XIV

A Trindade de Deus



1.

Introdução.

Pudemos assim ingressar, pelos olhos da contemplação, nas coisas invisíveis. Penetramos por esta via de investigação até não podermos mais duvidar da existência de um Criador de todas as coisas, sem princípio, sem fim, não sujeito à mutabilidade; a este encontramos não fora, mas dentro de nós mesmos.

Consideremos agora também se esta nossa mesma natureza não nos possa ensinar algo mais sobre nosso Criador, se ela não seria capaz de no-lo mostrar não apenas uno, mas também trino.

2.

A mente, a inteligência e o amor.

Certamente una é a mente racional, a qual gera, em sua unidade, a partir de si, uma inteligência una. Quão sutil, quão verdadeira, quão conveniente, quão formosa é esta inteligência é coisa algumas vezes visível para a mente, que então passa a amá- la e a comprazer-se nela. A visão da inteligência é causa de admiração para a mente, constituindo-se-lhe uma maravilha ter podido encontrar algo que lhe seja tão semelhante. Quereria sempre admirá-la, sempre possuí-la, sempre fruí-la, sempre nela deleitar-se. Agrada-lhe por si e por causa de si, nada buscando fora dela, porque nela tudo ama. Nela a contemplação da verdade é deleitável em sua visão, suave em sua posse, doce em sua fruição. Com ela a mente repousa consigo mesmo, sendo que neste retiro nunca lhe molesta o tédio, pela felicidade que lhe advém de seu íntimo, porém não único, consorte.

Considera agora estes três, a mente, a inteligência e o amor. Da mente nasce a inteligência, da mente assim como da inteligência tem origem o amor. A inteligência somente da mente, porque a mente gera de si própria a inteligência. O amor, porém, não apenas da mente, porque não apenas da inteligência, mas de ambas procede. Primeiro, pois, a mente; depois, a mente e a inteligência; finalmente, a mente, a inteligência e o amor.

E isto, na verdade, é assim que se dá em nós.

3.

A Santíssima Trindade.

A razão nos persuade que isto, bem de outra maneira, também é verdade no Criador.

Cremos que ele sempre tenha existido; é necessário, pois, confessarmos que Ele também sempre tenha possuído a sabedoria. Será coisa impossível, se dissermos que alguma vez ele tenha existido sem a sabedoria, descobrirmos quem depois o tornou sábio, ou de onde recebeu ele a sabedoria, sendo o maior dos absurdos e coisa alheia a toda a razão crer que aquele que é fonte e origem da sabedoria pudesse alguma vez ter existido sem ela. Sempre, por conseguinte, a sabedoria esteve nEle, sempre a sabedoria proveio dele, sempre a sabedoria esteve com Ele.

Sempre a sabedoria esteve nele, porque sempre a possuiu; sempre foi sábio. Sempre a sabedoria proveio dEle, porque a sabedoria que possui, ele mesmo a gerou. Sempre a sabedoria esteve com Ele, porque tendo-a gerado, esta não se dividiu de quem a gerou. Sempre foi gerada, e sempre é gerada; não tem início sendo gerada, nem fim tendo sido gerada; é sempre gerada, porque eterna; sempre tendo sido gerada, porque perfeita.

Há, pois, quem gerou e quem foi gerado. Quem gerou é o Pai; quem foi gerado é o Filho. Quem gerou, sempre gerou; é, portanto, Pai eterno. Do mesmo, quem foi gerado, sempre foi gerado; é, portanto, Filho coeterno ao Pai eterno.

Ademais, quem sempre possuiu a sabedoria sempre a amou. Aquele que sempre amou, sempre possuiu o amor. Assim, o amor é co-eterno ao eterno Pai e Filho. Todavia, o Pai não procede de ninguém, o Filho apenas do Pai, e o amor simultaneamente do Pai e do Filho.

Estabelecemos, porém, acima, que o Criador de todas as coisas possui verdadeira e suma unidade; é necessário, pois, que confessemos em Deus estes três serem um só em sua substância. Por outro lado, temos que quem foi gerado não pode ser o mesmo que aquele de quem foi gerado; nem quem procede daquele que gera e daquele que foi gerado pode ser o mesmo que o que gera ou o que foi gerado. Desta maneira, somos coagidos pela inexpugnável razão da verdade a reconhecer na divindade a trindade das pessoas e a unidade da substância. Na divindade a substância é uma só e comum para todas as três pessoas, assim como também é igual a eternidade e eterna a igualdade, a substância não podendo ser diversa para com cada uma das pessoas se é ela que lhes faz ser única e comum a divindade.

As três, portanto, são um, porque em três pessoas há uma só substância, mas as três não são um, porque assim como a distinção das pessoas não divide a unidade, assim a unidade da divindade não confunde a distinção das pessoas.

4.

O amor do Pai pela sabedoria.

Consideremos ainda, porém, um pouco mais atentamente, em que sentido se diz que o Pai ama a sua sabedoria.

Os homens, de fato, costumam amar a sua ciência por causa da obra, não a obra por causa da ciência. Assim ocorre com a ciência do agricultor, com a ciência do tecelão, com a ciência do pintor, e outras semelhantes, onde a perícia é considerada inteiramente inútil se na obra não se lhe segue o fruto da utilidade.

Anteporíamos, porém, a obra ao seu Criador se afirmássemos o mesmo da sabedoria divina. Deve-se dizer, ao contrário, que em Deus a sabedoria é sempre mais preciosa do que a obra, sendo sempre amável por causa de si própria. Pode às vezes ocorrer que a obra seja julgada de tal modo que seja anteposta à sabedoria, mas isto provém do erro humano e não do julgamento da verdade. A sabedoria, de fato, é vida, e o amor da sabedoria é a felicidade da vida; por conseguinte, dizendo que o Pai da sabedoria nela se compraz, longe de nossa inteligência acreditarmos que Deus ame sua sabedoria por causa da obra que faz por meio dela, quando, ao contrário, ama na verdade todas as suas obras não senão por causa de sua sabedoria. Foi por este motivo que disse:

"Este é o meu Filho amado,
em quem me comprazo";

Mt. 3

isto é, não na terra ou no céu; não no Sol, na Lua, ou nas estrelas; não também nos anjos, e naqueles que são as mais excelentes entre as criaturas; pois se estas coisas, cada uma ao seu modo, lhe agradam, não o puderam fazer senão nEle e por Ele, e tanto mais serão dignas de seu amor, quanto mais se aproximarem de sua semelhança.

Deus não ama, portanto, a sabedoria por causa das obras, mas ama as suas obras por causa da sabedoria. Nela tudo é belo e verdadeiro; toda ela é desejo, luz invisível e vida imortal, tão desejável em seu aspecto que deleita os olhos de Deus; é simples e perfeita; é plena, mas não transborda; é única, sem ser solitária; é una, embora tudo contenha.

5.

Investiga sobre o amor que existe na Santíssima Trindade.

Cremos, pois, na existência de três pessoas em uma só divindade; resta, agora, investigar se o que é dito de qualquer uma delas possa ser dito também das demais.

Dissemos que o Pai ama o Filho.

Consideremos, pois, se do mesmo modo poderemos dizer que o amor do Pai e do Filho ama o Filho; se o Filho ama a si mesmo. Se o Pai se ama, se o Filho ama o Pai, se o amor do Pai e do Filho ama o Pai. Se o amor do Pai e do Filho se ama, se o Pai ama o amor seu e do Filho, se o Filho ama o seu amor e do Pai. Finalmente, teremos de considerar também se um só e mesmo amor é aquele pelo qual cada pessoa ama a si mesma ou a qualquer outra mutuamente.

Tudo isto faremos mais facilmente se chamarmos à memória as coisas que já foram ditas.

6.

Na Santíssima Trindade todo amor é mútuo.

Afirmamos nas razões expostas que Deus é a primeira causa e a origem de todos os bens. Por ser fonte e princípio de todos, não pode haver nenhum outro bem que o supere na excelência. Deus é, portanto, o sumo bem. Nunca, por conseguinte, poderemos situar a felicidade mais corretamente do que no sumo bem. Somente Deus é feliz, portanto, de modo próprio e principal. Como poderá, porém, ser feliz, aquele para quem ele próprio não é de seu agrado? Quem quer que seja feliz, ama a si mesmo e ama aquilo que ele próprio é.

Se, pois, o Pai, o Filho e o amor do Pai e do Filho são um, e um só Deus; somente em Deus existindo verdadeira felicidade, é necessário que cada uma das pessoas ame a si mesma e mutuamente a cada uma das outras. Não haveria felicidade, mas, ao contrário, seria a maior das infelicidades se as pessoas se dividissem por vontades contrárias ao mesmo tempo em que pela natureza não se pudessem separar umas das outras. Assim como, portanto, o Pai, o Filho e o amor do Pai e do Filho são um só pela natureza, assim também não podem não ser um só pela vontade e pelo amor. Amam-se por um só amor, porque são um; outra coisa não é aquilo que cada pessoa ama nas demais do que aquilo que cada uma ama em si própria, porque aquilo que cada pessoa é não difere em sua proveniência daquilo que as demais pessoas são. O que o Pai ama no Filho, isto também o Filho ama em si mesmo; o que o amor do Pai e do Filho ama no Filho, isto o Pai ama em si mesmo; o que o amor do Pai e do Filho ama no Pai, isto também o Pai ama em si mesmo. O que o Pai e o Filho amam no seu amor, isto o amor do Pai e do Filho ama em si mesmo. O que o Pai ama em si mesmo, isto também ama no Filho e no seu amor. O que o Filho ama em si mesmo, isto também ama no Pai e no seu amor. E o que o amor do Pai e do Filho ama em si mesmo, isto também ama no Filho e no Pai.

7.

Que os homens ouçam a exortação do Pai.

Ouçamos se a voz do Pai concorda com o que acabamos de expor.

"Este",

diz ela,

"é o meu Filho amado,
em que me comprazo".

Mat. 3

Não o disse separadamente: "Eu me comprazo". Não o disse, também separadamente: "Ele me agrada".

Tampouco o disse simultaneamente: "Eu me comprazo, e Ele me compraz". Disse, porém: "Eu me comprazo nEle", isto é, o que me agrada de mim está nEle; não está fora dEle, porque o que Eu sou Ele é. Porque não sou outro do que Ele, fora dEle não posso agradar-me. Ele é, portanto, o meu Filho amado, em quem me comprazo. O que quer que me agrade, agrada-me nEle e por Ele. Ele é, de fato, a sabedoria pela qual tudo fiz, nEle dispus na eternidade tudo o que fiz no tempo. E tanto mais amo cada obra minha quanto mais perfeitamente a vejo concordar com a primeira disposição. Não julgueis que Ele seja mediador apenas na reconciliação dos homens, pois por Ele também a criação e todas as coisas se tornam recomendáveis e agradáveis ao meu olhar. É nEle que examino todas as obras que faço, e não posso deixar de amar o que vejo semelhante Àquele a quem amo. Somente me ofende aquele que se afasta de sua semelhança. Se, portanto, quereis agradar-me, sede semelhante a Ele, ouvi-O.

E se talvez, agindo mal, vos afastastes de sua semelhança, voltai a Ele imitando-O. NEle tendes o preceito, nEle tendes o conselho. O preceito, para que persistais; o conselho, para que retorneis. Quem dera tivésseis guardado o preceito, mas porque o transgredistes, pelo menos ouvi o conselho, ouvi-O! Um anjo nos é enviado com este grande conselho: quem já tinha sido dado para a glória da Criação, este mesmo há de vir para remédio dos que se perderam. Ouvi-O. Ele é Criador; Ele também é Redentor. Ele, sendo Deus comigo, vos criou; sendo convosco homem, vem sozinho ao vosso encontro. Ouvi-O. Ele é a forma, ele é a medicina, ele é o exemplo, ele é o remédio. Ouvi-O. Mais feliz teria sido ter guardado sempre a sua semelhança, mas agora não será menos glorioso retornar à sua imitação.

Ó homem, o que causou a tua ignorância? Eis que a tua própria natureza te acusa e te condena. Soubeste quem és, de onde vens, que Criador tens, que mediador necessitas, e tu ainda clamas contra Deus em tua defesa. Soubeste que és mau, e que não fostes feito mau por um Criador bom, e não clamas a ele, que te fez para que viesse e te refizesse, que te redimisse. Não queiras duvidar de sua potência, contempla as suas obras, quão numerosas. Não queiras duvidar de sua sabedoria, contempla as suas obras, quão belas. Não queiras duvidar de sua benevolência, contempla as suas obras, como te servem para a tua utilidade. Eis que Ele te mostra pelas suas obras o quanto poderá na tua redenção. Mostra-te também que temível juiz terás que aguardar se não o quiseres aceitar como Redentor. Ninguém lhe poderá resistir, porque é onipotente; ninguém lhe poderá fugir, porque é sumamente sábio; ninguém o poderá corromper, porque é o melhor; ninguém se lhe poderá esconder, porque está em todo lugar; ninguém o poderá tolerar, porque é eterno; ninguém o poderá dobrar, porque é incomutável. Se, pois não o queremos ter como juiz, busquemo-lo como Redentor.

8.

Conclusão.

Quando, ainda há pouco, começamos a investigar as coisas invisíveis partindo das visíveis, passamos primeiro da criatura corpórea à incorpórea, isto é, a criatura racional; em seguida, da criatura racional chegamos à sabedoria divina. Agora, porém, retornando da sabedoria divina à criatura racional, dela prosseguiremos até a criatura corpórea mediante uma consideração conveniente. A primeira foi a ordem do conhecimento; a segunda, a ordem da criação.

A primeira foi a ordem do conhecimento, porque o que surge por primeiro no conhecimento é a criatura corpórea visível; em seguida, o conhecimento passa da criatura corpórea à incorpórea; finalmente, aberta a via da investigação, chega ao Criador de ambas.

Na criação, porém, o primeiro grau pertence à criatura racional feita à imagem de Deus; em seguida vem a criatura corpórea, feita para que a criatura racional conhecesse nela exteriormente aquilo que do Criador recebeu interiormente.

Na sabedoria de Deus existe a verdade, na criatura racional a imagem da verdade, na criatura corpórea a sombra da imagem.

A criatura racional foi feita para a sabedoria divina. A criatura corpórea foi feita para a criatura racional. Por causa disso todo movimento e conversão da criatura corpórea é para a criatura racional, e todo movimento e conversão da criatura racional deve ser para a sabedoria de Deus, para que cada qual sempre esteja voltado e unido ao seu superior, sem perturbar em si mesmo nem a ordem da primeira criação, nem a semelhança do primeiro exemplar.

Portanto, quem transita pelo caminho da investigação das coisas visíveis às invisíveis, deve conduzir a intenção da mente em primeiro lugar da criatura corporal à criatura racional, e em seguida da criatura racional à consideração de seu Criador. Retornando, porém, das coisas invisíveis às visíveis, descerá primeiro do Criador à criatura racional, e em seguida da criatura racional à criatura corpórea.

Na mente humana a ordem do conhecimento sempre deve preceder a ordem da criação porque nós, que existimos em meio às coisas externas, não podemos retornar das coisas internas se primeiro não as penetrarmos pelos olhos da mente. A ordem da criação seguir-se-á sempre à ordem do conhecimento porque, ainda que às vezes a enfermidade humana tenha sido timidamente admitida à contemplação das coisas internas, todavia o fluxo de sua mutabilidade não lhe permitirá ficar ali permanentemente.