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Porque, na verdade, não penses que a situação do mundo é agora
melhor que a de uma cidade sob o domínio de um tirano, mas muito
pior. Não um homem , mas algum demônio maligno se apoderou como um
tirano feroz de toda a terra e invadiu com toda a sua hoste as almas dos
homens, e dali, como de uma cidadela, dita a todo o mundo suas ordens
abomináveis e sacrílegas: Desfaz casamentos, saqueia riquezas,
executa mortes iníquas e, o que é muito mais grave, separa do trato
com Deus a alma que com Ele se desposara e a entrega a seus guardas
impuros e a obriga que se una a eles. E estes, uma vez que se tenham
apoderado de uma destas almas, têm com ela trato tão vergonhoso e
insolente qual se pode supor de demônios perversos, que ardente e
furiosamente desejam nossa perdição e desonra. Despem-na de todas
as vestes da virtude, e cobrem-na com os farrapos dos vícios,
imundos, despedaçados e fedorentos que a deixam mais feia que a
própria nudez e, depois de enche-la com toda a sua impureza
diabólica, ainda não se dão por satisfeitos em suas insolências
contra ela. E é assim que não conhecem saciedade neste sacrílego e
adúltero convívio, senão o modo de agir de bêbados que quanto mais
bebem mais ficam sedentos, assim estes, quanto mais abusam da alma,
tanto mais se enfurecem e com mais violência e ferocidade saltam sobre
ela, rasgando-a e mordendo-a por todas as partes, inoculando seu
próprio veneno e não a abandonando, enfim, até vê-la convertida
em demônio como eles separada do corpo. Pois, que tirania, que
prisão, que destruição, que escravidão, que guerra, que
naufrágio, que fome pode ser mais dura que semelhante estado? E quem
será tão cruel e feroz, quem tão tolo, quem tão desumano, tão
alheio à dor e à compaixão que, o quanto estiver em suas mãos,
não queira livrar uma alma assim ultrajada e maltratada daquela
sacrílega fúria e insolência, mas que consinta vê-la sofrer tudo
isso? Mas se o consentimento for de uma alma feroz e de pedra, onde
colocaremos, dize-me, os que não só o consentem, mas os que
cometem crimes muito maiores que este? E é a quem tem coragem de se
lançar no meio dos perigos e não se importam de meter a mão na cara
da fera, sem considerar o mal cheiro e o perigo, para arrancar da
garganta do demônio as almas que já tinham devorado; a estes, digo,
não só não os louvam nem aprovam, mas os expulsam de todas as partes
e lhes declaram a guerra.
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