POR QUE NÃO CHOVE FOGO SOBRE A NOVA SODOMA

Por isso eu tenho ouvido muitos se admirarem de não ter caído também em nosso tempo uma nova chuva de fogo, de nossa cidade não ter sofrido o castigo de Sodoma, sendo tão mais culpada que Sodoma, não ter sido punida com os males desta. Faz dois mil anos que aquela região, com mais clareza do que se falasse, está clamando com o seu próprio espetáculo a toda terra que ninguém ouse cometer semelhante abominação; e, contudo, não só não se retraíram os homens deste pecado, mas se tornaram mais desavergonhados, como se quisessem desafiar a Deus e demonstrar pelos fatos que hão de se entregar tanto mais furiosamente a estes males, quanto com mais rigor sejam ameaçados. Então como é que não acontece agora nada do que aconteceu antes e, cometendo-se os pecados de Sodoma, não vêm os castigos de Sodoma ? É que os espera outro fogo mais terrível e um castigo que não terá fim. Pelo mesmo motivo, mesmo quando os homens depois do dilúvio cometeram pecados muito mais abomináveis do que cometeram os que foram afogados pelo dilúvio, não caiu mais nenhuma chuva como aquela. A razão aqui é a mesma. Porque, que outra razão pode haver para que os homens primitivos, quando não existiam tribunais, nem os governantes infundiam medo, nem a lei ameaçava, nem corrigia o coro dos profetas, nem se temia o inferno, nem se esperava o céu, nem se ensinava nenhuma filosofia, nem se haviam produzido prodígios capazes de levantar as próprias pedras; como se explica que estes homens que não gozavam de nenhum deste benefícios, sofressem tão duros castigos de seus pecados, e os que participam de tudo o que foi dito e vivem entre o temor dos tribunais divinos e humanos, não tenham sofrido ainda o que sofreram aqueles, quando são merecedores de castigo mais severo? Não está evidente, mesmo para uma criança, que estes estão reservados para mais dura justiça? Porque se assim nos irritamos e nos ofendemos, como há de suportar Deus que se cometa estes pecados impunemente, quando Ele, mais que ninguém, cuida do gênero humano e repele e aborrece intimamente toda a maldade? Não, não será assim, mas Ele fará sentir sobre estes impudicos sua mão poderosa e o golpe será tão insuportável e os tormento de tão terrível dor que os sofrimentos de Sodoma, comparados com estes, parecerão pura brincadeira.

Porque, que tipo de bárbaros, que espécie de bestas não deixaram para trás estes impudicos com as suas torpes uniões? Existe, claro, em certos animais um forte impulso, um cio sexual insuportável que em nada se diferencia da loucura; não obstante, não há animal que conheça esta perversão do amor, todos se contêm dentro dos limites da natureza, e, por maior que seja o seu ardor, não ultrapassam as leis da natureza. Os homens, ao contrário, sem dúvida dotados de razão, os que gozaram do divino ensinamento, os que sabem mostrar aos outros o que se deve fazer ou evitar, os que ouviram as palavras vindas do céu, não se unem com tanto impudor com as rameiras como com os jovens. É como se não existissem os homens, como se não existisse uma providência de Deus que nos vigia e julga nossas ações, como se as trevas cobrissem tudo e ninguém visse nem ouvisse nada, pois descaradamente cometem suas abominações, tal é o furor que os arrebata

Por outro lado, os pais dos filhos assim ultrajados suportam tudo isso em silêncio e não se afundam sob a terra com seus filhos nem buscam remédio algum para tamanho mal. Na verdade, se para arrancar os filhos desta pestilência fosse necessário marchar par além das fronteiras, ou atravessar o mar, ou habitar em ilhas, ou abeirar-se a terra inacessível, ou sair do nosso mundo habitado, não valeria a pena faze-lo e sofrer tudo para evitar tanta abominação? Se sabemos de um lugar doentio e pestilento, já evitamos de levar ali nossos filhos, por mais saudáveis que estejam e por muito que tenham a ganhar ali; agora, ao contrário, quando tamanha pestilência se apodera de tudo, não só os empurramos para este abismo, como repelimos como se fossem corruptores aqueles que tentam livrá-los disto. Pois, que ira, que raios do céu não merece que coloquemos tanto empenho em polir a sua língua por meio da sabedoria profana e não só consintamos que sua alma se revolte e se corrompa continuamente no seio da devassidão, mas a impeçamos quando quer se levantar?