V.18.

A amizade.

Uma das características mais notáveis da ciência moral que S. Tomás, seguindo aqui a Aristóteles, prescreve dever ser ensinada aos que se preparam para a contemplação, está no fato de que ela não se esgota com a aquisição das virtudes. Ao contrário, o Comentário ao VIII e IX da Ética afirma que mais ainda do que as virtudes, pertence à ciência moral mostrar o que seja a verdadeira amizade entre os homens.

Há várias razões, diz o Comentário à Ética, pelas quais a amizade pertence ao âmbito da ciência moral que deve formar o aluno para a contemplação.

Primeiro, porque pertence à ciência moral tratar das virtudes; ora, a amizade não é uma virtude, mas a verdadeira amizade tem a virtude como sua causa (149).

Em segundo lugar, pertence à ciência moral a consideração de todas as coisas que são necessárias à vida humana, entre as quais é maximamente necessária a amizade, pois ninguém corretamente disposto pelas virtudes escolheria viver possuindo todos os demais bens exteriores sem os amigos (150).

Em terceiro lugar, a amizade concorre para o bem civil, ao qual se ordena a ciência moral, pois as cidades parecem se conservar pela amizade, e por isso mesmo é que os bons legisladores preocupam-se em conservar a amizade entre as cidades mais até do que a justiça, acerca da qual às vezes deixam de aplicar as penas para não dar origem a discórdias (151).

Em quarto lugar, porque se algumas pessoas forem amigas, não necessitarão da justiça, pois um amigo é um outro si mesmo, e não há justiça para consigo mesmo, já que pertence à natureza da justiça o ser a um outro; porém, se houver pessoas que sejam justas, ainda assim necessitarão da amizade (152).

Finalmente, a amizade deve ser objeto da ciência moral não apenas porque é algo necessário à vida humana, mas também porque é um bem em si mesmo (153).

Existem três tipos de amizade, na medida em que existem três tipos de bens: o bem honesto, o bem útil e o bem deleitável.

Chama-se bem honesto ao bem apetecido pelo apetite racional por causa deste bem em si mesmo; chama-se bem deleitável ao bem apetecido pelo apetite sensível por causa deste bem em si mesmo; chama-se bem útil ao bem apetecido não por causa dele mesmo, mas por causa de um outro, honesto ou deleitável, que não pode ser conseguido senão através do útil.

Correspondendo a estes três modos de bem, haverá também três modos de amizade, a amizade por causa do bem da virtude, a amizade por causa do bem deleitável, e a amizade por causa do bem útil (154).

Segundo estas três espécies de amizade os amigos podem se querer bem mutuamente segundo o que amam; os que se amam por causa da virtude, querem para si mutuamente o bem da virtude; os que se amam por causa do útil, querem para si mutuamente os bens úteis; os que pela deleitação, os bens deleitáveis (155).

As amizades útil e deleitável são amizades por circunstancialidade; naqueles que se amam mutuamente por causa da utilidade, um não ama o outro por causa dele mesmo, mas na medida em que do outro recebe para si algum bem; coisa semelhante ocorre naqueles que se amam por causa da deleitação, onde um ama o outro somente na medida em que é a si deleitável (156).

As amizades por causa do útil e do deleitável são amizades por causa de coisas que são contingentes a quem se ama; quando, portanto, aqueles a quem se amava deixam de ser úteis ou deleitáveis, seus amigos cessam de amá-los (157).

A perfeita amizade é aquela que é dos bons e dos semelhantes entre si segundo a virtude. Os amigos segundo a virtude são homens bons em si mesmos, e não por acidente, porque a virtude é uma perfeição que faz o homem ser bom, pelo que tais amigos se quererão bem segundo si mesmos e não por causa de alguma circunstância (158). Pelo mesma razão a amizade segundo a virtude é duradoura; porque tais amigos se amam entre si por serem bons, e, conseqüentemente, a amizade entre eles permanece enquanto durar a virtude. Ora, a virtude é um hábito permanente e não facilmente mutável; de onde que a amizade por causa da virtude é duradoura (159). Ademais, a semelhança, que é o que faz e conserva a amizade, é máxima entre os virtuosos; de fato, eles permanecem semelhantes a si mesmos, porque não são facilmente mudados de uma em outra coisa, e também permanecem na amizade que possuem entre si; já os homens maus não possuem nada de firme e estável em si mesmos, porque a malícia, na qual se obstinam, é detestável segundo si mesma, e assim os seus efeitos variam na medida em que nada encontram em que a vontade possa repousar, de onde que nem permanecem durante muito tempo semelhantes a si mesmos, ao contrário, querendo o contrário das coisas que anteriormente queriam, por pouco tempo permanecem amigos, isto é, somente enquanto gozam da malícia na qual concordam (160).

As amizades por causa da virtude, porém, são raras, porque esta amizade o é entre pessoas virtuosas e poucos são virtuosos (161). Por causa da deleitação e da utilidade podem-se tornar mutuamente amigos homens de quaisquer condições, tanto bons como maus, mas segundo a amizade perfeita, pela qual os homens se amam por causa de si mesmos, somente os homens bons podem se tornar amigos (162).

Significativamente a amizade ocupa dois livros inteiros do Comentário à Ética, bastante mais do que o concedido a qualquer outra virtude; mais ainda, estes dois livros precedem de modo imediato o X da Ética, que trata sobre a contemplação, como se com isso se quisesse dizer que a verdadeira amizade não só é o prêmio da virtude, mas também que ninguém que não tenha se tornado capaz dela pode-se considerar ter sido autêntico ouvinte em ciência moral e portanto supor poder vir a ter êxito no esforço que dele exigirá a contemplação da sabedoria.

Tal é, em rápidas pinceladas, a ciência moral que descreve Tomás de Aquino como sendo um dos requisitos essenciais da verdadeira educação do homem.

Resta-nos agora examinar de que modo tudo isto se relaciona com a contemplação.



Referências

(149) In libros Ethicorum Expositio, L. VIII, l. 1, 1538.
(150) Idem, L. VIII, l. 1, 1539. (151) Idem, L. VIII, l. 1, 1542. (152) Idem, L. VIII, l. 1, 1543. (153) Idem, L. VIII, l. 1, 1544. (154) Idem, L. VIII, l. 2, 1552. (155) Idem, L. VIII, l. 3, 1563. (156) Idem, L. VIII, l. 3, 1563-1564. (157) Idem, L. VIII, l. 3, 1566. (158) Idem, L. VIII, l. 3, 1567. (159) Idem, L. VIII, l. 3, 1575; l. 3, 1577. (160) Idem, L. VIII, l. 8, 1650-1651. (161) Idem, L. VIII, l. 3, 1581. (162) Idem, L. VIII, l. 4, 1591.