V.6.

As virtudes são hábitos.

Com o que já se expôs pode-se começar a determinar o que sejam precisamente as virtudes. Dentre os elementos que fazem parte da natureza das virtudes está, em primeiro lugar, o fato delas serem hábitos.

Há na alma humana três princípios de operação, que são as paixões, as potências e os hábitos. Embora as virtudes sejam hábitos, elas relacionam-se com os dois restantes princípios das operações humanas; será, portanto, necessário investigar a natureza destes três princípios para entendermos o que é a virtude.

Há no homem duas faculdades apreensivas, o intelecto e o sentido. Ambas são capazes de receber uma forma, que é uma semelhança do objeto apreendido, através da qual se tornam capazes de apreender seus objetos. Mediante esta forma apreendida, o objeto das faculdades apreensivas é, de certo modo, trazido ao apreendente. Ora, como a cada forma se segue uma determinada inclinação, às formas recebidas pelas faculdades dos sentidos e do intelecto se seguirão as inclinações do apetite sensível e do apetite intelectivo, também conhecido como vontade. Ao contrário das faculdades apreensivas, nas apetitivas é o apetente que é inclinado ao apetecível, e não o apetecível que é trazido ao apetente. Por isso, chamam-se de paixões aos movimentos das faculdades apetitivas, e mais especificamente aos movimentos do apetite sensível, por se darem por uma transmutação de um órgão corporal, ao contrário do que ocorre com o apetite racional ou vontade. As paixões são, portanto, operações do apetite sensitivo (23).

O apetite sensitivo, diz Tomás de Aquino, é uma inclinação conseqüente a uma apreensão sensível, assim como o apetite natural é uma inclinação conseqüente à forma natural (24). Nele, porém, podem ser distinguidas duas potências, o apetite concupiscível e o apetite irascível. Esta distinção surge porque nos seres naturais que são passíveis de corrupção não é suficiente haver apenas uma inclinação para a obtenção do que é conveniente e a fuga do que é nocivo, mas deve haver também uma inclinação para resistir ao que é capaz de corromper a coisa ou causar-lhe danos. Temos assim o apetite sensível que é uma inclinação que se segue à apreensão sensível simplesmente considerada, segundo a qual o apreendente se inclina à busca do que lhe é conveniente segundo o sentido e à fuga do que lhe é nocivo segundo o sentido: este é o apetite concupiscível. Há também, porém, outro apetite que é uma inclinação pela qual o animal resiste aos que tentam matá-lo ou lesá-lo: este é o apetite irascível (25).

Desta maneira as paixões que dizem respeito ao bem e ao mal sensível absolutamente considerados são do apetite concupiscível; já aquelas que dizem respeito ao bem ou mal sensível considerados sob o aspecto de alguma excelência, dificuldade ou árduo são paixões do apetite irascível (26).

As paixões que estão no concupiscível são, em relação ao bem sensível absolutamente considerado, as seguintes: o amor, que é uma conaturalidade do apetite ao bem amado; o desejo, que importa um movimento do apetite ao bem amado; a deleitação, que é um repouso do apetite no bem amado (27).

As paixões que estão no concupiscível, em relação ao mal sensível absolutamente considerado, são as seguintes: o ódio, que se opõe ao amor; a aversão, que se opõe ao desejo; a tristeza, que se opõe à deleitação (28).

No apetite irascível há menor número de paixões do que no apetite concupiscível, pois não há paixões que dizem respeito ao repouso, mas apenas ao movimento, pois aquilo em que algo repousa já não pode ter natureza de árduo ou difícil, que é o objeto do apetite irascível (29). As paixões que estão no irascível, que dizem respeito ao bem e ao mal sensível sob o aspecto do árduo são, portanto, as seguintes: a esperança e o desespero, em relação ao bem, e o temor e a audácia, em relação ao mal. Além destas existe a ira, que por ser paixão composta, não apresenta contrário (30).

As potências são as faculdades da alma segundo as quais o homem é passível das paixões. A potência irascível é aquela segundo a qual o homem pode enraivecer-se; a potência concupiscível é aquela segundo a qual o homem pode entristecer-se (31).

Os hábitos são disposições pelas quais se determinam as potências. Por meio do hábito uma potência adquire uma ordenação, isto é, uma certa prontidão e finalidade para operar determinados atos; é neste sentido que se diz que o hábito determina a potência. Se a determinação se dá segundo convenha à natureza da potência, será um hábito bom e será chamado de virtude; se a determinação se dá segundo um modo inconveniente à natureza da potência, será dito um hábito mau e será chamado de vício (32).

A virtude, portanto, é um hábito; na medida em que determina uma potência, esta potência será o seu sujeito. Por meio da virtude, a potência é determinada de tal modo que seus movimentos, que no caso das potências sensíveis são chamados de paixões, se dêem segundo a reta razão.



Referências

(23)In libros Ethicorum Expositio, L. II, l. 5, 291-292.
(24) Summa Theologiae, Ia, Q. 81 a. 2.
(25) Idem, loc. cit..
(26) In libros Ethicorum Expositio, L. II, l. 5, 293.
(27) Idem, loc. cit.. (28) Idem, loc. cit..
(29) Summa Theologiae, Ia IIae, Q. 25 a.1.
(30) In libros Ethicorum Expositio, L. II, l. 5, 293.
(31) Idem, L. II, l. 5, 297. (32) Idem, L. II, l. 5, 298; L. II, l. 5, 305.