III/G



101.

Estando os acontecimentos assim configurados, outro fator surgiu por esta época para mais promover o desenvolvimento do Renascimento na Itália.

Conforme explicamos na Primeira Parte desta Introdução Histórica, muito tempo antes da Renascença, nos anos 300 da Era Cristã, a transferência da capital do Império Romano para Constantinopla havia feito surgir, com o início das invasões bárbaras no Ocidente, o Império Bizantino no Oriente.

O Império Bizantino não passou pelas transformações por que passou o Ocidente. Não houve ali as invasões que assolaram o mundo ocidental. Houve, é fato, uma invasão progressiva do Islã, mas quando o Islam conquistava, um após outro, os territórios do Império Bizantino, este se tornava muçulmano. Neste sentido, tratava-se de algo que do ponto de vista histórico era substancialmente diverso do que ocorria no ocidente com as invasões bárbaras. Quando os bárbaros invadiam um território romano, mais cedo ou mais tarde eles se convertiam ao Cristianismo e, tornando-se cristãos, incorporavam-se à civilização que haviam invadido. Depois vinha outra leva de bárbaros e o processo recomeçava novamente.

Mas no Império Bizantino não havia uma assimilação de uma civilização por outra. À medida em que o Islã avançava, desaparecia a civilização conquistada e era substituída por outra.

Dentro da parte que restava do Império Bizantino a história era bastante linear. O modo de vida que existia no Império Romano oriental durante os oito primeiros Concílios Ecumênicos continuou existindo nos séculos seguintes. Não houve Idade Média no Império Bizantino. Não houve Feudalismo. Não houve invasão de bárbaros. O poder temporal, apesar de todos os problemas, tentava coexistir com o poder espiritual sem os conflitos radicais que houve no Ocidente. Não houve um momento em que se fêz necessária uma reforma na Igreja como a que na Primeira Parte desta Introdução descrevemos ter sido necessária no Ocidente. Enfim, nada de substancialmente novo aconteceu, exceto a diminuição progressiva do território do Império Bizantino que caía cada vez mais em poder dos muçulmanos.

Mas, à medida em que a conquista islâmica continuava, chegou-se a um ponto em que, na primeira metade dos anos 1400 DC, o território dominado pelos muçulmanos já era tão grande que praticamente só restava ao Império Bizantino a sua própria capital, a cidade de Constantinopla, e algumas poucas terras ao seu redor.

Deste modo a história do Império Bizantino foi bastante mais linear do que a do Ocidente. E esta história foi linear também quanto ao aspecto educacional.

Assim como no antigo Império Romano predominava o estudo da Retórica como principal meio de formação dos homens, assim também este era o estudo predominante no Império Bizantino. Tal como antigamente, sempre houve também uma minoria que se dedicava aos estudos filosóficos.

A única novidade que se acrescentou a este panorama do antigo Império Romano foi o surgimento da vida monástica. Mas, à diferença do Ocidente, os mosteiros do Império Bizantino não tinham escolas. No Ocidente em grande parte dos mosteiros mais cedo ou mais tarde surgia uma escola, já que com a invasão dos bárbaros e a queda do Império Romano as escolas profanas deixavam de existir. Passando para a organização monástica, a escola pôde se transformar graças à liberdade que no Ocidente os monges tiveram para gradativamente geminar a educação com a vida espiritual até ao nível da própria concepção fundamental desta educação. A educação se transformou em um meio de ascese, a pedagogia passou a buscar seus fins últimos nas mais profundas exigências da vida espiritual e em função destas organizou seu programa e seus métodos. A antiga educação pagã foi modificada de um modo firme mas tão gradual que sua metamorfose, embora fosse imperceptível de uma geração para outra, passados mil anos, resultou em uma transformação gigantesca. Entre as Instituições de Quintiliano tais como eram no século I e os Princípios Fundamentais de Pedagogia de Hugo de São Vitor no século XII a distância cronológica é de um milênio, mas para os que conseguem penetrar no alcance de seus conteúdos e na profundidade de seus pressupostos, a distância real é astronômica.

Ao contrário do Ocidente, porém, no Império Bizantino a civilização não só não desmoronou como também nunca ameaçou desmoronar. O que ocorria era a diminuição do seu território de um modo contínuo, mas o que permanecia dentro de suas fronteiras sempre menores continuava firme em seus alicerces. Não havia, pois, neste contexto, necessidade pela qual os mosteiros devessem abrir escolas. Para os padrões do mundo antigo, havia escolas em abundância, as quais contavam com professores que ensinavam gramática e oratória e que estavam a par de todos os clássicos da literatura antiga, isto é, tudo aquilo que nos mosteiros do ocidente havia sido relegado a um plano secundário. Enquanto no Ocidente a espiritualidade foi moldando a cultura antiga até se chegar à criação da primeira Universidade, nada disso ocorria no Oriente. Os mosteiros eram apenas casas de oração. Para se estudar existiam as escolas onde estudava-se uma retórica que não tinha relação, de modo direto, com a ascese cristã.

Os santos que exerceram grande influência na literatura cristã do Oriente, como São Basílio, São Gregório de Nazianzo, S. Gregório de Nissa, S. João Crisóstomo, foram todos eles monges. Antes disso, porém, haviam freqüentado, durante suas juventudes, as escolas dos retores. Muitos deles expressaram críticas a este tipo de formação e formularam o desejo de uma educação mais condizente com o ideal cristão. Pode-se citar como exemplo disto a seguinte passagem de um livro em forma de diálogo escrito por São João Crisóstomo, um monge que no século IV veio a tornar-se bispo de Constantinopla:

"Ninguém ignora que o corpo de Igreja
está mais sujeito a enfermidades
do que a própria carne,
corrompe-se mais depressa
e se restabelece mais lentamente.
Porém, enquanto os que curam nossos corpos
inventaram uma variedade de medicamentos
e dispõem de uma série de instrumentos
para tanto,
no que diz respeito aos cuidados das almas,
além do exemplo,
não há outro caminho para a saúde
a não ser o ensino.

Se este remédio falhar,
todos os demais serão inúteis.

É certo que para melhor ordenar a vida,
outra vida bem ordenada
pode despertar o desejo de imitá-la;
mas, quando a alma sofre a enfermidade
de um ensinamento já errôneo,
não há outro remédio senão
usar copiosamente da palavra.

Mesmo que houvesse alguém
que operasse milagres,
mesmo assim a palavra seria
altamente necessária,
e temos disto um exemplo
em São Paulo Apóstolo,
que fêz uso dela,
apesar de que em todos os lugares
era admirado pelos seus milagres".

- "Mas João",

interrompe o interlocutor do diálogo,

"se a palavra é tão importante,
por que lemos na Segunda Epístola aos Coríntios
que o próprio São Paulo não ocultava
a sua pobreza no falar,
como também confessa
que é leigo na matéria?"

"É isto",

responde João Crisóstomo,

"é isto que fêz a perdição de muitos
e os tornou incapazes
de ensinar verdadeiramente.
As pessoas chamam ignorante
não apenas àqueles que não se adestraram
nas charlatanices da eloqüência,
mas também àqueles que não sabem
defender a verdade.

Ora, São Paulo não se diz leigo
em ambas as coisas,
mas apenas em uma delas e,
para deixar isto bem claro,
faz uma clara distinção,
dizendo:

`Na verdade,
sou imperito no falar;
não o sou, porém,
na ciência'.

2 Cor. 11, 6

Se estivéssemos exigindo
a suavidade de Isócrates,
a majestade de Demóstenes,
a gravidade de Tucídides,
a sublimidade de Platão,
então terias razão em citar
São Paulo Apóstolo.

Mas tudo isso eu deixo de lado.

Que a expressão seja pobre,
que a composição das palavras seja
simples e corrente;
mas o que a ninguém se pode permitir
é ser leigo no exato conhecimento
das verdades da fé.

Em que o bem aventurado Apóstolo São Paulo
superou a todos os demais apóstolos?
Que fêz ele em Tessalônica,
em Corinto, e na mesma Roma?
Não passava dias e noites inteiras,
sem interrupção,
na explicação das Sagradas Escrituras?
Que ninguém, pois,
para acobertar a si próprio,
pretenda arrancar deste bem aventurado Apóstolo
aquela que foi a sua máxima excelência
e a coroa de sua glória".

S. João Crisóstomo
De Sacerdotio L. IV, 5-6

Este texto de São João Crisóstomo, bispo de Constantinopla no final dos anos trezentos, pertence a um livro em que ele procura traçar o perfil ideal do sacerdote cristão. Ele menciona a educação retórica a que ele próprio havia sido submetida durante a sua juventude e, indiretamente, aspira por outra.

Mas durante a história do Império Bizantino que se seguiu não surgiu nenhuma outra forma de educação. O Cristianismo aprendeu a conviver com a formação retórica tal como ela havia evoluído na antigüidade romana. O grego se tornou a língua nacional do Império Bizantino e as obras dos grandes escritores da Grécia eram acessíveis, compreendidas e admiradas por todos.

Os escritores bizantinos, conforme escreve Charles Diehl,

"gostavam de tomar por modelos
a autores clássicos
e se esforçavam por imitá-los.
Ao contato dos clássicos,
acabaram criando uma linguagem erudita,
muito diferente do grego
que se falava correntemente,
mas com a qual se vangloriavam
de reproduzir a beleza artística
do grego antigo.
Ademais, assim como o estilo
imita a forma antiga,
seu pensamento também se moldava
constantemente sobre as idéias clássicas.
Estão cheios de lembranças da história
e da mitologia gregas,
e este respeito quase que supersticioso
pela tradição grega clássica
deveria ter para a literatura
conseqüências assas importantes".

Mas, à medida em que o Império Bizantino foi desmoronando, e no início dos anos 1400 DC foi se percebendo cada vez mais claramente que seria apenas uma questão de tempo para que o Império fosse tragado pelo Islã, os professores e os homens cultos de Constantinopla começaram a fugir para o Ocidente.

Para onde, porém, no Ocidente, poderiam fugir? Naquela época havia um lugar onde não somente encontrariam um refúgio seguro, como também seriam regiamente acolhidos. Este lugar não era a França, nem a Espanha ou a Alemanha, mas o norte da Itália, onde fervilhava o Renascimento. Déspotas e humanistas italianos os receberiam como se recebem os heróis. Juntamente com estes sábios de Constantinopla vinham para os italianos mais manuscritos antigos e uma nova oportunidade de aprender a língua grega tal como era falada em um lugar em que ela havia permanecido viva ininterruptamente desde a antigüidade. A história da Renascença conserva até hoje o nome e as atividades de todos os principais dentre estes sábios imigrantes bizantinos.

102.

No Império Bizantino, portanto, havia o mesmo interesse pelos clássicos antigos que despontou na Renascença italiana. Havia, ademais, o mesmo tipo de educação que os humanistas estavam se esforçando em implantar. Por estes motivos, a imigração dos sábios constantinopolitanos para a Itália teve como um de seus resultados um importante estímulo para o próprio movimento renascentista.

Havia, porém, uma diferença importante entre o humanismo bizantino e o humanismo renascentista. No Império Bizantino a cultura antiga coexistia pacificamente com o Cristianismo há séculos. Esta característica, entretanto, foi como que simplesmente ignorada pelos humanistas italianos.

Embora tenha havido alguns humanistas cristãos durante a Renascença, como o educador Vitorino Feltre e até mesmo o Papa Nicolau V, foi apenas no final do movimento renascentista, com a fundação da Companhia de Jesus, que despontou o que poderia ser chamado de humanismo cristão. Os jesuítas como educadores seguiram o método e os ideais de Quintiliano, que nada ais era do que o ideal pedagógico europeu havia já quase duzentos anos. Mas o objetivo de Quintiliano, a formação do homem bom, que ele havia deixado em aberto, passava agora com os jesuítas a ser interpretado segundo a concepção cristã.

Desta maneira, só depois de dois séculos de Renascença o modelo de educação renascentista passou a tomar uma direção semelhante a do que teria sido o verdadeiro ideal de Quintiliano.

103.

A Companhia de Jesus foi fundada sem uma finalidade específica em meados dos anos 1500 por Santo Inácio de Loyola e mais oito companheiros, depois destes haverem tentado, sem sucesso e por um brevíssimo período de tempo, um trabalho de evangelização em terras islâmicas que sequer chegou a iniciar-se. Após esta tentativa frustrada, o grupo dos clérigos fundadores da Companhia encaminhou-se para Roma e colocou-se à total disponibilidade do Sumo Pontífice para quaisquer trabalhos que por ele lhes fossem confiados, em qualquer parte do mundo.

Não tardou para que os jesuítas, em 1548, fossem convidados a abrir seu primeiro colégio na cidade de Messina, no sul da Itália. Este colégio veio a ser o primeiro de uma série de estabelecimentos do gênero cujo número chegou quase a mil, espalhados em todo o mundo. Ao fundarem a Companhia de Jesus, porém, seus fundadores, tanto quanto nos é registrado pela história, não transpareceram imaginar que um de seus principais trabalhos, talvez o principal, viesse a ser na área educacional. A Companhia de Jesus trazia muitas idéias novas para a Igreja, mas em matéria especificamente educacional, em princípio, pouca coisa de especial tinha a dizer.

Santo Inácio de Loyola enviou para a fundação do Colégio de Messina vários de seus melhores padres. Como todos estes padres, com uma única exceção, haviam estudado na Universidade de Paris, e o próprio Santo Inácio de Loyola, juntamente com os oito primeiros fundadores da Companhia, também lá haviam estudado, foi como que naturalmente que se adotou em Messina o mesmo método que era utilizado naquela Universidade.

Ora, o movimento renascentista a princípio havia-se confinado quase que exclusivamente ao norte da Itália. Conforme haveremos ainda de comentar, dificilmente teria se propagado para além desta região se não houvesse ocorrido, neste interim, a invenção da imprensa, na década de 1440, por João Gutemberg. Graças a esta invenção, a Renascença atravessou os Alpes e se difundiu gradualmente por toda a Europa. Na década de 1520 conquistou a Universidade de Paris, e foi justamente no final da década de 1520 e no início da seguinte que ali estudaram Santo Inácio de Loyola e os primeiros jesuítas.

Ao adotarem, pois, os mesmos métodos de ensino que haviam visto em Paris, os jesuítas nada mais estavam fazendo do que adotando a pedagogia renascentista. No ato da fundação do primeiro colégio jesuíta em Messina podia-se ler a afirmação segundo a qual

"seguir-se-á o modo e a ordem
que se utiliza em Paris,
que é o melhor que se pode ter
para facil e perfeitamente
tornar-se douto na língua latina".

"Os colégios jesuítas passaram a se multiplicar em número e avultar em importância", comenta o Pe. Leonel Franca.

"Muitos dentre eles",

continua o mesmo autor,

"no curto prazo de poucos anos,
tornavam-se os centros de cultura humanista
mais reputados
da cidade ou da região".

Em duzentos anos a Companhia de Jesus mantinha 865 estabelecimentos de ensino no mundo inteiro, grande parte dos quais tinha uma média de mil ou mais alunos.

104.

Os jesuítas, de modo geral, não se interessaram pelo ensino primário. Ministraram, em seus colégios, apenas o equivalente ao ensino secundário e superior. No ensino superior tinham faculdades de Filosofia e Teologia; o ensino secundário era baseado visivelmente nas concepções de Quintiliano, citado centenas de vezes nos escritos deixados pelos padres que participaram da elaboração da Ratio Studiorum.

Este ensino secundário era ministrado, na sua forma mais extensa e comum, em sete anos. Dois anos de gramática inferior, dois anos de gramática média, um ano de gramática superior, um ano de humanidades e um ano de retórica.

Em um estudo introdutório à Ratio Studiorum das escolas da Companhia, o Pe. Leonel Franca explica da seguinte maneira esta seqüência:

"O grau de gramática inferior é o conhecimento
perfeito dos rudimentos de gramática
e as primeiras noções de sintaxe;

o grau da gramática média é o conhecimento
de toda a gramática,
ainda que não exaustiva e perfeita;

o grau da gramática superior é o conhecimento
perfeito da gramática;

o grau da classe de humanidades, que prepara
imediatamente à retórica,
é o conhecimento da linguagem,
alguma erudição,
e as primeiras noções dos
preceitos da retórica;

o grau da retórica é a expressão perfeita,
em prosa e em verso,
e abrange os conhecimentos
teóricos e práticos dos preceitos
da arte de bem dizer
e uma erudição mais rica da história,
arqueologia, etc."

"Como se vê", continua o Pe. Leonel Franca,

"o objetivo do curso humanista
é a arte acabada da composição,
oral e escrita.
O aluno deve desenvolver
todas as suas faculdades,
postas em exercício pelo homem
que se exprime
e adquirir a arte de vasar
esta manifestação de si mesmo
nos moldes de uma expressão perfeita.

O Latim e o Grego são
as disciplinas dominantes.

Na seleção dos autores,
as obras de Cícero
têm uma posição dominante".

105.

Deste modo podemos perceber como, durante a Renascença, ao lado do movimento de decadência progressiva do ensino superior nas Universidades que vinha desde os anos 1300 DC, foi se desenvolvendo gradualmente o equivalente ao ensino de segundo grau, a princípio pelos humanistas em geral, posteriormente pelos padres da Companhia de Jesus.

Era um ensino de segundo grau onde se aprendia muito grego, muito latim, muita gramática, muita literatura. Ou seja, começou a desenvolver-se, como formação do homem, aquele ensino de segundo grau que hoje nós chamamos de clássico, às vezes também conhecido pela expressão de "estudos clássicos", que em uma época posterior passaram a ser assim designados por oposição aos estudos ditos "científicos". Receberam o nome de estudos clássicos porque, ao contrário do modo como os humanistas procediam quando ministravam este mesmo ensino, isto é, do modo aparentemente desordenado e individual como costumam proceder os autodidatas, os jesuítas ministravam-no em classes em que os alunos eram metodicamente promovidos todos juntos para a classe seguinte em períodos de tempo que eram já conhecidos de antemão. Os textos que o programa de estudos apontava como devendo ser utilizados em cada classe passaram a ser conhecidos, por isso mesmo, como "os clássicos", uma expressão que, passados quatro séculos, perdeu seu sentido original e é usada pelo homem de hoje para designar qualquer obra prima que o tempo tenha consagrado como referência perene.

Este tipo de educação humanista, baseado no estudo dos clássicos e das línguas antigas, que era dominante no Renascimento, foi desta maneira cristianizado pelos jesuítas. Porém, ao mesmo tempo, esta forma de ensino era uma degeneração de um tipo de educação que havia existido na época de Hugo de São Vitor e Santo Tomás de Aquino. Esta degeneração chegou a tal ponto que os próprios religiosos passaram ou a não se dar mais conta deste fato, ou a, depois de duzentos anos de Renascimento, não terem mais alternativa senão a de darem a este ensino uma tintura e uma orientação cristã.

De fato, aquele excesso de clássicos, de oratória, de gramática, de estudo de línguas havia sido criado e introduzido na sociedade antiga por pessoas que não tinham por intenção a busca da sabedoria, mas o desenvolvimento de qualidades humanas pelas quais as pessoas pudessem competir na sociedade. Esta educação forma de fato o ser humano e pode até mesmo produzir, quando bem orientada, certa forma de virtudes cívicas, mas não é capaz, no que depende de sua natureza, de voltar o homem para a sabedoria, a contemplação ou a vida espiritual. Pode-se tentar adaptar uma coisa à outra, mas por mais que se adapte, será sempre uma adaptação, é um pano novo em um remendo velho. Séculos anteriores haviam visto uma educação que em sua essência estava voltada para estes outros fins mais nobres; na Renascença, porém, de modo geral, não era mais possível para as pessoas perceberem isto, e mesmo que alguns o percebessem, como provavelmente, não obstante o horrendo silêncio histórico que existe a este respeito, devem te-lo percebido, esta minoria parece ter entendido também que não era mais possível colocar em prática tais idéias. Se os jesuítas tivessem aberto escolas onde os alunos passassem algumas décadas de suas vidas para daí com isto não alcançarem objetivo algum senão a sabedoria, quem é que em uma época como o Renascimento iria se inscrever em uma escola como esta? Poderiam abri-las sim, mas não teriam nenhum aluno.

E, na verdade, quando os jesuítas tiveram que fazer esta opção, a situação havia se tornado muito pior do que a que descrevemos até aqui, a ponto de possivelmente tornar inclusive proibitivo canalizar os espíritos mais capazes para alguma tentativa heróica de vulto em outro sentido. Os jesuítas haviam surgido precisamente no momento em que, na Europa, desencadeava-se a Reforma Luterana, cujo programa inicial era muito diverso da prática que pode atualmente ser observada nas Igrejas protestantes. Ao dar início à Reforma, a idéia original de Martinho Lutero não era a de fundar uma outra Igreja, paralela à Igreja Romana e que, opondo-se a esta, ensinasse o que ele considerava ser o cristianismo original, tal como vemos ser hoje o que fazem as diversas denominações evangélicas. Em sua concepção inicial, a intenção de Lutero consistia em destruir a Igreja Romana substituindo-a pela Luterana. Em seus primórdios, principalmente no Sacro Império Romano Germânico, nos principados em que a Reforma se instalava era comum que a prática católica fosse inteiramente proibida e suprimida, os templos existentes passassem aos reformados, e os sacerdotes expulsos fossem substituídos por pastores. Para que o povo mais humilde não interpretasse os acontecimentos como a substituição da Igreja que eles conheciam por uma outra diversa, mas sim como uma reforma da antiga, os ritos da liturgia católica romana foram modificados pelos luteranos de tal modo que, embora em seu significado fossem substancialmente diversos e conformes à nova doutrina, em sua aparência exterior se assemelhavam muito aos antigos. Em alguns principados germânicos este processo não se deu somente através da força ordinária da lei, mas também pela população descontrolada. Uma multidão invadia e tomava os templos à força, expulsava os sacerdotes e ali mesmo instaurava a nova Igreja. Métodos reformistas como estes fizeram com que, logo após a morte de Lutero, todo o Sacro Império mergulhasse em uma sangrenta guerra civil conhecida como a "Guerra dos Trinta Anos". Foi dentro de um contexto assim tão complexo e tão diverso daquele dos dias atuais que a Reforma protestante subitamente surgiu na Europa e ameaçou propagar-se com uma velocidade fulminante por todo o continente.

Nesta perspectiva, se já era difícil para os jesuítas pensarem efetivamente em termos de uma Pedagogia Sacra, para a Igreja Luterana tratava-se de uma impossibilidade intrínseca. Martinho Lutero, por exemplo, simplesmente não conseguia entender o que fosse a natureza da contemplação. Em seus escritos encontramos afirmações como esta:

"Quando eu vivia no Papado,
considerava ser algo espiritualíssimo
quando os monges
sentavam-se em suas celas
e meditavam em Deus e em suas obras,
quando eles,
inflamados por ardentíssimas devoções,
dobravam os joelhos,
oravam
e meditavam nas coisas celestes.
No entanto,
(hoje sei) que estas coisas
espiritualíssimas
não passam de idolatria".

Lutero havia chegado a conclusões como esta porque, estudando as Epístolas de São Paulo, encontrou escrito nelas que o homem não se salva pelas obras exteriores, mas apenas pela fé.

"É na fé que está a força de Deus
para salvar os homens",

diz São Paulo na Epístola aos Romanos, e acrescenta:

"A (santidade) de Deus manifesta-se
nos que crêem
(e que caminham) da fé para a fé,
(pois é a própria Escritura que diz):

`O (homem) justo vive da fé'".

Rom. 1, 16-17

Segundo Martinho Lutero, isto significava que os monges que se entregavam à contemplação das coisas divinas estariam indo contra os ensinamentos de São Paulo pois, em vez de buscaram a salvação que vem apenas da fé, estariam procurando salvarem-se pelas suas próprias obras. Num equívoco que mostra o quanto os homens de sua época já se tornavam incapazes de entender o sentido das verdades evangélicas, o iniciador da Reforma não percebia que a vida contemplativa dos monges era a própria vida da fé de que fala São Paulo apóstolo. A contemplação, de fato, surge na alma do homem quando, auxiliado pela graça, a uma fé firme, constante e pura, se acrescenta um amor intenso. Se há algum homem justo que vive da fé, este homem é justamente aquele que, amparado pela graça, alcançou a vida contemplativa e que, em virtude da força de Deus que lhe é infundida pela habitualidade da fé e do amor que o constitui na contemplação, torna-se capaz de praticar as virtudes cristãs até o heroísmo.

Em circunstâncias como esta, em que a Igreja parecia estar com os dias contados para ser suprimida e substituída por outra, como de fato o foi em muitas nações, a opção pedagógica dos jesuítas revelou-se providencial. A história posterior mostrou que foi principalmente devido ao súbito surgimento da Companhia de Jesus e à obra por ela desenvolvida que foi possível deter o avassalador avanço da Reforma protestante. E, mais especificamente, verificou-se mais tarde que a maior parte deste mérito deveu-se de modo especialíssimo ao sucesso igualmente fulminante da imensa rede escolar elaborada pela Companhia. Amainados que foram os primeiros furores da tormenta e elaborado um mapa das regiões da Europa que haviam permanecido católicas ou em que havia sido implantada a Reforma luterana, verificou- se que os limites geográficos destas localidades coincidiam, em grande parte e de modo particularmente evidente no Sacro Império, com o próprio mapa das fundações das escolas jesuítas.

Se tudo isto explica, justifica, e até mesmo é causa de profunda admiração diante do trabalho desenvolvido pela Companhia de Jesus, todavia não pode ser motivo para dissimular que, devido a estas mesmas causas, nesta época da história a educação cristã em um certo sentido desceu de nível e como que mudou de canal.

Mais tarde, conforme veremos, do ponto de vista do que a educação possui de mais essencial, ela iria mudar de canal muitas outras vezes mais. Mas agora temos que chamar a atenção para os problemas relacionados com esta primeira mudança de canal.

A partir do Renascimento as pessoas pertencentes à civilização ocidental passaram a ser formadas segundo um padrão educacional inteiramente novo. Com isto certas verdades mais profundas não seriam mais facilmente perceptíveis para os que fossem assim sistematicamente educados. Introduziu-se deste modo, em toda uma inteira civilização, uma incapacidade artificialmente induzida para a apreensão de certas verdades que, para uma outra, seriam coisas evidentes. A partir deste momento, para a apreensão destas verdades seria necessário realizar um tremendo esforço que, cada vez mais, a maioria das pessoas não seria mais capaz de empreender.

É em grande parte devido a esta primeira mudança de canal na educação que provém, por exemplo, uma dificuldade muito difundida entre os homens de compreenderem o que significa a ascese cristã; que a conversão não é o ponto culminante do Cristianismo, mas apenas o seu princípio; que o Cristianismo não chama apenas à conversão, mas também a algo mais elevado que lhe é posterior, que está além do que hoje se chama de conversão, e que supõe esta conversão como requisito.

106.

O currículo humanista dos colégios jesuítas não era oferecido de modo especial para os candidatos ao sacerdócio. Ao contrário, era ele um autêntico curso secundário freqüentado não só por aqueles que desejassem ser padres como principalmente por uma multidão de alunos externos leigos.

Praticamente toda a elite européia se formou durante muito tempo segundo o modelo jesuíta, se não nas próprias escolas jesuítas, pelo menos em outras que tentavam imitar a perfeição com que o currículo humanista era ministrado entre os jesuítas.

Aqueles que, sempre uma minoria, desejassem depois seguir o sacerdócio na Companhia de Jesus, freqüentavam posteriormente as faculdades de Filosofia e Teologia.

107.

Nas faculdades de Filosofia e Teologia da Companhia, estas dedicadas à formação dos sacerdotes, a influência dominante, tanto quanto era possível para a época, já não era mais renascentista.

Nas Constituições da Companhia de Jesus, redigidas pelo próprio Santo Inácio de Loyola, prescrevia-se no capítulo 14 de sua Quarta Parte que

"em Filosofia seguir-se-á
a doutrina de Aristóteles",

e

"em Teologia ensinar-se-á
o Velho e o Novo Testamento,
e a doutrina escolástica
de Santo Tomás de Aquino".

Aristóteles, o Velho e o Novo Testamento, a escolástica e Santo Tomás de Aquino são todos personagens anteriores à Renascença.

Ainda assim, porém, apesar desta expressa recomendação de Santo Inácio em que se seguisse em matéria teológica as Sagradas Escrituras e a doutrina de Santo Tomás de Aquino, introduziu-se uma notável diferença entre o ensino de filosofia e teologia tal como eram ensinadas até a época de Santo Tomás de Aquino e tal como passaram a ser ensinadas na época pós-renascentista.

A primeira mudança foi que toda a Teologia passou a ser, em última análise, do ponto de vista prático, pastoral.

Esta afirmação, a de que toda a Teologia deve ser, em última análise, pastoral, e que deve ser aprendida e ensinada tendo este fim último em vista, ainda hoje pode ser ouvida e defendida por muitas pessoas dentro da Igreja. Para os que não conhecem o termo, Teologia Pastoral

"é a ciência teológica
que prepara os pastores de almas
para exercerem salutarmente
o seu ministério".

Mas no tempo de Hugo de São Vitor e Santo Tomás de Aquino parece-nos evidente que a Teologia não era ensinada, em última análise, com um fim pastoral. A Teologia era, acima de tudo, o conhecimento de Deus, e em última análise, era para isto que era ensinada.

No tempo de Santo Inácio as pessoas passaram a estudar Teologia principalmente porque queriam ser padres, isto é, principalmente em função de um ministério. No tempo de Santo Tomás de Aquino, embora muitas pessoas estudassem Teologia porque desejassem o sacerdócio, o principal e mais autêntico ensino da Teologia era conduzido de tal modo que muitos buscavam a Teologia por si só, e a porta estava verdadeiramente aberta para os que seguiam por este caminho; vendo depois a beleza das coisas de Deus, podia-se também desejar, ou desejar mais ainda, o sacerdócio.

108.

Outra conseqüência do ensino da Teologia ter-se tornado eminentemente pastoral é a pouca e até mesmo insignificante ênfase dada nos cursos de Teologia, a partir do Renascimento, à ascese. Este conhecimento passou a ser obtido geralmente paralelamente à escola de Teologia, na comunidade religiosa, por exemplo, a que pertence o estudante. A escola de Teologia já pouca relação passou a ter com a ascese cristã.

Isto é algo bastante diferente do modo como Santo Tomás de Aquino descreve o ensino da doutrina cristã. Ele diz que

"ensinar é o mesmo
que tornar perfeito".

Trata-se de algo, portanto, que transcende a preparação para a prática pastoral. E o mesmo Santo Tomás acrescenta ainda que a instrução mais perfeita é aquela que abarca

"a profundidade dos mistérios da fé
e a perfeição da vida cristã".

Summa Theologiae
IIIª Pars, Q.71 a4 ad3

Deve-se notar que Tomás inclui neste texto a perfeição da vida cristã como tema fundamental de ensino, mas ao mesmo tempo diz que ela é inseparavelmente vinculada à profundidade dos mistérios da fé, como se não fosse possível uma coisa sem a outra e ambas fossem parte integrante de um mesmo todo.

Na verdade, quando Santo Tomás de Aquino escreveu estas coisas, a ascese era tão inseparável da Teologia que, examinando os textos que eram usados para o estudo da Teologia naqueles tempos, verifica-se que eram, em sua maior parte, textos redigidos de tal modo que sua simples leitura, quando sistemática, produzia por si só resultados ascéticos. Com grande exatidão podia-se aplicar a eles estas palavras das Sagradas Escrituras:

"As palavras dos sábios são como aguilhões,
e como pregos fixados no alto,

as quais, pelo conselho dos mestres,
nos foram dadas pelo Único Pastor.

Mais do que isto, meu filho,
não busques;

não há limite para se fazer livros,
e o muito estudar é aflição da carne".

Ec. 12, 11-12

109.

Nesta Terceira Parte da presente Introdução Histórica já tivemos a oportunidade de comentar como o ensino da época de Hugo de São Vitor e Santo Tomás de Aquino foi uma evolução longa e gradual a partir das orientações que haviam sido deixadas por Santo Agostinho. Num certo sentido, o ensino desenvolvido nesta época é, no plano pedagógico, o próprio itinerário espiritual pelo qual passou Santo Agostinho.

Os que conhecem a vida de Santo Agostinho sabem como por meio deste itinerário a graça divina conduziu um homem completamente imerso na lama da luxúria à sabedoria e à santidade. Com isto, nos anos 1100 DC, sem ao que parece terem disto uma consciência muito explícita, as escolas estavam como que tentando reproduzir no aluno o itinerário pelo qual havia passado séculos antes Santo Agostinho.

Já nos anos 1500 DC o que as escolas estavam tentando fazer, agora mais explicitamente, era a reprodução nos alunos do itinerário de Quintiliano.

A diferença dos planos de perspectiva nestes dois casos é bastante evidente, e esta diferença de perspectiva dos educadores corresponderia a uma futura diferença de perspectiva dos homens assim educados.

110.

Na sociedade bizantina houve ainda um homem que poderia ter desempenhado no Oriente um papel semelhante ao que Santo Agostinho desempenhou no Ocidente em matéria de educação. Era o próprio São João Crisóstomo, que no final dos anos 300 DC havia deixado numerosas indicações a respeito.

Se a sociedade bizantina tivesse podido desenvolver estas indicações tal como a do ocidente pôde fazê-lo com as de Agostinho, o resultado teria sido, no plano educacional, mais do que o simples desenvolvimento, no plano educacional, do itinerário espiritual de um homem. Pode- se conjecturar, ademais, que os resultados desta orientação possivelmente teriam sido mais profundos do que os obtidos no Ocidente.

Nada disso, porém, aconteceu. Embora São João Crisóstomo tenha sido tão venerado no Oriente como Santo Agostinho no Ocidente, por razões históricas sua influência na educação foi praticamente nula.