalhe a história da Igreja, não teve ilusões sobre o que seria a história futura da instituição que estava fundando. É muito importante fazer referência a isto porque, se examinamos a história da Igreja e a percebermos diversa do que esperávamos em um primeiro momento que ela deveria ter sido, a suposição de que nada há de mais profundo a se buscar nela é apenas o próximo passo.

Ao contrário, porém, Cristo evidentemente soube o que aconteceria ao longo da história da Igreja e, não obstante isso, entregou a sua vida para fundá-la. Se o que tivesse acontecido depois não correspondesse ao seu objetivo, Ele, que já o sabia de antemão, não teria pago um preço tão alto. Isto mostra que o

"tesouro escondido"

de que Jesus fala no Evangelho (Mt. 13, 44) não está tão na superfície como as pessoas às vezes gostariam que estivesse.

06.

Numerosas passagens do Evangelho, de fato, todas elas escritas fora de qualquer dúvida antes de todo o desenrolar da história da Igreja, mostram com abundante evidência que Jesus soube o que aconteceria à instituição que Ele estava prestes a fundar.

Destas, a passagem que é talvez a mais clara de todas está no décimo terceiro capítulo do Evangelho de São Mateus. Nela Jesus contou primeiro esta parábola:

"O Reino dos Céus é semelhante
a um homem que plantou
boa semente de trigo no seu campo.

Enquanto o homem dormia,
veio o inimigo,
semeou joio no meio do trigo
e foi-se.

E, tendo crescido o trigo
e dado o fruto,
apareceu também o joio.

Chegando os servos do pai de família,
disseram-lhe:

`Senhor, porventura não semeaste tu
boa semente de trigo
no teu campo?
De onde veio, pois, o joio?'

Ele disse:

`Algum homem inimigo
fêz isto'.

Os servos disseram-lhe:

`Quereis que vamos
e o arranquemos?'

Ele respondeu-lhes:

`Não, para que talvez não suceda
que arrancando o joio
arranqueis juntamente com ele
o trigo.
Deixai crescer uma e outra coisa
até a ceifa,
e no tempo da ceifa direis
aos segadores:
Colhei primeiramente o joio,
e atai-o em feixes, para queimar;
o trigo, porém,
recolhei-o no meu celeiro".

Mt. 13, 24-30

Ora, o que é impressionante nesta parábola é que, seis versos mais adiante o próprio Jesus, rogado para tanto pelos Apóstolos, interpretou a mesma parábola que Ele havia exposto.

Na interpretação de Jesus (Mt. 13, 37-43), o homem que semeou a boa semente de trigo é Ele próprio, Jesus Cristo.

O campo em que a semente foi lançada, ainda na interpretação de Jesus, é o mundo.

A boa semente seriam os bons cristãos, os

"filhos do Reino".

Logo depois que Ele, Jesus, houvesse semeado sua boa semente no mundo, continua a interpretação de Jesus, durante a noite viria o demônio, o inimigo, que semearia uma outra semente diferente daquela que havia sido semeada, no mesmo campo onde Jesus havia lançado a sua. O joio, continua Jesus, são aqueles que são filhos do demônio.

Porém, ao escolher para a sua parábola as figuras do trigo e do joio, Jesus quis dizer algo mais do que incluíu neste ponto em sua interpretação da parábola, algo que era tão evidente para aqueles homens que conviviam junto aos trigais da Palestina que não precisava ser mencionado. Jesus deixou neste ponto de dizer que o joio é uma planta igual ao trigo em todos os detalhes e, portanto, impossível de ser diferenciada do trigo, exceto por um detalhe. Este importante detalhe para a interpretação da parábola consiste em que o joio não se diferencia em nada do trigo até a época da colheita; chegada porém, a época da colheita, verifica-se que o joio, que até então era impossível de ser diferenciado do trigo, ao contrário do verdadeiro trigo, não dá fruto algum na espiga. Só, portanto, na época da colheita, quando ambas as plantas estão maduras, é que se torna possível saber quem era o trigo e quem era o joio.

Os primeiros cristãos já haviam percebido a importância desta observação para o entendimento desta parábola de Cristo. Diz, de fato, São Jerônimo, escrevendo por volta do ano 400 DC o seu Comentário ao Evangelho de São Mateus, que

"entre o trigo e o joio,
enquanto ainda são erva,
e a cana ainda não produziu espiga,
há uma grande semelhança
e não há nenhuma
ou apenas uma pequeníssima
diferença para poderem
ser diferenciados".

Migne,
Patrologia Latina
26, 93

Ora, na continuação da interpretação da parábola do joio e do trigo que Jesus ofereceu aos Apóstolos, ele diz que este

"tempo da ceifa
é o fim do mundo".

Mt. 13, 39

De modo que quer nos parecer que nesta parábola Jesus quis relatar toda a história da Igreja, pois ela se inicia com a semeadura, que é a própria obra de Jesus enquanto Ele estêve na terra, e termina com a ceifa que é, segundo suas palavras, o fim do mundo.

Jesus, portanto, soube que logo após a sua pregação a Igreja atravessaria até o fim de sua história sérios problemas internos, que a ela pertenceriam homens bons e maus, e que não seria possível uma purificação radical dentro da Igreja porque a planta daninha que foi semeada às escondidas seria exteriormente de muito difícil distinção daquela que Ele mesmo havia semeado a não ser, segundo a parábola parece querer dar a entender, próximo ao fim dos tempos, quando esta distinção começaria enfim a se tornar evidente. Até lá só o Senhor sabe, com certeza,

"quem são seus".

2 Tim. 2, 19

E, não obstante Jesus saber de tudo isto antes de morrer, apesar disso Ele ofereceu sua vida a Deus para que a Igreja fosse fundada. Ele evidentemente julgou que valeria a pena pagar este preço; apesar de toda a sua história futura, Jesus julgou que a Igreja, mesmo com o joio misturado ao trigo, estaria cumprindo suficientemente o papel que Ele esperava dela e que motivou a sua vinda ao mundo.

A questão então é compreender que papel é este.

07.

Na verdade, Jesus, ao fundar a Igreja, fêz mais do que apenas dar início a uma sociedade qualquer.

Justamente quando, tendo ressuscitado, Ele se despediu pela última vez dos Apóstolos, após ter-lhes dado ordem de ensinar a todos os povos tudo quanto Ele próprio lhes havia ensinado, isto é, justamente quando a história da Igreja estava prestes a se iniciar, no mesmo livro em que nos foi transmitida a parábola do joio e do trigo e sua interpretação, Jesus acrescentou estas que foram, segundo o Evangelho de São Mateus, suas últimas palavras:

"Eis que eu estarei convosco
todos os dias,
até a consumação dos séculos".

Mt. 28, 20

Ou seja, até aquele dia em que o joio puder distingüir-se do trigo.

08.

Pode-se ver, portanto, que Jesus não prometeu santidade ilimitada a todos quantos fizessem parte da Igreja; ao contrário, previu claramente que na Igreja haveria bons e maus convivendo uns com os outros sem que fosse possível aos homens distingüir uns dos outros com precisão, nem separá-los completamente sem cometer erros e gravíssimas injustiças, piores do que haveria se não se tentasse uma separação radical.

No entanto, embora Jesus não tivesse prometido isto à Igreja, prometeu-lhe uma série de coisas e é por este motivo, e não pelo anterior, que a Igreja é dita santa e que pareceu bem a Cristo Jesus entregar sua vida em sacrifício para fundá-la.

Mas antes de aprofundar esta questão, temos que examinar ainda algumas outras coisas que Jesus não prometeu.

09.

Conforme foi dito, Jesus não prometeu a santidade a todos os membros da Igreja.

Mas é de se observar também que Jesus nem sequer prometeu a santidade aos membros da hierarquia, visto que não a prometeu sequer aos Sumos Pontífices.

As promessas que Jesus fêz aos Sumos Pontífices, na pessoa de Pedro, contidas em Mt. 16, 18-19, um texto já citado, nada dizem em relação à santidade. Segundo esta passagem, falando a Pedro, Jesus teria dito:

"Tu és Pedro,
e sobre esta pedra edificarei
a minha Igreja,
e as portas do inferno
não prevalecerão contra ela.

Dar-te-ei as chaves do Reino dos Céus,
e o que ligares na terra
será ligado nos Céus;
e o que desligares na terra,
será desligado nos Céus".

Jesus aqui não prometeu santidade aos Sumos Pontífices, sucessores de Pedro a quem foi feita esta promessa; mas, por outro lado, prometeu duas outras coisas muito importantes.

10.

A primeira é que as portas do inferno não prevaleceriam contra a Igreja construída sobre a pedra que é Pedro e, na sua pessoa, aos Sumos Pontífices que lhe sucederiam.

O sentido claro desta promessa é que na Igreja construída sobre o Soberano Pontífice não seria possível vir a ser destruído nada do que pertence à essência do Evangelho que Jesus quis deixar no mundo até o fim dos tempos. Se alguma coisa essencial ao Evangelho fosse perdida com o decorrer da história entre aqueles que estão unidos ao Soberano Pontífice, de tal maneira que aqueles que estivessem buscando a plenitude do Evangelho se vissem obrigados a procurá-la em outros lugares, sabe-se lá onde, esta promessa não teria sido cumprida.

Em outras palavras, Jesus está prometendo conservar intacta sua obra entre os homens até o fim dos tempos para todos aqueles que a desejarem e está dizendo, ademais, onde ela pode ser procurada com a segurança do aval de sua promessa.

11.

A segunda promessa que Jesus fêz nesta passagem citada é que Ele próprio daria a Pedro e aos seus sucessores no Supremo Pontificado as chaves do Reino dos Céus, de tal maneira que tudo o que fosse assim ligado na terra seria ligado no Céu, e tudo o que fosse desligado na terra seria também desligado no Céu.

Isto significa que as decisões que os Sumos Pontífices julgassem que devessem ser tomadas para a continuidade da obra de Jesus até o fim dos tempos seriam sancionadas de antemão pelo mesmo Jesus até o fim dos tempos.

Está implícita nesta promessa que tais decisões jamais poderiam vir a destruis nada do que pertence à essência do Evangelho pois, se este fosse o caso, Jesus estaria se contradizendo com a promessa anterior, segundo a qual as portas do inferno não poderiam prevalecer contra a Igreja.

Isto significa que Jesus quis garantir que jamais poderia vir a introduzir-se algo que destruísse o que Ele próprio havia instituído e desejado preservar integramente até o fim dos tempos com qualquer decisão que os Sumos Pontífices tomassem introduzindo alguma norma disciplinar dentro da Igreja, alterando algum rito, ou dando algum ensinamento em assuntos que dissessem respeito ao Evangelho com a clara intenção de passarem a ser algo "ligado entre o Céu e a terra".

12.

Entre as promessas que Jesus fêz à Igreja temos também a já citada, a de que Jesus permaneceria com ela todos os dias até o fim dos séculos; os bons não seriam separados dos maus mas, apesar disso, Cristo estaria sempre presente na Igreja.

Esta promessa se realizou de muitos modos. Um deles, porém, havia sido profetizado mais de seiscentos anos antes de Cristo quando, falando sobre a obra do Messias que haveria de vir, assim se expressou Isaías, falando em nome de Deus:

"Eis o meu servo, que eu amparo,
o meu eleito, a delícia do meu coração.
Coloquei sobre ele o meu espírito,
e ele levará o direito às nações.

Não gritará, nem levantará a voz,
não se fará ouvir pelas praças;
não quebrará a cana rachada,
nem apagará a mecha que ainda fumega.

Mas com firmeza promoverá o direito,
sem ceder, nem deixar-se abater,
até que tenha implantado o direito,
e a sua doutrina, que praias distantes esperam".

Is. 42, 1-4

Nesta profecia Isaías não se refere apenas à vida terrena de Cristo; durante a sua vida terrena Cristo não levou o direito divino às nações, mas limitou-se a ensinar em Israel. No entanto, Isaías diz aqui do Messias que

"Ele levará o direito às nações".

Portanto, não pode estar se referindo apenas à vida terrena de Cristo. De fato, Cristo levou o direito divino às nações após a sua morte e ressurreição, pela sua presença na Igreja, quando com firmeza e perseverança promoverá o direito, como diz o Profeta,

"sem ceder, nem deixar-se abater"

pelos pecados dos homens dos quais ele não prometeu deixar a Igreja imaculada.

"Não gritará, não levantará a voz,
não se fará ouvir pelas praças",

mas na verdade é Ele o Mestre que prega em meio ao joio e o trigo da Igreja, em que estão preservados os tesouros contidos no Evangelho; Ele mesmo que já havia dito, em Mateus 23, 8:

"Não queirais ser chamados mestres,
porque um só é o vosso Mestre,
o Cristo".

Este é o Cristo que

"Não quebrará a cana rachada,
não apagará a tocha que fumega",

da mesma forma que não dará ordem aos anjos para separarem o joio do trigo enquanto o joio não se tornar claramente distingüível do trigo.

De fato, para que serve uma tocha que não está mais acesa, mas apenas fumega? Para nada, assim como o joio. Porém, enquanto ela não estiver totalmente apagada, o Cristo, diz Isaías, não a apagará.

E para que serve uma cana rachada? É algo que, na realidade, deveria ser jogado fora; como, porém, ainda não está totalmente quebrada, mesmo que inútil, Cristo, da mesma forma que na parábola do joio, não a jogará, enquanto não terminar de se quebrar por si.

Finalmente, o que significam aquelas palavras finais de Isaías sobre a obra de Cristo, segundo as quais

"não se deixará abater,
até que tenha implantado na terra o direito
e sua doutrina,
que praias distantes esperam",

senão o mesmo que se observa, quando se examina mais profundamente a história da Igreja, que há como que alguma coisa tentando continuamente abrir caminho e irromper dentro desta história?

A mesma coisa se observa também na história individual dos homens santos que, dentro da Igreja, conseguiram encontrar o caminho do Cristo. Dele é que Santo Antão dizia, no século IV, em uma carta aos monges de Arsinoé:

"Irmãos caríssimos,
a todos vós que vos preparais
para vos aproximardes do Senhor,
persuadí-vos bem que vosso ingresso
e vosso progresso na obra de Deus
não são obra humana,
mas intervenção do poder divino
que não cessa de vos assistir".

13.

Por conseguinte, quando se diz que a Igreja é santa, o que se quer dizer com isto é que ela está unida como um corpo a uma cabeça santa, a Cristo Nosso Senhor, fonte de toda a santidade, da qual dimanam as riquezas da bondade divina, e que nela se preservam, até o fim dos tempos, por promessa de Cristo, tudo quanto é essencial ao Evangelho e todos os meios que Cristo instituíu para operar a verdadeira santidade.

14.

Em conformidade com esta afirmação está o fato de que, mesmo em um período tão conturbado quanto a primeira metade dos anos 1400 de que tratamos na segunda parte, o período em que encontramos a Peste Negra e os quarenta anos do Cisma, o trigo continuava a florescer.

São desta época, dentre muitos outros, São Bernardino de Siena, franciscano, célebre por suas pregações que muitas vezes convertiam cidades inteiras; o bem aventurado Fra Angelico, sacerdote dominicano, que dedicou sua vida à arte sacra; Santa Rita de Cássia, agostiniana depois de ter sido esposa e mãe de família, de quem a história registra que, ao falecer assistida por suas irmãs de claustro durante a madrugada de seu aniversário em 22 de maio de 1457, no momento em que cerrava os olhos, já bem alta a noite, os sinos do convento, sem que ninguém os tocasse, começaram a repicar festivamente, acontecendo a mesma coisa com os demais sinos dos campanários da cidade; e, dentre outros ainda, também Santo Antonino, amigo de Fra Angelico, mais tarde arcebispo de Florença.

Com dezesseis anos, desejando seguir a Cristo, Antonino havia pedido ingresso no convento dos dominicanos de Fiesole, o mesmo em que havia ingressado Fra Angelico. O responsável, Frei Dominici, vendo-o ainda criança, para não magoá-lo, respondeu-lhe por brincadeira que somente poderia admitir ao noviciado jovens que soubessem de cor todo o Direito Canônico.

Naquela época, em que ainda não havia imprensa, o Direito Canônico significava o Decreto de Graciano, uma compilação de leis que atualmente, impressas, constituem um volume de quase mil páginas da Patrologia Latina de Migne.

- "O jovem Antonino por acaso
já sabe de cor
o Direito Canônico?"

- "Não, Frei Dominici",

foi a resposta de Antonino.

- "Então, quando o jovem Antonino o souber,
poderá voltar e será admitido".

Mas o jovem Antonino não percebeu que se tratava de uma brincadeira. Não se sabe como, mas menos de um ano depois Antonino apresentou-se novamente ao mesmo Frei Dominici dizendo que já sabia de cor todo o Direito Canônico.

Frei Dominici não quis acreditar. Talvez agora ele é que teria pensado que se tratava de uma brincadeira. Mas, ante a insistência de Antonino, verificou perplexo que, ao contrário de alguns meses antes, desta vez não se tratava mais de uma brincadeira, e não teve dúvidas em admitir o jovem.

Auxiliado pela graça divina, foi este desejo tão ardente de seguir a Cristo que levou Frei Antonino à santidade; e esta brincadeira, que lhe havia pregado Frei Dominici, acabou por desenvolver no jovem um conhecimento precoce e profundo de Moral de Direito Canônico. Mais tarde Santo Antonino se tornou o primeiro teólogo na Igreja que escreveu um tratado de Teologia dedicado exclusivamente à Teologia Moral.

Anos mais tarde, quando Fra Angelico pintava no Vaticano, o Papa Eugenio IV, o segundo após o fim do Cisma na Igreja, conversando com Fra Angelico, convidou Fra Angelico a ser o novo arcebispo de Florença. Mas Fra Angelico candidamente recusou, declarando que conhecia um seu colega, Frei Antonino, que era muito mais capaz do que ele e que seria um arcebispo modelo para a cidade de Florença.

- "O Espírito Santo falou por tua boca,
Fra Angélico",

foi a resposta de Eugenio IV.

Como arcebispo de Florença, frei Antonino foi para a sua diocese um segundo Salomão.

Certa vez, um rico senhor de Florença veio pedir-lhe que excomungasse um outro negociante da cidade que lhe devia uma certa quantia em dinheiro. Era costume naquela época, em Florença, pedir-se a excomunhão dos devedores.

Frei Antonino respondeu-lhe que ele não sabia, na verdade, o que estava pedindo. E, para demonstrar o que afirmava, tomou um pãozinho quente que estava sobre a sua mesa e disse ao homem que iria pronunciar a excomunhão daquele pãozinho para que ele soubesse o que lhe estava sendo pedido que fizesse com o seu semelhante. Pronunciou então a fórmula de excomunhão sobre o pãozinho e no mesmo instante este se tornou negro como um carvão.

- "É desta cor",

comentou Frei Antonino,

"que fica a alma
dos excomungados".

Seria isto que o homem desejava que fosse feito ao seu irmão? Mas, a opinião do santo Arcebispo, nem sequer um pãozinho mereceria aquela condenação. Logo em seguida, Frei Antonino abençoou o pãozinho que retornou à sua primitiva brancura. Admirado com semelhante prodígio, o negociante passou a espalhar o fato por toda a parte, e em breve desapareceu de Florença a pena de excomunhão contra os maus pagadores.

A fama dos julgamentos e das sentenças de Frei Antonino cresceu e se espalhou a tal ponto que com o passar do tempo a Santa Sé passou a recusar de antemão todas as apelações contra as decisões que o santo Arcebispo proferia em Florença. Em vez disso, o Papa passou a declarar que seria muito útil à jurisprudência da Igreja que fossem registradas todas as sentenças do santo Arcebispo.

No conclave em que, com a morte de Eugênio IV, foi eleito o Papa Nicolau V, Frei Antonino, embora não fosse cardeal, teve considerável número de votos para o Supremo Pontificado.

15.

Tudo isto deixa entrever qual seja a obra que Cristo quis promover pela Igreja, e porque nela o joio é misturado com o trigo.

A obra que Cristo promove dentro da Igreja é a continuação da obra narrada pelas Sagradas Escrituras, no Velho e no Novo Testamento.

De que obra se trata?

Diz Hugo de São Vitor que

"Quem se aproxima das lições
das Sagradas Escrituras
com o desejo de aprender,
deve considerar primeiro qual é
o assunto de que tratam,
pois assim poderá alcançar
mais facilmente
a verdade e a profundidade
das suas sentenças.

A matéria de todas as Sagradas Escrituras
é a obra da restauração humana".

De Sacramentis
Fidei Christianae
PL 175, 183

É muito importante notar que Hugo de São Vítor poderia ter dito que a matéria de que tratam as Sagradas Escrituras é a obra da evolução humana. Entretanto, não disse a obra da evolução humana, mas a obra da restauração humana. Ao não ter dito evolução, mas restauração, quis se referir a algo a que o homem já deveria ter chegado, mas não chegou; quis se referir a algo que o homem já deveria ser, mas por algum motivo não é; quis dizer que o homem está deixando de possuir alguma coisa que já deveria estar possuindo não por estar de passagem do estado imperfeito para o perfeito, mas por um verdadeiro defeito.